domingo, 9 de abril de 2017

Do procedimento administrativo: A Audiência Prévia

Nestas breves linhas, irei procurar dar a conhecer o papel da audiência prévia no procedimento administrativo. Analisaremos o conceito, fazendo ainda um paralelismo com o CPA de 1991, explicando a sua função e os princípios adjacentes à mesma. Levantaremos ainda a questão da natureza do direito à audiência prévia, e consequentemente em que regime de invalidade esta se insere. Por último, serão explorados os casos de dispensa, admissíveis no nosso ordenamento jurídico.

Base legal, conceito e paralelismos com o CPA de 1991
O direito à audiência prévia encontra-se previsto no artigo 121º do CPA (artigo 100º no caso dos regulamentos), sendo que o seu regime vem previsto até ao artigo 125º do CPA. Tendo em conta o artigo 100º do CPA de 1991, verificamos que não existe qualquer diferença substancial acerca do conteúdo, uma vez que excepcionando o regime de dispensa da audiência prévia, os interessados têm direito de ser ouvidos no procedimento antes de ser tomada a decisão final. Há ainda que ter em conta que os interessados devem ser informados sobre o sentido provável da decisão a proferir pelo órgão competente. O nº 2 do artigo 121º do CPA de 2015, vem a inovar referindo que no exercício do direito da audiência, os interessados podem pronunciar-se sobre todas as questões com interesse para a decisão, demonstrando assim um maior reforço pelos princípios processuais do dispositivo e do contraditório, uma vez que estes podem suscitar matéria de facto e de direito, bem como requerer diligências complementares e juntar documentos. Já no nº 2 do artigo 100º do CPA de 1991, apenas é referido que o órgão instrutor escolhe a forma a dar à audiência dos interessados, podendo esta ser oral ou reduzida a escrito. Em todo o caso, o nº 3 de ambos os artigos, em nada muda, uma vez que faz referência à suspensão de prazos em todos os procedimentos administrativos.
A audiência dos interessados é o aspecto mais importante da participação dos interessados no procedimento administrativo, tanto para o acto como para o regulamento. Neste manifesta-se uma plena democratização do Direito Administrativo, assim como releva uma verdadeira presença de cidadania administrativa. Podemos dizer que a figura em análise é uma reverberação do princípio geral, também de origem processual, do audi alteram pars (ouvir o outro lado) e é um critério decisivo do due process (processo devido). Imprescindível será dizer que é imperativo o respeito pelo contraditório (direitos de defesa) na formação das decisões públicas. Podemos aqui dizer, de nossa parte, que este é um instrumento de defesa do interessado perante o poder da administração. Não vemos problemas em referir que a figura em apreço demonstra uma maior bilateralidade entre o particular e a administração. Em consequência de não se verificar a audiência prévia, à partida, haveria uma situação de unilateralidade por parte da administração, sendo uma situação de decisão “de costas voltadas” para o cidadão. Resumindo, expressamos aqui a essencialidade da relação jurídica procedimental.
Pode-se ainda referir a extensão desta manifestação quanto ao Direito Penal, contra-ordenacional e processos sancionatórios, disciplinares e demais.

Funções da audiência e princípios que a regem
Para começar pode ser referido o princípio do dispositivo, no sentido em que é o interessado (parte) que fornece as questões com interesse para a decisão, é algo que parte do interessado, ele tem esse ónus. Pautando-se ainda, este primeiro princípio enunciado, por outro chamado de auto-responsabilização das partes, uma vez que a decisão final será tomada dentro do objecto pelo qual a parte contribuiu com informações (de facto ou de direito). Um outro princípio que pode ser enunciado é o do contraditório, nada mais é do que a possibilidade de a parte, neste caso o interessado, manifestar-se quanto à possível decisão. Assim podemos verificar uma importante função de participação do interessado visto este poder colaborar com a administração na relação procedimental e consequentemente na decisão final. Daí se referir que é um direito dos interessados no procedimento, é a expressão da sua posição. Os interessados, no entanto, não são quaisquer sujeitos na relação procedimental, limitando-se a ser aqueles que intervieram no procedimento de forma pessoal, cabendo ainda ficar ao critério discricionário da administração escolher quem é parte interessada.
É importante esclarecer que o interessado que requer tem um ónus, isto é tem também uma atitude passiva, nomeadamente de juntar alegações escritas, novos documentos e de se pronunciarem activamente sobre questões de facto e direito relevantes. Podemos ainda chamar a isto de um dever suplementar de instrução do procedimento, acrescentando que o responsável por este dever deve ponderar aquilo que irá levar para a audiência. O que acabou de ser aqui referido, pode ser assim mais um reforço do princípio do contraditório em harmonia com a nova configuração do direito da audiência a que o CPA de 2015 procedeu.
O princípio da celeridade e da eficácia não é esquecido, uma vez que o nº 2 do artigo 121º CPA restringe o direito ao contraditório: “com interesse para a decisão”. A administração, contudo, dispõe de ampla discricionariedade procedimental para determinar o que é, ou não, relevante no caso concreto.

