sexta-feira, 7 de abril de 2017

O poder discricionário



Como ponto de partida é importante estabelecer que toda a atuação da Administração Pública se encontra subordinada à lei, mas também ao Direito amplamente considerado, conforme decorre do princípio da legalidade, consagrado no artigo 3.º do Código do Procedimento Administrativo. Porém, tal como ocorre noutras áreas do Direito, verifica-se impossível ao legislador prever antecipadamente todas as circunstâncias em que a Administração vai ter de atuar. Assim sendo, há casos em que a lei regula o exercício dos poderes administrativos com grande minúcia e pormenor, enquanto noutros casos, remete a decisão para o órgão administrativo. Nuns a regulamentação legal da atividade administrativa é precisa, havendo, portanto, uma vinculação da Administração nesses termos legalmente previstos; noutros essa regulamentação é imprecisa, podendo identificar-se uma discricionariedade no âmbito da atividade administrativa.
Segundo Diogo Freitas do Amaral, para a compreensão destes conceitos de vinculação e discricionariedade podem adotar-se duas perspetivas diferentes: a perspetiva dos poderes da Administração ou a perspetiva dos atos da Administração. Quanto à primeira, diz o autor, que o poder é vinculado “ quando a lei não remete para o critério do respetivo titular a escolha da solução concreta mais adequada”, contrariamente o poder será discricionário quando o seu exercício fica entregue ao respetivo titular, “que pode e deve escolher a solução a adotar em cada caso como mais ajustada à realização do interesse público protegido pela norma que o confere”.
Quanto à segunda perspetiva, diz Freitas do Amaral, que os atos são vinculados quando praticados pela Administração no exercício de poderes vinculados e que são discricionários quando praticados no exercício de poderes discricionários. Contudo, faz uma ressalva, afirmando que, em rigor, não há atos totalmente vinculados nem atos totalmente discricionários, havendo quase sempre alguma margem de vinculação e alguma margem de discricionariedade. Ou seja, os atos administrativos são vinculados em relação a certos aspetos e discricionários em relação a outros.
Para haver discricionariedade é necessário que a lei atribua à Administração o poder de escolha entre várias alternativas diferentes de decisão, no entanto essa escolha não é livre. Ela é condicionada por um conjunto de fatores onde se integram, não apenas, a competência do órgão decisório e o fim legal, mas também os princípios e regras gerais que vinculam a Administração Pública, como a igualdade, proporcionalidade e imparcialidade. Ainda segundo o autor referido: “ o poder discricionário não é um poder livre, dentro dos limites da lei, mas um poder jurídico delimitado pela lei”. Podemos dizer que na discricionariedade a lei não dá ao órgão administrativo competente liberdade para escolher qualquer solução que respeite a competência e o fim legal. Este órgão está também obrigado a procurar a melhor solução que satisfaça o interesse público de acordo com os princípios jurídicos que condicionam ou orientam a sua atuação.
Para além da razão, já referida, da impossibilidade de se prever todas as circunstâncias em que a Administração terá de atuar, que leva portanto à existência de aspetos vinculados e discricionários nos atos e poderes administrativos, há também razões jurídicas. Razões essas que se prendem com o facto de o poder discricionário visar, antes de tudo, assegurar o tratamento equitativo dos casos individuais. Portanto, o fundamento do poder discricionário consiste, no fundo, no princípio da separação dos poderes, bem como na própria conceção do Estado Social de Direito, conceção associada ao Estado prestador e que pressupõe uma margem jurídica de autonomia decisória.
Em suma, o poder discricionário, como todo o poder administrativo deriva da lei, isto é, só existe quando a lei o confere ena medida em que a lei o configura. O poder discricionário só pode ser exercido por aqueles a quem a lei o atribuir e para o fim com que a lei o confere, devendo ainda ser exercido em conformidade com certos princípios jurídicos de atuação.
Quanto aos seus limites, existem duas formas diferente de limitação jurídica deste poder: ou através de limites legais ou através da autovinculação. Conforme sugere o termo, os limites legais são os que resultam da própria lei, sendo que a lei estabelece, tal como entender, mais ou menos limitações. Dentro deste âmbito são de reconhecer também os princípios constitucionais relativos ao exercício da atividade administrativa, como os consagrados no artigo 266.º, número 1 da Constituição.
Já quanto à autovinculação, esta prende-se com o facto de a Administração, na base de uma previsão do que poderá vir a acontecer, ou na base de uma experiência sedimentada ao longo de vários anos de exercício dos seus poderes, poder elaborar normas genéricas em que enuncie os critérios a que ela própria obedecerá na apreciação de cada caso futuro; os critérios de acordo com os quais vai exercer o seu poder discricionário. Isto significa que a Administração tinha um poder discricionário nos termos da lei, mas que decidiu autovincular-se com base em normas genéricas por ela elaboradas. A partir desse momento essas normas obrigam a Administração, como se de leis se tratassem. Deste modo, se a Administração violar essas normas genéricas por ela elaboradas no âmbito da autovinculação do seu poder discricionário, ela cometerá uma ilegalidade.
