Como
ponto de partida é importante estabelecer que toda a atuação da Administração
Pública se encontra subordinada à lei, mas também ao Direito amplamente
considerado, conforme decorre do princípio da legalidade, consagrado no artigo
3.º do Código do Procedimento Administrativo. Porém, tal como ocorre noutras
áreas do Direito, verifica-se impossível ao legislador prever antecipadamente
todas as circunstâncias em que a Administração vai ter de atuar. Assim sendo,
há casos em que a lei regula o exercício dos poderes administrativos com grande
minúcia e pormenor, enquanto noutros casos, remete a decisão para o órgão
administrativo. Nuns a regulamentação legal da atividade administrativa é
precisa, havendo, portanto, uma vinculação da Administração nesses termos
legalmente previstos; noutros essa regulamentação é imprecisa, podendo
identificar-se uma discricionariedade no âmbito da atividade administrativa.
Segundo
Diogo Freitas do Amaral, para a compreensão destes conceitos de vinculação e
discricionariedade podem adotar-se duas perspetivas diferentes: a perspetiva
dos poderes da Administração ou a perspetiva dos atos da Administração. Quanto
à primeira, diz o autor, que o poder é vinculado “ quando a lei não remete para
o critério do respetivo titular a escolha da solução concreta mais adequada”,
contrariamente o poder será discricionário quando o seu exercício fica entregue
ao respetivo titular, “que pode e deve escolher a solução a adotar em cada caso
como mais ajustada à realização do interesse público protegido pela norma que o
confere”.
Quanto
à segunda perspetiva, diz Freitas do Amaral, que os atos são vinculados quando
praticados pela Administração no exercício de poderes vinculados e que são
discricionários quando praticados no exercício de poderes discricionários.
Contudo, faz uma ressalva, afirmando que, em rigor, não há atos totalmente
vinculados nem atos totalmente discricionários, havendo quase sempre alguma
margem de vinculação e alguma margem de discricionariedade. Ou seja, os atos
administrativos são vinculados em relação a certos aspetos e discricionários em
relação a outros.
Para
haver discricionariedade é necessário que a lei atribua à Administração o poder
de escolha entre várias alternativas diferentes de decisão, no entanto essa
escolha não é livre. Ela é condicionada por um conjunto de fatores onde se
integram, não apenas, a competência do órgão decisório e o fim legal, mas
também os princípios e regras gerais que vinculam a Administração Pública, como
a igualdade, proporcionalidade e imparcialidade. Ainda segundo o autor
referido: “ o poder discricionário não é um poder livre, dentro dos limites da
lei, mas um poder jurídico delimitado pela lei”. Podemos dizer que na
discricionariedade a lei não dá ao órgão administrativo competente liberdade
para escolher qualquer solução que respeite a competência e o fim legal. Este
órgão está também obrigado a procurar a melhor solução que satisfaça o
interesse público de acordo com os princípios jurídicos que condicionam ou orientam
a sua atuação.
Para
além da razão, já referida, da impossibilidade de se prever todas as
circunstâncias em que a Administração terá de atuar, que leva portanto à
existência de aspetos vinculados e discricionários nos atos e poderes
administrativos, há também razões jurídicas. Razões essas que se prendem com o
facto de o poder discricionário visar, antes de tudo, assegurar o tratamento
equitativo dos casos individuais. Portanto, o fundamento do poder
discricionário consiste, no fundo, no princípio da separação dos poderes, bem
como na própria conceção do Estado Social de Direito, conceção associada ao
Estado prestador e que pressupõe uma margem jurídica de autonomia decisória.
Em
suma, o poder discricionário, como todo o poder administrativo deriva da lei,
isto é, só existe quando a lei o confere ena medida em que a lei o configura. O
poder discricionário só pode ser exercido por aqueles a quem a lei o atribuir e
para o fim com que a lei o confere, devendo ainda ser exercido em conformidade
com certos princípios jurídicos de atuação.
Quanto
aos seus limites, existem duas formas diferente de limitação jurídica deste
poder: ou através de limites legais ou através da autovinculação. Conforme
sugere o termo, os limites legais são os que resultam da própria lei, sendo que
a lei estabelece, tal como entender, mais ou menos limitações. Dentro deste
âmbito são de reconhecer também os princípios constitucionais relativos ao
exercício da atividade administrativa, como os consagrados no artigo 266.º,
número 1 da Constituição.
Já
quanto à autovinculação, esta prende-se com o facto de a Administração, na base
de uma previsão do que poderá vir a acontecer, ou na base de uma experiência
sedimentada ao longo de vários anos de exercício dos seus poderes, poder
elaborar normas genéricas em que enuncie os critérios a que ela própria
obedecerá na apreciação de cada caso futuro; os critérios de acordo com os
quais vai exercer o seu poder discricionário. Isto significa que a
Administração tinha um poder discricionário nos termos da lei, mas que decidiu
autovincular-se com base em normas genéricas por ela elaboradas. A partir desse
momento essas normas obrigam a Administração, como se de leis se tratassem.