Natureza do direito à audiência prévia
Cabe aqui discussão quanto ao direito em questão. Duas posições podem ser sustentadas, e estas terão diferentes consequências a nível de invalidade: i) anulabilidade; ii) nulidade.
Uma corrente da doutrina defende que este direito é meramente legal, isto é não está ao nível de direitos fundamentais tutelados pela CRP. Outra vertente doutrinária defende precisamente o contrário, ou seja, que esta se trata de um direito fundamental tutelado a nível constitucional. Começando pela segunda posição, Luiz Cabral de Moncada defende a tese do direito fundamental, explicando que existe um assento directamente constitucional no artigo 267º/5 CRP, uma vez que a audiência prévia corporiza uma formalidade essencial. É essencial pois o cumprimento desta fase é decisivo para a formação do acto administrativo final. Não se trata de uma formalidade posterior à formação do acto administrativo, como por exemplo é a notificação. Muito pelo contrário, a preterição da audiência prévia gera a invalidade do acto administrativo final, tratando-se de um direito fundamental, a preterição afecta decisivamente o conteúdo fundamental consequentemente tratando-se de uma nulidade e não de mera anulabilidade. A nulidade por falta de audiência é uma consequência geral e não específica dos processos penais e contra-ordenacionais, não vendo por isso objecções à sua aplicação no procedimento administrativo. A consequência fundamental desta posição traduz-se no facto de que não é admitida sanação do acto administrativo. No caso contrário, de mera anulabilidade, a sanação seria uma das possibilidades. Admite ainda o Autor que se deve admitir a sanação pela demonstração, cujo o ónus caberá à administração, da participação adequada do interessado no desenvolvimento do procedimento. Em minha opinião, parece que esta posição aparenta criar uma divisão rígida entre a nulidade e a anulabilidade, sendo que, pessoalmente acho não haver uma riqueza ao não ter soluções intermédias para estes casos.
A outra posição funda-se no pensamento de que em todos os direitos podem ser tratados como direitos fundamentais, podendo mesmo correr o risco de esvaziar o conteúdo destes últimos e atingir uma categoria extremamente ampla de direitos fundamentais. Um argumento possível é a literalidade do CPA de 2015, uma vez que o elenco de situações que geram a nulidade não apresenta a preterição do direito de audiência prévia, assim sendo caberia no regime da anulabilidade que naturalmente é aplicável a todas as situações não elencadas no artigo 161º do CPA. Não vem também elencado na categoria de Direito Fundamental na constituição, que apresenta por si só já um vasto catálogo programático. Em último dado, deve ser referido que nem todas as definições legais têm natureza supralegal e o artigo 121º será um desses casos.

