quinta-feira, 6 de abril de 2017

A Relação Jurídica Administrativa

Nos primórdios do século XX, as doutrinas alemã e italiana começam por ressalvar a importância do conceito de “relação jurídica” para a construção teórica do Direito Administrativo. Marcello Caetano, traz para Portugal, em 1943, a adaptação, mutatis mutandis, da teoria da relação jurídica para o contexto do Direito Administrativo. Fá-lo com base nas precedentes teorias doutrinárias europeias e consagra as suas conclusões no seu Tratado Elementar do Direito Administrativo.
Atualmente, a doutrina tende a valorizar o conceito de “relação juridica” no contexto do Direito Administrativo, pelo que alguns doutrinários consideram que apenas a relação jurídica pode constituir a base fundamental da construção teórica do Direito Administrativo. Por outro lado, o conceito de “relação juridica” tem vindo a adquirir também grande relevância do ponto de vista jurisprudencial, com destaque em alguns acórdãos, que analisarei mais à frente.
De forma a compreender melhor o lugar que a relação jurídica ocupa ou deve ocupar no plano do Direito Administrativo, o Professor Diogo Freitas do Amaral apresenta uma visão desta questão segundo três prespetivas.
Em primeiro lugar, é importante perceber se há, de facto, verdadeiras relações jurídicas no seio do Direito Administrativo. Hoje em dia, esta é uma questão ultrapassada, uma vez que toda a doutrina admite a existência de relações da vida social tuteladas pelo Direito Administrativo. Acolhendo-se a noção teórica de “relação juridica” e admitindo que, entre outras, as relações entre particulares e a Administração pública são reguladas pelo Direito Administrativo, não há motivo para negar a existência de relações jurídicas neste ramo do Direito. Estas relações jurídicas administrativas consistem, de uma forma geral, nas relações entre um particular e uma pessoa coletiva pública, investida de poderes de autoridade, em que ambos os sujeitos de direito dispõem de poderes e deveres conferidos pelo Direito Administrativo. A relação entre um hospital público e um doente constitui uma relação jurídica administrativa.
Deste modo, podemos agrupar estas relações jurídicas administrativas em diferentes espécies, atendendo a diferentes critérios. O Professor Diogo Freitas do Amaral destaca três critérios: o critérios dos sujeitos, o critério da fonte e o critério do conteúdo da relação jurídica.
Atendendo ao critério dos sujeitos, temos relações jurídicas entre uma ou mais entidades públicas e um ou mais particulares, sendo estas as mais frequentes e temos também relações de duas ou mais entidades públicas entre si, recentemente acolhidas pela doutrina e cada vez mais frequentes, percetiveis por exemplo através de relações de superintendência entre o Estado e a sua Administração Indireta. Para além destas, atendendo ao critérios dos sujeitos, temos ainda relações de duas ou mais entidades privadas entre si. Estas são, segundo a perspetiva dos sujeitos, as relações jurídicas mais recentemente aceites pela doutrina, na medida em que aceitar que dois sujeitos privados estabeleçam relações jurídico-públicas, no âmbito do direito administrativo constituiu um grande passo por parte dos doutrinários. No entanto, estas relações são vulgares e podem existir sob diversas formas, entre elas relações entre empreiteiros de obras públicas e subempreiteiros.
O segundo critério apontado pelo Professor Freitas do Amaral para proceder à distinção de relações jurídicas administrativas baseia-se na fonte da relação jurídica. Deste ponto de vista, temos relações jurídicas assentes em fontes internacionais e comunitárias, resultantes dos direitos conferidos aos particulares ou dos encargos atribuidos à Administração Pública através de atos normativos da União Europeia, temos também relações jurídicas resultantes de lei ou regulamentos, relações jurídicas provenientes de atos administrativos, que resultam quer de atos primários (impositivos ou permissivos)[1], quer de atos secundários e constituem o grupo de relações jurídicas administrativas mais frequente. Para além disso, segundo a perspetiva da fonte, existem ainda relações jurídicas resultantes de contrato administrativo e relações jurídicas assentes em simples factos jurídicos.
Para além dos critérios enunciados, o Professor Diogo Freitas do Amaral destaca o critério do conteúdo, do qual resultam duas espécies de relações jurídicas: as relações de supremacia pública e as relações paritárias. Constituem relações jurídicas de supremacia pública aquelas em que se verifica uma situação de sujeição de um particular perante a Administração, que goza de poderes de autoridade, por exemplo os poderes de direção e modificação unilateral dos contratos administrativos. Relativamente às relações jurídicas paritárias, os sujeitos de direito estão em posição de igualdade entre si. Diz-se que os sujeitos estão em paridade público-privada quando a relação jurídica tenha como sujeitos a Administração Pública e um particular, da mesma forma que se diz existir paridade privada quando os intervenientes da relação jurídica administrativa sejam dois sujeitos privados e paridade pública quando os sujeitos intervenientes sejam públicos.
                À luz desta análise das espécies de relações jurídicas administrativas, podemos retirar algumas notas conclusivas. Em primeiro lugar, as relações jurídicas são mais do que relações entre Administração e particulares. Podem ser relações apenas entre intervenientes públicos ou somente privados, desde que o seu fundamento ocorra no exercício de direitos ou deveres públicos. Em segundo lugar, é importante referir que, como analisado, nem todas as relações jurídicas administrativas resultam apenas da lei ou de contrato administrativo. Para além disso, nem todas estas relações conferem à Administração Pública poderes de autoridade a exercer por ato unilateral.
