Contratos Administrativos
Comprometemo-nos
a abordar um dos problemas mais complexos e discutidos no direito
administrativo moderno, de forma leve e sucinta.
O
contrato administrativo é o acordo de
vontades pelo qual é constituída, modificada ou extinta uma relação jurídica
administrativa. A celebração de negócios jurídicos, nomeadamente contratos,
é um instrumento fulcral para o bom funcionamento da Administração Pública; a
complexidade do próprio “corpo” administrativo impõe formas de coordenação
interadministrativa (e.g.: A Administração celebra contratos de fornecimento
com privados, de onde obtém medicamentos para hospitais ou - outro exemplo -
material escolar para estabelecimentos de ensino público).
Sem uma margem de
autossuficiência, esta última não conseguiria dar exequibilidade aos seus
objectivos, decorrentes, nomeadamente, do princípio sumo do Direito
Administrativo: a prossecução do
interesse público e da protecção dos direitos e interesses dos cidadãos (art.
4.º do CPA). Mas nem sempre assim foi; nem sempre se admitiu a possibilidade de
a Administração se vincular através de contratos, pois o costume, influenciado
pela ideia de autoridade proveniente da tenra
idade do Direito Admnistrativo e subsequentes traumas[1],
ditava a unilateralidade como sendo uma forma típica de actuação.
Mais tarde,
reconhece-se à Administração Pública, não só capacidade de outorgar contratos
administrativos (de espécie meramente pública), mas a de se vincular a
contratos de natureza jurídico-privada, onde subjazem as regras de Direito
Comercial, Civil e do Trabalho. Assim, no fim do séc. XX, ocorre uma paulatina
ocupação das áreas do Direito Privado de âmbito contratual por parte do Direito
Administrativo, de onde nasce a incerteza entre contratos administrativos e
contratos da administração concretizados ao abrigo do Direito Privado. Face a
esta incerteza de conceitos, surge a questão da eventual dissolução das duas
figuras em epígrafe numa só, tal como contratos
públicos ou contratos da
administração.
Passaremos
de forma breve pelos critérios de suma relevância histórica ou actual, que
segundo a apresentação feita pelos Professores Marcelo Rebelo de Sousa e André
Salgado de Matos, são:
Þ
A
taxatividade legal
Consideram-se contratos
administrativos aqueles que sejam expressamente designados por lei e de direito
privado os restantes.
A sua grande vantagem reside na
segurança jurídica, pois proporciona a redução, ao mínimo possível, das dúvidas
acerca da qualificação jurídica dos contratos da administração, nomeadamente
quanto aos efeitos de apuramento da jurisdição competente. Com o art. 9.º/1 do
ETAF e art. 178.º/1 do CPA – hoje revogados -, estes contratos passam a ser
delimitados por recurso a uma cláusula geral, que se encontra implícita na
noção de contrato administrativo presente no CCP. De acordo, o elenco legal de
contratos administrativos passou a ter carácter meramente exemplificativo.
Þ
Natureza
dos sujeitos
Os contratos administrativos concernem-se
àqueles em que a administração seja sujeito e de direito privado os restantes.
Note-se que, à data de formulação
deste critério, não era aceite a integração de privados, em sentido orgânico,
na administração pública - questão hoje ultrapassada como sucesso.
Aos olhos dos Professores Marcelo
Rebelo de Sousa e André Salgado Matos, este é imprestável, pois a consequência da sua aplicação prática seria que
todos os contratos da administração fossem contratos administrativos.
Þ
Cláusulas
de sujeição
Os contratos cujo conteúdo atribui
poderes de supremacia ao contratante administrativo sobre o contratante
particular são contratos administrativos;
Serão contratos de direito privado
aqueles em que a administração se relaciona com os contraentes privados em
condições de igualdade.
À luz dos autores em epígrafe, este
revela-se criticável: a partir de uma
caracterização anacrónica do direito administrativo como ordem jurídica da
supraordenação do Estado em relação à sociedade, assumindo, sem demonstrar, que
a existência de uma situação de paridade é incompatível com o carácter
jurídico-administrativo de uma relação jurídica.
