sexta-feira, 21 de abril de 2017

A Evolução Histórica do instituto da responsabilidade civil administrativa

         O Professor Diogo Freitas do Amaral sintetiza a evolução histórica do instituto da responsabilidade civil administrativa em quatro fases.
         A primeira fase carateriza-se por uma irresponsabilidade do Estado. O Estado não tinha a obrigação de indemnizar os prejuizos dos particulares resultantes da sua ação. Esta conceção dominou numa época em que vigoravam regimes de monarquia absolutista e ainda no século XIX em que o direito administrativo se encontrava numa fase incipiente. Deste modo, a Administração era consequentemente irresponsável, não podendo ser direta ou indiretamente responsabilizada pelos danos causados em consequência quer da prática de atos administrativos quer da execução das leis.
         No entanto, a regra geral da irresponsabilidade do Estado não constituia uma prática absoluta, na medida em que se admitiam exceções. As autarquias locais, não sendo entidades soberanas, respondiam pelos danos causados assim como o Estado respondia pelos prejuízos resultantes de grande parte das suas atividades particulares, como a gestão do domínio privado. Para além disso, outras atividades como as obras públicas podiam suscitar responsabilidade administrativa do Estado.
         Por outro lado, esta conceção acompanha um Estado abstencionista, que não intervém ou intervém pouco na vida econonómica e social, pelo que a probabilidade de causar danos aos particulares era reduzida.
         Desse modo, as Constituições do século XIX consagravam apenas a responsabilidade dos “empregados públicos” por prejuizos resultantes da prática das suas funções, designadamente erros e abusos de poder. O Código de Seabra de 1867 acompanha os preceitos constitucionais, admitindo a irresponsabilidade dos funcionários públicos no exercício das suas funções, exceptuando os casos em que os mesmos excedessem ou não cumprissem as disposições previstas legalmente. Consequentemente, a responsabilidade recaía exclusivamente no funcionário, não abrindo sequer espaço para uma responsabilização indireta da Administração.
         Contudo, a doutrina e a jurisprudência interpretaram essas disposições legais no sentido de responsabilizar o Estado pelos atos de gestão privada regulados pelo direito privado, colocando o Estado numa posição análoga à das restantes pessoas coletivas.
         Em suma, a primeira conceção baseia-se na regra geral de irresponsabilidade do Estado e consequente irresponsabilidade da Administração, embora admitindo exceções pouco significativas.
         Posteriormente, surge o que o professor Diogo Freitas do Amaral classifica como uma segunda fase da evolução histórica do instituto da responsabilidade civil administrativa, em que a jurisprudência começa a apontar no sentido da responsabilização do Estado por “atos de império”. A responsabilidade solidária do Estado com os seus agentes por atos ilícitos praticados por estes no âmbito das suas funções desponta com a revisão de 1930 do nosso Código Civil. Consequentemente, passou a decorrer do nosso Código que os empregados públicos não seriam responsáveis pelos prejuízos causados no exercício das suas funções, excepto se houver incumprimento das disposições legais por parte dos mesmos e, nesses casos o Estado responderia solidariamente. Alguns anos depois, o Código Administrativo estabelece, em alguns casos, a responsabilidade exclusiva das autarquias locais.
         Assim, o Estado tornou-se solidariamente responsável pelos danos causados pelo “bom funcionário público”, aquele que cometeu erros ligeiros na prática das suas funções. No entanto, o “mau funcionário” responde individualmente pelos erros grosseiros que haja cometido, nomeadamente usurpação de poder, incompetências ou desvio de poder.
         Portanto, nesta fase surge a responsabilidade administrativa, baseada quer no risco de atividades perigosas quer nos excessivos sacríficos impostos, existindo apenas nos casos expressamente previstos na lei, segundo o entendimento da doutrina e da jurisprudência. Em contrapartida, em 1950 surge um novo entendimento de que relativamente à responsabilidade por atos lícitos, a Administração seria obrigatoriamente responsabilizada, mesmo que isso extravasasse o que estava legalmente previsto.
         Atendendo a um ponto de vista processual, a situação era paradoxal, no sentido em que as ações para efetivação da responsabilidade civil da Administração eram propostas nas auditorias (Tribunais Administrativos) enquanto que a competência para “decidir” a responsabilidade administrativa pertencia aos Tribunais Judiciais.