                Da análise previamente efectuada, resulta como definição de “relação jurídica administrativa” toda a relação entre sujeitos de direito, quer sejam públicos ou privados, que atuem no exercício de poderes ou deveres públicos, conferidos por normas de Direito Administrativo.
                Seguindo o método de análise do Professor Diogo Freitas do Amaral, resta-nos responder a duas questões. Será que o conceito de “relação jurídica” pode ser a base fundamental da construção dogmática do Direito Administrativo? Será a perspetiva da relação jurídica a mais adequada para preencher, no plano didático, a parte geral do Direito Administrativo?
                De facto, não é possivel fazer uma construção dogmática do Direito Administrativo sem recorrer à teoria da relação jurídica administrativa. No entanto, esta teoria não esgota, de todo, a parte geral do Direito Administrativo.
                Vasco Pereira da Silva surge, na sua sua tese de doutoramento Em busca do ato administrativo perdido com uma critica à ideia do ato administrativo como conceito central do Direito Administrativo e apresenta a relação jurídica como novo conceito central do direito administrativo. O professor defende que este entendimento permite uma maior proteção do cidadão perante a Administração Pública, na medida em que alarga os direitos subjetivos públicos (direitos fundamentais, interesses legítimos e interesses legalmente protegidos).
                No entanto, Vasco Pereira da Silva adota uma conceção restrita da relação jurídica administrativa, defendendo que para que se estabeleça uma relação jurídica entre a Administração e os sujeitos, é necessário que haja um facto constitutivo.
                A jurisprudência também se tem pronunciado acerca do conceito de “relação jurídica administrativa”. Através do Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 28 de Outubro de 2009 (proc. 484/09), podemos compreender o entendimento da jurisprudência em relação à teoria da relação jurídica e consequentemente perceber o âmbito de aplicação da relação jurídica administrativa. A questão que está na base do acordão é a de perceber se uma E.P.E, regendo-se por direito privado, pode ser sujeito de relações jurídicas administrativas e se, consequentemente, um litígio que envolva uma E.P.E conste na jurisdição de um Tribunal Administrativo.
Para o Supremo Tribunal de Justiça, o conceito de relação jurídica administrativa pode ser tomado em diversos sentidos. Num sentido subjectivo, inclui-se qualquer relação jurídica em que intervenha a Administração, designadamente uma pessoa colectiva, pelo que tenderia a privilegiar-se igualmente um critério orgânico como padrão substancial de delimitação. Já num sentido predominantemente objectivo, a relação jurídica administrativa abrangeria as relações jurídicas em que intervenham entes públicos, mas desde que sejam reguladas pelo Direito Administrativo. E há ainda um outro sentido, que faz corresponder o carácter «administrativo» da relação ao âmbito substancial da própria função administrativa.
Para além disso, o Supremo Tribunal administrativo pronuncia-se no sentido de delimitar o âmbito material da jurisdição administrativa, defendendo que nesse êmbito deve caber a generalidade das relações jurídicas externas ou intersubjetivas de caráter administrativo, estabelecidas entre os particulares e os entes administrativos ou simplesmente entre sujeitos administrativos.
Uma E.P.E é uma pessoa coletiva de direito público e goza de um estatuto público e de personalidade jurídica pública criada por lei. Uma vez que atua no sentido da prestação de bem-estar e saúde dos cidadãos, substitui o Estado na prática de uma das suas tarefas. Por este motivo, faz parte da Administração Estadual Indireta do Estado. Estamos, portanto, perante uma entidade que possui elementos de autoridade administrativa e que, no exercício da sua função administrativa é regulada por normas de Direito Administrativo.
Deste modo, o Supremo Tribunal Administrativo pronuncia-se no sentido de admitir a competência aos Tribunais Administrativos para dirimir litígios com entidades com estas caraterísticas.
Através da análise do pensamento dos professores Diogo Freitas do Amaral e Vasco Pereira da Silva e com auxílio da jurisprudência, podemos concluir que o conceito de relação jurídica tende a ganhar mais relevo no âmbito do Direito Administrativo, ocupando quase integralmente a base da sua teoria geral. O afastamento do ato administrativo do lugar basilar da construção dogmática do Direito Administrativo permite conferir mais proteção aos particulares perante a Administração Pública e consequentemente alargar o âmbito de jurisdição dos Tribunais Administrativos.

DIOGO FREITAS DO AMARAL,” Curso de Direito Administrativo”, volume II
VASCO PEREIRA DA SILVA, "Em busca do ato administrativo perdido"

Márcia Santos, 28535





[1] Constituem atos administrativos primários os que versam pela primeira vez sobre uma determinada situação da  vida. Podem ser impositivos, colocando o seu destinatário em situação de sujeição a um ou mais efeitos jurídicos ou permissivos, possibilitando a alguém a adoção de uma conduta ou a omissão de um comportamento que, de outra forma, lhe estariam vedados. Os atos administrativos secundários são so que versam sobre um ato primário anteriormente praticado.

Sem comentários:

Enviar um comentário