Þ
Regime
de sujeição
Consideram-se contratos
administrativos aqueles que em virtude dos quais, por força do seu regime
jurídico, o contratante administrativo fica colocado numa posição de supremacia
em relação ao co-contratante particular.
Þ
Direito
Estatuário
Tratam-se por contratos
administrativos aqueles aos quais se aplique o direito administrativo como
direito comum – estatuto jurídico – da função administrativa ou pública; os contratos
de direito privado da Administração são aqueles aos quais se aplique o direito
privado.
Þ
Objecto
do contratos
Os contratos que incidam sobre
relações jurídicas administrativas são, naturalmente, contratos
administrativos; e serão contratos de direito privado aqueles que incidam sobre
relações jurídicas de direito privado. A formulação é aparentemente simples,
mas limita-se a distinguir o contrato administrativo das relações jurídicas
administrativas. A referência ao objecto pode ser útil para efeitos de
descrição conceptual do contrato administrativo, mas não enquanto critério da
sua identificação.
Þ
Fim
do contrato
São contratos administrativos os que
visem a prossecução de fins de imediata utilidade pública (funcional); e de
direito privado aqueles que visem a prossecução de fins que só mediatamente
prossigam tal utilidade.
Þ
Grau
de intensidade do interesse público prosseguido
São contratos administrativos aqueles
que visem a prossecuão do interesse público, de forma tal que este tem
necessariamente que prevalecer sobre os interesses privados contrastantes e
conflituantes (direito público); e de direito privado aqueles cujo interesse
público é prosseguido de acordo com um regime de paridade com os interesses
privados contrastantes e conflituantes (direito privado).
Þ
Ambiente
de Direito Administrativo
São administrativos aqueles cujo
contexto factual e normativo permita concluir pela aplicação do direito
administrativo, sendo de direito privado os restantes contratos da
administração.
Alguns
dos critérios em epígrafe suscitaram, ao longo dos tempos, diferentes posições
doutrinárias, tais como:
·
Os
Professores Diogo Freitas do Amaral, Sérvulo Correia, Marcelo Rebelo de Sousa e
André Salgado de Matos defendiam a autonomia do contrato administrativo.
Diogo Freitas do Amaral definia contrato
administrativo conforme o critério do objecto, de acordo com o qual a relação jurídica de direito administrativo
será aquela que confere poderes de autoridade ou impõe restrições de interesse
público à Administração perante os particulares, ou que atribui direitos ou
impõe deveres públicos aos particulares perante a mesma Administração;
Sérvulo Correia – pelo que percebemos
- posicionou-se a meio caminho entre o critério do objecto e o critério
estatutário, sendo que, este último, é que o define;
Marcelo Rebelo de Sousa e André
Salgado Matos dizem que o contrato administrativo é apenas uma espécie de
contrato, pelo que a sua autonomia consubstancia-se na presença obrigatória do
interesse público como objectivo intemporal da Administração Pública. Mais: não
só se deve encontrar presente, como prevalecer sobre os interesses privados;
Outro argumento utilizado por outros
doutrinadores é o facto do artigo 278º do CCP autonomizar o contrato
administrativo, conferindo-lhe uma epígrafe e correspondente capítulo.
·
Maria
João Estorninho – aderindo às teses negativistas - diz-nos que o contrato administrativo seria resultado de
um acaso, fruto de uma especial interpretação do princípio da separação de
poderes e do princípio da repartição jurisdicional de competências, verificando-se
primeiro a autonomização processual de certos contratos da Administração e, só
num segundo momento terá tido início a substantivação da figura do contrato
administrativo.
Por fim, considera que o regime jurídico do contrato administrativo
é, em si mesmo, compatível com o Direito contratual comum. Ou seja, há uma
identidade fundamental de natureza da contratação administrativa sujeita (toda
ela), em maior ou menor grau, a uma disciplina normativa de direito público.
%
A
solução do problema passa pela prossecução do interesse público e exercício da
função administrativa: o fenómeno da administrativização do regime dos
contratos da administração tem esbatido fronteiras entre contratos
administrativos e contratos de direito privado da administração.
Após
a revisão de 2015, a Parte IV do CPA passou a incluir o capítulo III, no âmbito
do qual, no art. 200.º/1, se retoma a clássica contraposição entre contratos
administrativos e contratos de direito privado da Administração Pública.