Excepções ao direito de audiência prévia: A dispensa
Podem haver, no entanto, casos em que o direito à audiência prévia possa ser dispensado. Estes casos têm previsão legal no artigo 124º do CPA. O princípio pelo qual se rege esta figura é o princípio do inquisitório, uma vez que o responsável pela direcção do procedimento não pode proceder à audiência dos interessados quando se verifique algum dos casos elencados. São seis as situações em que esta pode ocorrer: i) a primeira e talvez mais importante é a decisão urgente, onde se pode inserir a figura do estado de necessidade, que pelo seu nome indica a rapidez necessária para a decisão, pelo que se compreende a supressão da figura da audiência dos interessados; ii) a segunda é a de que os interessados tenham solicitado o adiamento por facto imputável aos mesmos pelo qual não tenha sido possível fixar-se nova data nos termos do nº 3 do artigo 123º do CPA; iii) nos casos em que seja razoavelmente de prever que a diligência possa comprometer a execução ou a utilidade da decisão; iv) pelo facto de o número de interessados a ouvir seja de tal forma elevado que a audiência se torne impraticável, devendo nesse caso proceder-se a consulta pública, quando possível, pela forma mais adequada; v) sempre que os interessados já se tiverem pronunciado no procedimento sobre as questões que importem à decisão e sobre as provas produzidas; vi) e por último, quando os elementos constantes do procedimento conduzirem a uma decisão inteiramente favorável aos interessados.
Outro princípio é o da discricionariedade administrativa, isto porque fica a cabo do responsável pelo procedimento. Isto resulta de um argumento literal quanto ao nº1 que refere a expressão “pode”. As razões de dispensa fundam-se na execução ou utilidade, pela adequação e pela celeridade. Por vezes em substituição pode ser feita uma consulta pública no caso de existência de muitos interessados ao que acontece nos casos de regulamento. Cabe discussão para a expressão inteiramente mais favorável, pois daqui extrai-se que não pode ser de forma parcial, sendo parcial a audiência é sempre obrigatória, o que é positivo. Agora a expressão do princípio do inquisitório releva no sentido que o legislador exigiu a contratio que a administração deve averiguar aquilo que é inteiramente favorável aos interessados. Isto na prática é um juízo difícil e complexo dotado de elementos de prognose, baseados numa decisão que ainda não existe, mas que a administração deve averiguar de forma absoluta. Trata-se aqui de uma interpretação restritiva das condições de dispensa da audiência prévia, por isso entende-se que havendo a mais pequeníssima dúvida a audiência prévia dos interessados não pode ser dispensada, logo mantém-se obrigatória. Esta posição, a meu ver é algo garantística para os interessados, uma vez que contra decisões iniquas a administração tem sempre que ter em conta os seus interesses. Por último, no caso da urgência, esta tem que ter um motivo legal de dispensa, mais uma vez, não é qualquer urgência pois recordamos que seguimos uma posição de que se trata de um Direito Fundamental e portanto mais uma vez a urgência deve ser reduzida a uma interpretação restritiva quanto ao seu conteúdo, mutatis mutandi para a consulta pública quando substitui a audiência, ressalvando que esta deve ser feita pela forma mais adequada. Concordando com Luiz Cabral de Moncada, parece que o novo código foi sensível à necessidade de um procedimento especial comportando a dispensa de certas formalidades para os procedimentos envolvendo massas de cidadãos.

Opinião pessoal
Em razão dos argumentos acima apresentados, considero que a posição relativa à norma ter valor constitucional, nomeadamente, sendo a expressão de um verdadeiro Direito Fundamental seja a mais correcta por uma série de razões. Primeiramente porque dizer que este direito é meramente legal e que abarcando todo e qualquer direito num aglomerado de direitos fundamentais seria demasiado forçado, não faz sentido, visto o direito à audiência prévia constituir parte essencial em todo e qualquer processo administrativo, pelo que não deve ser encarado como um direito ordinário. Por outro lado, a ratio do artigo é procurar a maior protecção para o interessado. O que tutelaria mais a sua posição? A anulabilidade ou a nulidade? Neste caso, seria a nulidade inserindo-se no artigo 161º/2 d) do CPA, uma vez que dispensaria o interessado de um ónus acrescido de arguir a anulabilidade e de estar sujeito a uma convalidação do acto, podendo então arguir a nulidade a todo e qualquer momento sem que este acto esteja sujeito a convalescença. Por último e tendo em conta a ratio da norma há que ter em mente que este direito vem a concretizar uma maior esfera de protecção dos particulares face à administração, mas vem ao mesmo tempo, legitimar (de forma mais acentuada) as decisões administrativas em sede processual, visto ser mesmo essa a finalidade do procedimento – segundo o Professor Paulo Otero – chegar a uma conclusão.

Referências bibliográficas:
CABRAL DE MONCADA, Luiz, Código do Procedimento Administrativo anotado, Coimbra Editora;
OTERO, Paulo, Direito do Procedimento Administrativo, Vol. I, Almedina;

FREITAS DO AMARAL, Diogo, Curso de Direito Administrativo, Vol. II, 3ª edição, Almedina;

                                                                                                                       - Ricardo Serra nº 26122

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