         Segue-se a terceira fase que, no entendimento do professor Freitas do Amaral surge com a publicação do novo Código Civil português, de 1966. Os trabalhos preparatórios deste Código apontavam no sentido de incluir toda a matéria da responsabilidade extracontratual da Administração Pública. No entanto, o resultado final consagrou apenas o regime da responsabilidade da Administração por danos causados no exercício de gestão privada, deixando para o Direito Administrativo a legislação da responsabilidade da Administração no âmbito da gestão pública. Desse modo, surge o Decreto-Lei nº 48 051, de 21 de Novembro de 1967 com o intuito de regular a responsabilidade administrativa no domínio da gestão pública. Neste âmbito, o Decreto-Lei separou a figura da responsabilidade por ato terceiro, ou seja os casos em que a Administração responde por danos causados por indíviduos com quem mantém uma relação funcional. Portanto, temos de um lado a responsabilidade exclusiva e objetiva da Administração, relativa por exemplo à responsabilidade pelo risco e por facto ilícito e do outro lado a responsabilidade por terceiro.
         Paralelamente, foi revista a parte processual, estabelecendo-se que a Administração responderia segundo o direito civil e perante os Tribunais Judiciais quando os danos forem causados no âmbito de gestão privada. Relativamente aos prejuízos resultantes de atividades de gestão pública, a Administração respondia perante os Tribunais Administrativos e era aplicado o próprio direito administrativo.
         Continuando a sistematização da evolução histórica do instituto da responsabilidade civil administrativa, cabe agora apresentar a quarta fase da evolução, que corresponde à atualidade.
A Constituição da República Portuguesa de 1976 estabelece a autonomização da responsabilidade do estado e outras entidades públicas da responsabilidade dos seus funcionários e agentes. Atualmente, decorre do artigo 22º da CRP que o Estado e demais entidades públicas respondem de forma solidária com os seus funcionários e agentes pelos atos e omissões praticados no exercício das suas funções das quais resulte violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem. Diversos Decretos-Lei posteriores estabelecem o regime da responsabilidade civil administrativa, tendo como base a distinção entre responsabilidade pessoal e responsabilidade funcional. Nesse âmbito, podemos concluir que a responsabilidade funcional remete para os danos emergentes de atos negligentes , em que opera ou não o direito de regresso , por parte da pessoa pública, consoante se trate de negligência grave ou leve. Isto decorre do artigo 2º/1 do Decreto-Lei 48 051. Quanto à responsabilidade pessoal, decorre do artigo 3º/1 do mesmo diploma que a mesma remete para danos resultantes de actos dos titulares dos órgãos ou agentes que excedam o limites das funções ou de actos praticados dolosamente, sendo que, neste último caso, funciona a responsabilidade solidária da pessoa colectiva pública.
Segue-se a importante reforma do Contencioso Administrativo, de 2002/2003 que estabelece a remissão do tratamento de todas as questões de responsabilidade civil administrativa para os Tribunais Administrativos, através da ação administrativa comum. Foi, portanto, reconhecida a competência para conhecer da responsabilidade civil contratual administrativa aos Tribunais Administrativos. Semelhante solução foi adotada relativamente à responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público e da responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime jurídico do Estado.
Mais tarde, surge a Lei nº 67/2007, de 31 de Dezembro com os objetivos de aproximar o quadro normativo existente da jurisprudência dos tribunais administrativos e de cumprir a obrigação de transpor diretivas comunitárias relativas à responsabilidade pré-contratual.
Em suma, é relevante atentar na distinção entre responsabilidade civil da Administração Pública e responsabilidade civil dos seus agentes. Por um lado, os tribunais competentes para decidir sobre cada uma delas são os mesmos, assim como o modo processual. Contudo, num plano substantivo é ainda importante fazer a distinção entre as duas figuras. A responsabilidade civil resultante do exercício de atos de gestão privada resulta do artigo 501º do Código Civil, enquanto que a responsabilidade civil emergente da atividade administrativa é regulada através do CCP e do RCEEP.

A conceção atual é, portanto, fruto de uma longa e difícil evolução, tendo em conta que devido a fatores políticos, sociais e jurídicos, a responsabilização do Estado foi por vezes impensável. Atualmente, o Estado é responsável. Logo, a Administração Pública é responsável. 


Bibliografia
Diogo Freitas do AMARAL, Curso de Direito Administrativo, vol. II, 3ª edição 2016

João CAUPERS, Introdução ao Direito Administrativo, 10ª Edição, 2009

Sem comentários:

Enviar um comentário