quarta-feira, 5 de abril de 2017

O dever de fundamentação do ato como formalidade essencial

O dever de fundamentação vê a sua base legal no artigo 152.º do Código de Procedimento Administrativo, daí podemos retirar que a Administração está subordinada a um dever legal de fundamentar as razões que a levaram a praticar certo ato e explicitar os motivos que a conduziram a decidir de certa forma.

Fazendo um recuo no tempo é possível perceber que este dever nem sempre este consagrado nos ordenamentos jurídicos, não só no português mas também nos estrangeiros. Em Portugal ele surgiu no período pós 25 de Abril em que se progredia no sentido do reforço das garantias dos particulares em prol da afirmação do Estado de Direito Democrático (veja-se o art. 1.º do D.L. n.º 256- A/ 77, de 17 de junho).
Daqui vai resultar a sua consagração como imperativo constitucional no artigo 268.º, n.º 3, parte final, da Constituição da República Portuguesa.

Os casos em que existe dever de fundamentação estão consagrados no artigo 152.º, n.º 1, do CPA e elencam, em geral, atos lesivos de interesses de terceiros (a chamada matriz dos “atos de gravame”). Por sua vez, nem todos os atos têm esta obrigação genérica de fundamentação, daí que o n.º 2 do artigo 152.º trate os casos em que existe uma dispensa de fundamentação.
Surge então uma questão: Porque existe o dever de fundamentar apenas em alguns atos e não em todos? Tomando por base a perspetiva do professor Rui Machete podemos apontar essencialmente as seguintes funções desta formalidade: 
  • Primeiro que tudo deve ter-se presente que o dever de fundamentação, como já referi, resulta de uma preocupação de defender o particular e a sua segurança jurídica, sendo que este, por regra, só a partir da fundamentação pode apreciar e questionar a legalidade do ato administrativo e, assim, ponderar a hipótese de impugnação da decisão.
  • Ao mesmo tempo, ele pretende também pacificar as relações entre a Administração e os particulares, na medida em que o particular tem sempre tendência a aceitar melhor uma decisão que lhe seja desfavorável se esta lhe for clarificada já que assim este irá perceber melhor quais os factos que levaram à tomada dessa decisão, em vez de a aceitar injustificadamente.
  • Esta formalidade vai ainda satisfazer o interesse público na medida em que vai exercer um papel de “controlo da Administração” já que a Administração nunca será um organismo perfeito e, como tal, precisa de uma certa supervisão que garanta que todos os fatores que possam interessar á tomada de decisão foram tidos em conta e que foi tomada a decisão mais adequada, ora o dever de fundamentação vem obrigar a essa ponderação de fatores. Sendo que vai ainda facilitar o trabalho aos órgãos de supervisão que vão uma melhor visão da motivação do ato.
  • Tem ainda uma vertente de cumprimento das exigências de transparência da atividade administrativa.

Os requisitos da fundamentação constam do artigo 153.º do CPA sendo que a fundamentação deve ser expressa, isto é, enunciada explicitamente; tem de consistir na exposição dos fundamentos, quer de facto quer de direito, que levaram à tomada daquela decisão; tem de ser “clara, coerente e completa”.
A falta de fundamentação tem como consequência a ilegalidade do ato administrativo por falta de forma, o que resulta na sua anulabilidade, como dispõe o n.º 1 do art. 163.º, do CPA. No entanto, como resultado do princípio do aproveitamento do ato administrativo, os vícios da fundamentação (e não a carência da mesma) podem não gerar a invalidade do ato viciado nos casos em que o tribunal esteja convencido de que o ato só da forma que foi realizado seria admissível. 

Pode concluir-se assim que a fundamentação tem um papel bastante relevante no mundo administrativo na medida em que é através dela que nos é permitido compreender quais as reais intenções dos órgãos administrativos, esclarecendo corretamente qual a verdadeira motivação do ato. Para além disto ela mostra-nos ainda, na esteira do que nos diz o professor Vasco Pereira da Silva e contrariando a posição do professor Sérvulo Correia, que a margem de decisão da Administração nunca é livre já que esta, para além de ter que respeitar sempre certos princípios (como os princípios constitucionais) tem ainda sempre que ser fundamentada, não podendo aqui funcionar o arbítrio do decisor já que isto iria resultar ou na não existência de fundamentação da sua decisão, ou numa fundamentação insuficiente ou obscura.
Ressalva-se ainda que, apesar de tudo, este controlo pode ainda nos dias de hoje ser de certo modo limitado.
É perfeitamente compreensível a sua existência nos dias que correm e parece-me ser essencial no panorama democrático em que vivemos já que ajuda a limitar a arbitrariedade da administração e vem ainda reafirmar a soberania popular (afirmada no art. 2.º da CRP) na medida em que sendo esta soberania residente no povo parece-me correto que este tenha o direito de conhecer não só os atos administrativos mas também as razões que fundamentam a atuação da Administração nesse sentido, na medida em que esta se rege pelo princípio da prossecução do interesse público. Parece-me também perfeitamente justificável que a sua carência resulte na ilegalidade do ato já que tudo se prende com uma questão de transparência e de perceber se o agente decisor da Administração é verdadeiro nas suas motivações e convicções, se o dever de fundamentação não existisse haveriam decisões que se tornariam imperceptíveis, e a a Administração deve ser transparente, se um decisor público não for transparente então parece-me evidente que não deve desempenhar este papel.

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Bibliografia:
AMARAL, Diogo Freitas do; Curso de Direito Administrativo, vol. II, 3ª edição, Coimbra, 2016.
Vasco Pereira da Silva, aulas teóricas de Direito Administrativo II, na regência da turma B do 2.º ano, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Março de 2017.
SOUSA, Marcelo Rebelo de; e MATOS, André Salgado de; Direito Administrativo Geral, tomo III, 2.ª edição, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2009.


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Beatriz Sousa, n.º 28226

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