A Relação Jurídica Administrativa
Nos primórdios
do século XX, as doutrinas alemã e italiana começam por ressalvar a importância
do conceito de “relação jurídica” para a construção teórica do Direito
Administrativo. Marcello Caetano, traz para Portugal, em 1943, a adaptação, mutatis mutandis, da teoria da relação
jurídica para o contexto do Direito Administrativo. Fá-lo com base nas
precedentes teorias doutrinárias europeias e consagra as suas conclusões no seu
Tratado Elementar do Direito Administrativo.
Atualmente, a
doutrina tende a valorizar o conceito de “relação juridica” no contexto do
Direito Administrativo, pelo que alguns doutrinários consideram que apenas a
relação jurídica pode constituir a base fundamental da construção teórica do
Direito Administrativo. Por outro lado, o conceito de “relação juridica” tem vindo
a adquirir também grande relevância do ponto de vista jurisprudencial, com
destaque em alguns acórdãos, que analisarei mais à frente.
De forma a
compreender melhor o lugar que a relação jurídica ocupa ou deve ocupar no plano
do Direito Administrativo, o Professor Diogo Freitas do Amaral apresenta uma
visão desta questão segundo três prespetivas.
Em primeiro
lugar, é importante perceber se há, de facto, verdadeiras relações jurídicas no
seio do Direito Administrativo. Hoje em dia, esta é uma questão ultrapassada,
uma vez que toda a doutrina admite a existência de relações da vida social
tuteladas pelo Direito Administrativo. Acolhendo-se a noção teórica de “relação
juridica” e admitindo que, entre outras, as relações entre particulares e a
Administração pública são reguladas pelo Direito Administrativo, não há motivo
para negar a existência de relações jurídicas neste ramo do Direito. Estas
relações jurídicas administrativas consistem, de uma forma geral, nas relações
entre um particular e uma pessoa coletiva pública, investida de poderes de
autoridade, em que ambos os sujeitos de direito dispõem de poderes e deveres
conferidos pelo Direito Administrativo. A relação entre um hospital público e
um doente constitui uma relação jurídica administrativa.
Deste modo,
podemos agrupar estas relações jurídicas administrativas em diferentes espécies,
atendendo a diferentes critérios. O Professor Diogo Freitas do Amaral destaca
três critérios: o critérios dos sujeitos, o critério da fonte e o critério do
conteúdo da relação jurídica.
Atendendo ao
critério dos sujeitos, temos relações jurídicas entre uma ou mais entidades
públicas e um ou mais particulares, sendo estas as mais frequentes e temos também
relações de duas ou mais entidades públicas entre si, recentemente acolhidas
pela doutrina e cada vez mais frequentes, percetiveis por exemplo através de
relações de superintendência entre o Estado e a sua Administração Indireta.
Para além destas, atendendo ao critérios dos sujeitos, temos ainda relações de
duas ou mais entidades privadas entre si. Estas são, segundo a perspetiva dos
sujeitos, as relações jurídicas mais recentemente aceites pela doutrina, na
medida em que aceitar que dois sujeitos privados estabeleçam relações
jurídico-públicas, no âmbito do direito administrativo constituiu um grande
passo por parte dos doutrinários. No entanto, estas relações são vulgares e
podem existir sob diversas formas, entre elas relações entre empreiteiros de
obras públicas e subempreiteiros.
O segundo
critério apontado pelo Professor Freitas do Amaral para proceder à distinção de
relações jurídicas administrativas baseia-se na fonte da relação jurídica.
Deste ponto de vista, temos relações jurídicas assentes em fontes
internacionais e comunitárias, resultantes dos direitos conferidos aos
particulares ou dos encargos atribuidos à Administração Pública através de atos
normativos da União Europeia, temos também relações jurídicas resultantes de
lei ou regulamentos, relações jurídicas provenientes de atos administrativos,
que resultam quer de atos primários (impositivos ou permissivos)[1],
quer de atos secundários e constituem o grupo de relações jurídicas
administrativas mais frequente. Para além disso, segundo a perspetiva da fonte,
existem ainda relações jurídicas resultantes de contrato administrativo e
relações jurídicas assentes em simples factos jurídicos.
Para além dos
critérios enunciados, o Professor Diogo Freitas do Amaral destaca o critério do
conteúdo, do qual resultam duas espécies de relações jurídicas: as relações de
supremacia pública e as relações paritárias. Constituem relações jurídicas de
supremacia pública aquelas em que se verifica uma situação de sujeição de um
particular perante a Administração, que goza de poderes de autoridade, por
exemplo os poderes de direção e modificação unilateral dos contratos
administrativos. Relativamente às relações jurídicas paritárias, os sujeitos de
direito estão em posição de igualdade entre si. Diz-se que os sujeitos estão em
paridade público-privada quando a relação jurídica tenha como sujeitos a
Administração Pública e um particular, da mesma forma que se diz existir
paridade privada quando os intervenientes da relação jurídica administrativa
sejam dois sujeitos privados e paridade pública quando os sujeitos
intervenientes sejam públicos.
À
luz desta análise das espécies de relações jurídicas administrativas, podemos
retirar algumas notas conclusivas. Em primeiro lugar, as relações jurídicas são
mais do que relações entre Administração e particulares. Podem ser relações
apenas entre intervenientes públicos ou somente privados, desde que o seu
fundamento ocorra no exercício de direitos ou deveres públicos. Em segundo
lugar, é importante referir que, como analisado, nem todas as relações
jurídicas administrativas resultam apenas da lei ou de contrato administrativo.