Deste modo, se a Administração violar essas normas genéricas por ela elaboradas
no âmbito da autovinculação do seu poder discricionário, ela cometerá uma
ilegalidade.
No
entanto, importa referir que apesar de a Administração estar vinculada ao
respeito pelas normas que ela elaborou, ela não fica absolutamente impedida de
mudar de critério na apreciação de casos semelhantes, desde que
fundamentadamente. Isto porque o interesse público é variável e à medida que o
tempo vai passando pode levar a mudanças de orientação e de atuação por parte
da Administração.
Ainda
neste contexto da autovinculação importa esclarecer que esta não é ilimitada,
isto é, pode haver casos em que a lei queira que a Administração exerça
efetivamente caso a caso o seu poder de apreciação das circunstâncias
concretas. Portanto, se resultar da interpretação da lei que estamos perante
este tipo de casos, então aí a autovinculação da Administração será ilegal,
sendo necessário, sim, o exercício caso a caso do poder discricionário.
Outro
aspeto a ter em conta prende-se com o possível controlo jurisdicional
relativamente ao exercício do poder discricionário, sendo que existem meios
para tal, apesar de não serem tão intensos como os existentes para os poderes
vinculados. Como ponto de partida, teremos de considerar que a atividade da
Administração está sujeita a vários tipos de controlo: controlos de legalidade
e controlos de mérito; controlos administrativos e controlos jurisdicionais. Os
primeiros visam determinar se a Administração respeitou a lei ou a violou, Os
controlos de mérito têm que ver com a avaliação do bem fundado das decisões da
Administração, ou seja, apurar se foram financeiramente convenientes ou
inconvenientes; socialmente oportunas ou não, entre outros. Os controlos
administrativos são realizados por órgãos da Administração e, logicamente, os
controlos jurisdicionais são efetuados pelos Tribunais.
O
controlo de legalidade pode ser feito quer pelos Tribunais, quer pela própria
Administração; o controlo de mérito só pode ser feito, em Portugal, pela
Administração. Logo, os tribunais administrativos não podem apreciar o mérito
de uma decisão administrativa, O mérito do ato administrativo compreende a
ideia de justiça e a ideia de conveniência. De acordo com Freitas do Amaral, a
justiça de um ato administrativo consiste na adequação desse ato à necessária harmonia
entre o interesse público específico que ele deve prosseguir e os direitos
subjetivos e interesses legalmente protegidos dos particulares eventualmente
afetados pelo ato. A conveniência do ato, já seria a adequação desse ato ao
interesse público específico que justifica a sua prática ou à necessária
harmonia entre tal interesse e os demais interesses públicos eventualmente
afetados pelo ato. A verdade é que hoje se assiste a uma passagem do campo do
mérito para a legalidade, no sentido em que, por exemplo, o princípio da
justiça se encontra consagrado no artigo 266.º, número 2, da Constituição, o
que significa que a sua violação implica ilegalidade. Mas também no que toda à
ideia de conveniência se tem assistido a padrões jurídicos, nomeadamente através
de certas manifestações dos princípios da proporcionalidade e da
imparcialidade.
Focando-nos
agora na incidência dos vários controlos sobre o poder discricionário,
verificamos que o uso de poderes vinculados que tenham sido exercidos contra a
lei é objeto dos controlos de legalidade. Já o uso de poderes discricionários
que tenham sido exercidos de modo inconveniente é objeto dos controlos de
mérito. Quando, por outro lado, e como acontece normalmente, os poderes
utilizados sejam em parte vinculados e em parte discricionários, o seu
exercício ilegal é suscetível de controlo de legalidade; e o seu mau uso é
suscetível de controlo de mérito.
Passando
agora para o último ponto a abordar, falaremos da impugnação dos atos
discricionários. Hoje, entende-se que os atos discricionários podem ser
atacados contenciosamente com fundamento em qualquer dos vícios do ato
administrativo. Alguns exemplos: com fundamento em incompetência; em vício de
forma, relacionado com o não cumprimento de formalidades essenciais que devessem
ser observadas antes de tomada de decisão; com fundamento em violação da lei e
princípios constitucionais; e, por fim, com fundamento em quaisquer defeitos da
vontade, nomeadamente o erro de facto.
Para
concluir, o desvio de poder, um vício correspondente à discrepância entre o fim
efetivamente prosseguido pela Administração e o fim legal, não é, pois a única
ilegalidade possível no exercício dos poderes discricionários, há outras. Para
que se criem condições para um controlo efetivo do exercício do poder
discricionário da Administração, não há que enveredar pelo canal do desvio do
poder, antes pelo alargamento dos casos de incompetência, vício de forma e
violação da lei. É preciso, na perspetiva de Freitas do Amaral, para além de
reforçar os controlos administrativos de mérito, “sujeitar progressivamente
novos aspetos da atividade da Administração a princípios e critérios jurídicos
que a vinculem, de tal modo que os tribunais os possam abranger (…) no âmbito
de um normal controlo jurisdicional da legalidade.”.
Curso de Direito
Administrativo, volume II, 2016, 3ª edição
Diogo Freitas do
Amaral, páginas 65-101.
Catarina Alexandra
Niza Madeira, 28263
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