A Evolução Histórica
do instituto da responsabilidade civil administrativa
O Professor Diogo Freitas do Amaral
sintetiza a evolução histórica do instituto da responsabilidade civil
administrativa em quatro fases.
A primeira
fase carateriza-se por uma irresponsabilidade do Estado. O Estado não tinha
a obrigação de indemnizar os prejuizos dos particulares resultantes da sua
ação. Esta conceção dominou numa época em que vigoravam regimes de monarquia absolutista
e ainda no século XIX em que o direito administrativo se encontrava numa fase
incipiente. Deste modo, a Administração era consequentemente irresponsável, não
podendo ser direta ou indiretamente responsabilizada pelos danos causados em
consequência quer da prática de atos administrativos quer da execução das leis.
No entanto, a regra geral da
irresponsabilidade do Estado não constituia uma prática absoluta, na medida em
que se admitiam exceções. As autarquias locais, não sendo entidades soberanas,
respondiam pelos danos causados assim como o Estado respondia pelos prejuízos
resultantes de grande parte das suas atividades particulares, como a gestão do
domínio privado. Para além disso, outras atividades como as obras públicas
podiam suscitar responsabilidade administrativa do Estado.
Por outro lado, esta conceção acompanha
um Estado abstencionista, que não intervém ou intervém pouco na vida
econonómica e social, pelo que a probabilidade de causar danos aos particulares
era reduzida.
Desse modo, as Constituições do século
XIX consagravam apenas a responsabilidade dos “empregados públicos” por
prejuizos resultantes da prática das suas funções, designadamente erros e
abusos de poder. O Código de Seabra de 1867 acompanha os preceitos
constitucionais, admitindo a irresponsabilidade dos funcionários públicos no
exercício das suas funções, exceptuando os casos em que os mesmos excedessem ou
não cumprissem as disposições previstas legalmente. Consequentemente, a
responsabilidade recaía exclusivamente no funcionário, não abrindo sequer
espaço para uma responsabilização indireta da Administração.
Contudo, a doutrina e a jurisprudência
interpretaram essas disposições legais no sentido de responsabilizar o Estado
pelos atos de gestão privada regulados pelo direito privado, colocando o Estado
numa posição análoga à das restantes pessoas coletivas.
Em suma, a primeira conceção baseia-se
na regra geral de irresponsabilidade do Estado e consequente irresponsabilidade
da Administração, embora admitindo exceções pouco significativas.
Posteriormente, surge o que o professor
Diogo Freitas do Amaral classifica como uma segunda fase da evolução histórica do instituto da responsabilidade
civil administrativa, em que a jurisprudência começa a apontar no sentido da responsabilização
do Estado por “atos de império”. A responsabilidade solidária do Estado com os
seus agentes por atos ilícitos praticados por estes no âmbito das suas funções
desponta com a revisão de 1930 do nosso Código Civil. Consequentemente, passou
a decorrer do nosso Código que os empregados públicos não seriam responsáveis
pelos prejuízos causados no exercício das suas funções, excepto se houver
incumprimento das disposições legais por parte dos mesmos e, nesses casos o
Estado responderia solidariamente. Alguns anos depois, o Código Administrativo
estabelece, em alguns casos, a responsabilidade exclusiva das autarquias
locais.
Assim, o Estado tornou-se
solidariamente responsável pelos danos causados pelo “bom funcionário público”,
aquele que cometeu erros ligeiros na prática das suas funções. No entanto, o
“mau funcionário” responde individualmente pelos erros grosseiros que haja
cometido, nomeadamente usurpação de poder, incompetências ou desvio de poder.
Portanto, nesta fase surge a
responsabilidade administrativa, baseada quer no risco de atividades perigosas
quer nos excessivos sacríficos impostos, existindo apenas nos casos
expressamente previstos na lei, segundo o entendimento da doutrina e da
jurisprudência. Em contrapartida, em 1950 surge um novo entendimento de que
relativamente à responsabilidade por atos lícitos, a Administração seria
obrigatoriamente responsabilizada, mesmo que isso extravasasse o que estava
legalmente previsto.
Atendendo a um ponto de vista
processual, a situação era paradoxal, no sentido em que as ações para
efetivação da responsabilidade civil da Administração eram propostas nas
auditorias (Tribunais Administrativos) enquanto que a competência para
“decidir” a responsabilidade administrativa pertencia aos Tribunais Judiciais.