Para além disso, nem todas estas relações conferem à Administração Pública
poderes de autoridade a exercer por ato unilateral.
Da
análise previamente efectuada, resulta como definição de “relação jurídica
administrativa” toda a relação entre sujeitos de direito, quer sejam públicos
ou privados, que atuem no exercício de poderes ou deveres públicos, conferidos
por normas de Direito Administrativo.
Seguindo
o método de análise do Professor Diogo Freitas do Amaral, resta-nos responder a
duas questões. Será que o conceito de “relação jurídica” pode ser a base
fundamental da construção dogmática do Direito Administrativo? Será a
perspetiva da relação jurídica a mais adequada para preencher, no plano
didático, a parte geral do Direito Administrativo?
De
facto, não é possivel fazer uma construção dogmática do Direito Administrativo
sem recorrer à teoria da relação jurídica administrativa. No entanto, esta
teoria não esgota, de todo, a parte geral do Direito Administrativo.
Vasco
Pereira da Silva surge, na sua sua tese de doutoramento Em busca do ato administrativo perdido com uma
critica à ideia do ato administrativo como conceito central do Direito
Administrativo e apresenta a relação jurídica como novo conceito central do
direito administrativo. O professor defende que este entendimento permite uma
maior proteção do cidadão perante a Administração Pública, na medida em que alarga
os direitos subjetivos públicos (direitos fundamentais, interesses legítimos e
interesses legalmente protegidos).
No
entanto, Vasco Pereira da Silva adota uma conceção restrita da relação jurídica
administrativa, defendendo que para que se estabeleça uma relação jurídica
entre a Administração e os sujeitos, é necessário que haja um facto
constitutivo.
A
jurisprudência também se tem pronunciado acerca do conceito de “relação
jurídica administrativa”. Através do Acórdão do Supremo
Tribunal Administrativo, de 28 de Outubro de 2009 (proc. 484/09),
podemos compreender o entendimento da jurisprudência em relação à teoria da
relação jurídica e consequentemente perceber o âmbito de aplicação da relação
jurídica administrativa. A questão que está na base do acordão é a de perceber
se uma E.P.E, regendo-se por direito privado, pode ser sujeito de relações
jurídicas administrativas e se, consequentemente, um litígio que envolva uma
E.P.E conste na jurisdição de um Tribunal Administrativo.
Para o Supremo
Tribunal de Justiça, o conceito de relação jurídica administrativa pode ser
tomado em diversos sentidos. Num sentido subjectivo, inclui-se qualquer relação
jurídica em que intervenha a Administração, designadamente uma pessoa
colectiva, pelo que tenderia a privilegiar-se igualmente um critério orgânico
como padrão substancial de delimitação. Já num sentido predominantemente
objectivo, a relação jurídica administrativa abrangeria as relações jurídicas
em que intervenham entes públicos, mas desde que sejam reguladas pelo Direito
Administrativo. E há ainda um outro sentido, que faz corresponder o carácter
«administrativo» da relação ao âmbito substancial da própria função
administrativa.
Para além disso,
o Supremo Tribunal administrativo pronuncia-se no sentido de delimitar o âmbito
material da jurisdição administrativa, defendendo que nesse êmbito deve caber a
generalidade das relações jurídicas externas ou intersubjetivas de caráter
administrativo, estabelecidas entre os particulares e os entes administrativos
ou simplesmente entre sujeitos administrativos.
Uma E.P.E é uma
pessoa coletiva de direito público e goza de um estatuto público e de
personalidade jurídica pública criada por lei. Uma vez que atua no sentido da
prestação de bem-estar e saúde dos cidadãos, substitui o Estado na prática de
uma das suas tarefas. Por este motivo, faz parte da Administração Estadual
Indireta do Estado. Estamos, portanto, perante uma entidade que possui
elementos de autoridade administrativa e que, no exercício da sua função administrativa
é regulada por normas de Direito Administrativo.
Deste modo, o
Supremo Tribunal Administrativo pronuncia-se no sentido de admitir a
competência aos Tribunais Administrativos para dirimir litígios com entidades
com estas caraterísticas.
Através da análise
do pensamento dos professores Diogo Freitas do Amaral e Vasco Pereira da Silva
e com auxílio da jurisprudência, podemos concluir que o conceito de relação
jurídica tende a ganhar mais relevo no âmbito do Direito Administrativo,
ocupando quase integralmente a base da sua teoria geral. O afastamento do ato
administrativo do lugar basilar da construção dogmática do Direito
Administrativo permite conferir mais proteção aos particulares perante a Administração
Pública e consequentemente alargar o âmbito de jurisdição dos Tribunais
Administrativos.
DIOGO FREITAS DO AMARAL,” Curso de Direito Administrativo”, volume II
VASCO PEREIRA DA SILVA, "Em busca do ato administrativo perdido"
Márcia Santos, 28535
[1] Constituem
atos administrativos primários os que versam pela primeira vez sobre uma
determinada situação da vida. Podem ser
impositivos, colocando o seu destinatário em situação de sujeição a um ou mais
efeitos jurídicos ou permissivos, possibilitando a alguém a adoção de uma
conduta ou a omissão de um comportamento que, de outra forma, lhe estariam
vedados. Os atos administrativos secundários são so que versam sobre um ato
primário anteriormente praticado.
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