A
mutação do direito administrativo, na lição do
professor Freitas do Amaral
Limito-me, ao
longo das seguintes linhas, a alinhavar a interessante reflexão que o ilustre
professor Freitas do Amaral connosco partilhou por convite do Centro de Estudos
Judiciários – que tem, com mérito, aproveitado conferências selecionadas para
as prolongar no tempo, publicando-as visualmente, na sequência de um movimento
de partilha de Direito online.
Grande
contribuidor do o status administrativos nacional,
mediante contributo doutrinário, colaboração política e atividade legislativa,
o professor discursou sobre a mutação do direito administrativo no contexto dos
últimos e dos próximos 25 anos, sob, a mote do professor Barbas Homem, os
fenómenos do 1) neoliberalismo,
2)
da globalização e 3)
da europeização.
E fê-lo na
perspetiva da flagrante aproximação do nosso Direito, de matriz romana, ao dos
sistemas de common law, de iniciativa
privada, a despeito dos tão caros valores da revolução francesa. Os três
fenómenos estão interligados: a começar pelo 1) neoliberalismo
- escola de pensamento económico de Haek e Freedman, hoje preponderante devido
à sua transformação em políticas públicas concretas na era Reagen-Tachter,
repercutidas de seguida na América Central e do Sul e na Europa Ocidental e de
Leste, depois da queda do muro de Berlim -, o FMI, sua verdadeira mão operante,
é prova e motor premente da 2) globalização
do ideal e das políticas económicas. Quanto à 3)
europeização, sobre ela se discutiu a propósito de um dos pontos do direito
administrativo tradicional propostos pelo professor.
Antes desses
pontos, importa mencionar a menor importância dada ao direito administrativo no
sistema common law, em que, a título de exemplo, o assunto é tratado numa
cadeira semestral, contrastando com a tripartição do estudo habitualmente feita
nos países nossos “familiares”. A organização administrativa trata-se, lá, em
direito constitucional, e o contencioso administrativo em processo civil,
porque há uma jurisdição única: o direito administrativo é aplicado pelos tribunais
comuns, lembrando aquilo que o professor Vasco Pereira da Silva nominou de pecado original.
Tradicionalmente,
o Direito Administrativo lidava com (1)
a supremacia jurídica da Constituição, verdadeira norma normarum; supremacia hoje posta em causa, devido ao fenómeno
da europeização. Com efeito, o direito comunitário tem-se, por força da
jurisprudência unânime do seu Tribunal de Justiça, feito prevalecer ao direito
interno, incluindo o direito constitucional. Apesar da restrição de ofensa aos
princípios comunitários comuns aos países membros, e, na esteira de Fausto
Quadros, ao princípio do respeito pelos direitos fundamentais, a verdade é que
o primado do direito comunitário tem sido invocado.
Caraterizava-se
também pelo (2)
princípio da separação de poderes, no clássico sentido que lhe deu Montesquieu,
e que parece ser hoje praticado apenas por linhas gerais, visto que em
Portugal, desde o Estado Novo, o Governo pode legislar por decretos-lei
equiparados aos atos da Assembleia, por força do art. 112º da Constituição.
Ainda, a Assembleia da República tem-se arrogado ao poder de fazer decisões
tipicamente governamentais, nomeadamente a nível de taxas, nas palavras do
professor, uma intromissão abusiva que tem sido validada pelo Tribunal
Constitucional.
Já o (3)
princípio da legalidade, importante herança da Revolução Francesa, tem sido
ampliado de tal maneira que há quem o designe hoje por “princípio da
juridicidade”. Mantido e até engrandecido, o princípio da legalidade coaduna-se
das mudanças dos restantes pontos tradicionais, uma vez que juntos operam o
bloco de legalidade.
(4) O
princípio da imparcialidade, que obriga a Administração a agir de maneira
imparcial e indiscriminada para com os particulares, tem sido contornado pelos,
nas palavras do professor “amiguismo e partidarite infiltrados nas formas de
decisão”.
O Direito
Administrativo tem sido desenvolvido enquanto (5)
direito específico da Administração Pública, que atua em regra segundo ele e só
excecionalmente segundo o direito privado. Acontece que no sistema common law pouco se distingue o direito
público do privado, e, por adoção, os trabalhadores da Administração vão
seguindo numa fuga para o direito privado, usado como forma de fugir a certos
controlos do Tribunal de Contas, como tem sido constatado pela doutrina, mas
também de forma mais ampla, de maneira a reduzir o direito público. A titulo de
exemplo, a questão do facilitamento da prova do direito de propriedade ou posse
prolongada de domínio marítimo recentemente levada a cabo, a despeito da sua
integração no domínio público desde o decreto régio de 1864, depois integrado
no código de 1867. Parece estar-se a consentir uma privatização permanente de
áreas do domínio marítimo sem concurso e sem pagamento, o que levou o professor
a discorrer sobre as mais recentes concessões, em que o Estado parece assumir o
risco pelos privados, em “atentado ao Estado de Direito Democrático e à lógica”,
uma vez que o capitalismo é um sistema de lucros e perdas, na lição do professor
Samuelson, e não de lucros apenas.
É nossa
conhecida a (6)
passagem da Administração Pública agressiva dos direitos dos particulares a uma
Administração constitutiva, prestadora, vinda da Alemanha pós-guerra, e hoje
comprometida pelas políticas neoliberais dadas em resposta à crise.
Em último
lugar, é apontado como ponto característico da nossa administração, o (7)
principio da probidade administrativa, que tem como
corolário o combate à corrupção. Não podemos dizer que tenha vindo a ser
concretixado.
Posta a
análise, alerta o caríssimo, há nos dias de hoje uma necessidade de repensar o
sistema do direito administrativo, com os tribunais e as universidades à
cabeça, para se optar pela manutenção do sistema greco-romano (solução para que
se inclina) ou então pela transição para o de common well.
No poder dos
tribunais está contrariar uma evolução legislativa contrária aos princípios
romano-germânicos, a conseguir pela decretação de inconstitucionalidade e pela
interpretação restritiva e extensiva da lei, é pela integração das lacunas da
lei; pois num sistema democrático como o nosso, é consensual que o juiz deva
atentar ao espírito da lei e não somente à sua letra.
De tudo isto
resulta que o Direito Administrativo, tantas vezes olhado como instrumento burocrático
de uma Administração Pública quase maquinal, é na verdade o reflexo dos ideais
e princípios de uma civilização que, indo, ainda não decidiu bem se quer ficar.
Beatriz Pereira Lourenço
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