No entanto, importa referir que apesar de a Administração estar vinculada ao respeito pelas normas que ela elaborou, ela não fica absolutamente impedida de mudar de critério na apreciação de casos semelhantes, desde que fundamentadamente. Isto porque o interesse público é variável e à medida que o tempo vai passando pode levar a mudanças de orientação e de atuação por parte da Administração.
Ainda neste contexto da autovinculação importa esclarecer que esta não é ilimitada, isto é, pode haver casos em que a lei queira que a Administração exerça efetivamente caso a caso o seu poder de apreciação das circunstâncias concretas. Portanto, se resultar da interpretação da lei que estamos perante este tipo de casos, então aí a autovinculação da Administração será ilegal, sendo necessário, sim, o exercício caso a caso do poder discricionário.
Outro aspeto a ter em conta prende-se com o possível controlo jurisdicional relativamente ao exercício do poder discricionário, sendo que existem meios para tal, apesar de não serem tão intensos como os existentes para os poderes vinculados. Como ponto de partida, teremos de considerar que a atividade da Administração está sujeita a vários tipos de controlo: controlos de legalidade e controlos de mérito; controlos administrativos e controlos jurisdicionais. Os primeiros visam determinar se a Administração respeitou a lei ou a violou, Os controlos de mérito têm que ver com a avaliação do bem fundado das decisões da Administração, ou seja, apurar se foram financeiramente convenientes ou inconvenientes; socialmente oportunas ou não, entre outros. Os controlos administrativos são realizados por órgãos da Administração e, logicamente, os controlos jurisdicionais são efetuados pelos Tribunais.
O controlo de legalidade pode ser feito quer pelos Tribunais, quer pela própria Administração; o controlo de mérito só pode ser feito, em Portugal, pela Administração. Logo, os tribunais administrativos não podem apreciar o mérito de uma decisão administrativa, O mérito do ato administrativo compreende a ideia de justiça e a ideia de conveniência. De acordo com Freitas do Amaral, a justiça de um ato administrativo consiste na adequação desse ato à necessária harmonia entre o interesse público específico que ele deve prosseguir e os direitos subjetivos e interesses legalmente protegidos dos particulares eventualmente afetados pelo ato. A conveniência do ato, já seria a adequação desse ato ao interesse público específico que justifica a sua prática ou à necessária harmonia entre tal interesse e os demais interesses públicos eventualmente afetados pelo ato. A verdade é que hoje se assiste a uma passagem do campo do mérito para a legalidade, no sentido em que, por exemplo, o princípio da justiça se encontra consagrado no artigo 266.º, número 2, da Constituição, o que significa que a sua violação implica ilegalidade. Mas também no que toda à ideia de conveniência se tem assistido a padrões jurídicos, nomeadamente através de certas manifestações dos princípios da proporcionalidade e da imparcialidade.
Focando-nos agora na incidência dos vários controlos sobre o poder discricionário, verificamos que o uso de poderes vinculados que tenham sido exercidos contra a lei é objeto dos controlos de legalidade. Já o uso de poderes discricionários que tenham sido exercidos de modo inconveniente é objeto dos controlos de mérito. Quando, por outro lado, e como acontece normalmente, os poderes utilizados sejam em parte vinculados e em parte discricionários, o seu exercício ilegal é suscetível de controlo de legalidade; e o seu mau uso é suscetível de controlo de mérito.
Passando agora para o último ponto a abordar, falaremos da impugnação dos atos discricionários. Hoje, entende-se que os atos discricionários podem ser atacados contenciosamente com fundamento em qualquer dos vícios do ato administrativo. Alguns exemplos: com fundamento em incompetência; em vício de forma, relacionado com o não cumprimento de formalidades essenciais que devessem ser observadas antes de tomada de decisão; com fundamento em violação da lei e princípios constitucionais; e, por fim, com fundamento em quaisquer defeitos da vontade, nomeadamente o erro de facto.
Para concluir, o desvio de poder, um vício correspondente à discrepância entre o fim efetivamente prosseguido pela Administração e o fim legal, não é, pois a única ilegalidade possível no exercício dos poderes discricionários, há outras. Para que se criem condições para um controlo efetivo do exercício do poder discricionário da Administração, não há que enveredar pelo canal do desvio do poder, antes pelo alargamento dos casos de incompetência, vício de forma e violação da lei. É preciso, na perspetiva de Freitas do Amaral, para além de reforçar os controlos administrativos de mérito, “sujeitar progressivamente novos aspetos da atividade da Administração a princípios e critérios jurídicos que a vinculem, de tal modo que os tribunais os possam abranger (…) no âmbito de um normal controlo jurisdicional da legalidade.”.

Curso de Direito Administrativo, volume II, 2016, 3ª edição
Diogo Freitas do Amaral, páginas 65-101.

Catarina Alexandra Niza Madeira, 28263

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