Como
já foi mencionado, o Direito Administrativo é o Direito comum da actividade
administrativa. Assim sendo, a única conclusão plausível diz-nos que todos os
contratos da Administração Pública estão confinados às normas do Direito comum
da actividade. A par e passo destes, estão os contratos celebrados por entidades
privadas em conjunto com a Administração que, desta forma, devem ser
qualificados como contratos públicos, pois está subjacente um regime público
administrativo.
Os
contratos administrativos,
a que fazem referência os artigos 1º, n.º 6, 3º, 8º e a Parte III do CCP, são
contratos com um estatuto próprio de Direito Administrativo, que com este ramo
do Direito estabelecem uma relação de maior intensidade;
Os
contratos de direito privado da Administração Pública (e.g.: contrato de arrendamento de
imóvel celebrado pela Administração Pública para instalação dum serviço
público), com sede legal no art. 200.º do CPA, são contratos que, embora não
deixem de estar sujeitos à aplicação de normas de Direito Administrativo,
estão, em primeria ordem, submetidos a um regime de direito privado por
contraposição aos contratos administrativos, que se caracterizam por
encontrarem o seu regime primordial, de forma óbvia, no Direito Administrativo.
Assim, apesar do regime introduzido pelo CCP sobre a matéria, faz sentido
distinguir, no seio dos contratos que se encontram submetidos a regimes de
contratação pública, entre contratos administrativos e contratos de direito
privado da Administração Pública.
Os
contratos submetidos à aplicação de regimes procedimentais de formação
regulados por normas de Direito Administrativo (e.g. adjudicação do contrato)
merecem a nossa atenção, uma vez que, em conformidade com a legislação Europeia
da contratação pública (directivas da União Europeia), quando a Administração
Pública se propõe celebrar contratos que têm por objeto a aquisição de
prestações no mercado, deve observar as determinações impostas pelas normas de
Direito Administrativo que, nesse domínio, disciplinam o modo de formação da
vontade do contraente público e o modo de escolha do co-contratante (regimes
procedimentais pré-contratuais públicos previstos em legislação especial ou na
parte II do CCP), de acordo com o art. 201.º do CPA.
Concluindo:
Note-se
que, concordando com o Professor Diogo Freitas do Amaral, o contrato administrativo não é sinónimo de
qualquer contrato celebrado pela Administração Pública: só é contrato
administrativo o contrato com um regime jurídico traçado pelo Direito
Administrativo (arts. 1.º/6, 279.º e 280.º do CCP). Hoje, o contrato administrativo
não necessita de habilitação legal específica. Segundo o art. 278.º do CCP e o
art. 200.º/3 do CPA, estamos, pelo contrário, perante uma habilitação genérica
que deixa ao abrigo da Administração uma margem de livre decisão para optar
pela via contratual (que se mostrou, muitas das vezes, mais eficiente e eficaz
do que o acto administrativo). Porém, na nossa ordem jurídica, o contrato
administrativo continua a ser a opção subsidiária, alternativa, depois - tendo
como base uma ordem decrescente -, do acto administrativo e do contrato de
direito privado (“salvo se outra coisa resultar da lei ou da natureza das
relações a estabelecer.”- excerto do art. 278.º do CCP). Esta opção é
confirmada pelo critério do regime
jurídico pré-contratual e do fim da prestação do co-contratante em
epígrafe, de Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos. Por outro lado,
a subsidariedade da utilização do contrato não significa que estas duas figuras
não possam ser cumulativas.
Bibliografia:
AMARAL,
Diogo Freitas do; Curso de Direito Administrativo, vol. II, 2ª edição - 2ª
reimpressão, Coimbra, Almedina, 2012;
SOUSA,
Marcelo Rebelo de; MATOS, André Salgado de; Direito Administrativo Geral:
Atividade Administrativa, Tomo III, 1ª Edição, Lisboa, Publicações D. Quixote,
2007;
ALMEIDA,
Mário Aroso de; Teoria Geral do Direito Administrativo – novo regime do código
de procedimento administrativo, Coimbra,
Almedina, 2015.
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