Segue-se a terceira fase que, no entendimento do professor Freitas do Amaral
surge com a publicação do novo Código Civil português, de 1966. Os trabalhos
preparatórios deste Código apontavam no sentido de incluir toda a matéria da
responsabilidade extracontratual da Administração Pública. No entanto, o
resultado final consagrou apenas o regime da responsabilidade da Administração
por danos causados no exercício de gestão privada, deixando para o Direito
Administrativo a legislação da responsabilidade da Administração no âmbito da
gestão pública. Desse modo, surge o Decreto-Lei nº 48 051, de 21 de
Novembro de 1967 com o intuito de regular a responsabilidade administrativa no
domínio da gestão pública. Neste âmbito, o Decreto-Lei separou a figura da
responsabilidade por ato terceiro, ou seja os casos em que a Administração
responde por danos causados por indíviduos com quem mantém uma relação
funcional. Portanto, temos de um lado a responsabilidade exclusiva e objetiva
da Administração, relativa por exemplo à responsabilidade pelo risco e por
facto ilícito e do outro lado a responsabilidade por terceiro.
Paralelamente, foi revista a parte
processual, estabelecendo-se que a Administração responderia segundo o direito
civil e perante os Tribunais Judiciais quando os danos forem causados no âmbito
de gestão privada. Relativamente aos prejuízos resultantes de atividades de
gestão pública, a Administração respondia perante os Tribunais Administrativos
e era aplicado o próprio direito administrativo.
Continuando a sistematização da
evolução histórica do instituto da responsabilidade civil administrativa, cabe
agora apresentar a quarta fase da
evolução, que corresponde à atualidade.
A Constituição da República
Portuguesa de 1976 estabelece a autonomização da responsabilidade do estado e
outras entidades públicas da responsabilidade dos seus funcionários e agentes.
Atualmente, decorre do artigo 22º da CRP que o Estado e demais entidades
públicas respondem de forma solidária com os seus funcionários e agentes pelos atos
e omissões praticados no exercício das suas funções das quais resulte violação
dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem. Diversos
Decretos-Lei posteriores estabelecem o regime da responsabilidade civil
administrativa, tendo como base a distinção entre responsabilidade pessoal e
responsabilidade funcional. Nesse âmbito, podemos concluir que a responsabilidade
funcional remete para os danos emergentes de atos negligentes , em que opera ou
não o direito de regresso , por parte da pessoa pública, consoante se trate de
negligência grave ou leve. Isto decorre do artigo 2º/1 do Decreto-Lei 48 051.
Quanto à responsabilidade pessoal, decorre do artigo 3º/1 do mesmo diploma que a
mesma remete para danos resultantes de actos dos titulares dos órgãos ou
agentes que excedam o limites das funções ou de actos praticados dolosamente,
sendo que, neste último caso, funciona a responsabilidade solidária da pessoa
colectiva pública.
Segue-se a importante reforma do
Contencioso Administrativo, de 2002/2003 que estabelece a remissão do
tratamento de todas as questões de responsabilidade civil administrativa para
os Tribunais Administrativos, através da ação administrativa comum. Foi,
portanto, reconhecida a competência para conhecer da responsabilidade civil
contratual administrativa aos Tribunais Administrativos. Semelhante solução foi
adotada relativamente à responsabilidade civil extracontratual das pessoas
coletivas de direito público e da responsabilidade civil extracontratual dos
sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime jurídico do Estado.
Mais tarde, surge a Lei nº 67/2007,
de 31 de Dezembro com os objetivos de aproximar o quadro normativo existente da
jurisprudência dos tribunais administrativos e de cumprir a obrigação de
transpor diretivas comunitárias relativas à responsabilidade pré-contratual.
Em suma, é relevante atentar na
distinção entre responsabilidade civil da Administração Pública e
responsabilidade civil dos seus agentes. Por um lado, os tribunais competentes
para decidir sobre cada uma delas são os mesmos, assim como o modo processual.
Contudo, num plano substantivo é ainda importante fazer a distinção entre as
duas figuras. A responsabilidade civil resultante do exercício de atos de
gestão privada resulta do artigo 501º do Código Civil, enquanto que a
responsabilidade civil emergente da atividade administrativa é regulada através
do CCP e do RCEEP.
A conceção atual é, portanto, fruto
de uma longa e difícil evolução, tendo em conta que devido a fatores políticos,
sociais e jurídicos, a responsabilização do Estado foi por vezes impensável.
Atualmente, o Estado é responsável. Logo, a Administração Pública é responsável.
Bibliografia
Diogo Freitas do AMARAL, Curso de Direito Administrativo, vol. II, 3ª
edição 2016
João CAUPERS, Introdução ao Direito Administrativo, 10ª Edição, 2009
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