sexta-feira, 7 de abril de 2017

A mutação do Direito Administrativo

A mutação do direito administrativo, na lição do professor Freitas do Amaral

Limito-me, ao longo das seguintes linhas, a alinhavar a interessante reflexão que o ilustre professor Freitas do Amaral connosco partilhou por convite do Centro de Estudos Judiciários – que tem, com mérito, aproveitado conferências selecionadas para as prolongar no tempo, publicando-as visualmente, na sequência de um movimento de partilha de Direito online.
Grande contribuidor do o status administrativos nacional, mediante contributo doutrinário, colaboração política e atividade legislativa, o professor discursou sobre a mutação do direito administrativo no contexto dos últimos e dos próximos 25 anos, sob, a mote do professor Barbas Homem, os fenómenos do 1) neoliberalismo, 2) da globalização e 3) da europeização.

E fê-lo na perspetiva da flagrante aproximação do nosso Direito, de matriz romana, ao dos sistemas de common law, de iniciativa privada, a despeito dos tão caros valores da revolução francesa. Os três fenómenos estão interligados: a começar pelo 1) neoliberalismo - escola de pensamento económico de Haek e Freedman, hoje preponderante devido à sua transformação em políticas públicas concretas na era Reagen-Tachter, repercutidas de seguida na América Central e do Sul e na Europa Ocidental e de Leste, depois da queda do muro de Berlim -, o FMI, sua verdadeira mão operante, é prova e motor premente da 2) globalização do ideal e das políticas económicas. Quanto à 3) europeização, sobre ela se discutiu a propósito de um dos pontos do direito administrativo tradicional propostos pelo professor.

Antes desses pontos, importa mencionar a menor importância dada ao direito administrativo no sistema common law, em que, a título de exemplo, o assunto é tratado numa cadeira semestral, contrastando com a tripartição do estudo habitualmente feita nos países nossos “familiares”. A organização administrativa trata-se, lá, em direito constitucional, e o contencioso administrativo em processo civil, porque há uma jurisdição única: o direito administrativo é aplicado pelos tribunais comuns, lembrando aquilo que o professor Vasco Pereira da Silva nominou de pecado original.

Tradicionalmente, o Direito Administrativo lidava com (1) a supremacia jurídica da Constituição, verdadeira norma normarum; supremacia hoje posta em causa, devido ao fenómeno da europeização. Com efeito, o direito comunitário tem-se, por força da jurisprudência unânime do seu Tribunal de Justiça, feito prevalecer ao direito interno, incluindo o direito constitucional. Apesar da restrição de ofensa aos princípios comunitários comuns aos países membros, e, na esteira de Fausto Quadros, ao princípio do respeito pelos direitos fundamentais, a verdade é que o primado do direito comunitário tem sido invocado.
Caraterizava-se também pelo (2) princípio da separação de poderes, no clássico sentido que lhe deu Montesquieu, e que parece ser hoje praticado apenas por linhas gerais, visto que em Portugal, desde o Estado Novo, o Governo pode legislar por decretos-lei equiparados aos atos da Assembleia, por força do art. 112º da Constituição. Ainda, a Assembleia da República tem-se arrogado ao poder de fazer decisões tipicamente governamentais, nomeadamente a nível de taxas, nas palavras do professor, uma intromissão abusiva que tem sido validada pelo Tribunal Constitucional.
Já o (3) princípio da legalidade, importante herança da Revolução Francesa, tem sido ampliado de tal maneira que há quem o designe hoje por “princípio da juridicidade”. Mantido e até engrandecido, o princípio da legalidade coaduna-se das mudanças dos restantes pontos tradicionais, uma vez que juntos operam o bloco de legalidade.
(4) O princípio da imparcialidade, que obriga a Administração a agir de maneira imparcial e indiscriminada para com os particulares, tem sido contornado pelos, nas palavras do professor “amiguismo e partidarite infiltrados nas formas de decisão”.
O Direito Administrativo tem sido desenvolvido enquanto (5) direito específico da Administração Pública, que atua em regra segundo ele e só excecionalmente segundo o direito privado. Acontece que no sistema common law pouco se distingue o direito público do privado, e, por adoção, os trabalhadores da Administração vão seguindo numa fuga para o direito privado, usado como forma de fugir a certos controlos do Tribunal de Contas, como tem sido constatado pela doutrina, mas também de forma mais ampla, de maneira a reduzir o direito público. A titulo de exemplo, a questão do facilitamento da prova do direito de propriedade ou posse prolongada de domínio marítimo recentemente levada a cabo, a despeito da sua integração no domínio público desde o decreto régio de 1864, depois integrado no código de 1867. Parece estar-se a consentir uma privatização permanente de áreas do domínio marítimo sem concurso e sem pagamento, o que levou o professor a discorrer sobre as mais recentes concessões, em que o Estado parece assumir o risco pelos privados, em “atentado ao Estado de Direito Democrático e à lógica”, uma vez que o capitalismo é um sistema de lucros e perdas, na lição do professor Samuelson, e não de lucros apenas.
É nossa conhecida a (6) passagem da Administração Pública agressiva dos direitos dos particulares a uma Administração constitutiva, prestadora, vinda da Alemanha pós-guerra, e hoje comprometida pelas políticas neoliberais dadas em resposta à crise.
Em último lugar, é apontado como ponto característico da nossa administração, o (7) principio da probidade administrativa, que tem como corolário o combate à corrupção. Não podemos dizer que tenha vindo a ser concretixado.

Posta a análise, alerta o caríssimo, há nos dias de hoje uma necessidade de repensar o sistema do direito administrativo, com os tribunais e as universidades à cabeça, para se optar pela manutenção do sistema greco-romano (solução para que se inclina) ou então pela transição para o de common well.
No poder dos tribunais está contrariar uma evolução legislativa contrária aos princípios romano-germânicos, a conseguir pela decretação de inconstitucionalidade e pela interpretação restritiva e extensiva da lei, é pela integração das lacunas da lei; pois num sistema democrático como o nosso, é consensual que o juiz deva atentar ao espírito da lei e não somente à sua letra.

De tudo isto resulta que o Direito Administrativo, tantas vezes olhado como instrumento burocrático de uma Administração Pública quase maquinal, é na verdade o reflexo dos ideais e princípios de uma civilização que, indo, ainda não decidiu bem se quer ficar.



            

 Beatriz Pereira Lourenço

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