segunda-feira, 3 de abril de 2017



O Poder Discricionário da Administração e a sua subordinação à legalidade

Antes que mais, importa definir o que é o poder discricionário da Administração. Tal exercício é difícil e trabalhoso, devido à multiplicidade de concepções que foram existindo ao longo dos anos.
Façamos uma leitura rápida pelas posições dos autores.
A doutrina portuguesa tradicional, de MARCELLO CAETANO  e AFONSO QUEIRÓ inclui o poder discricionário da Administração na categoria das excepções do princípio da legalidade, (1) juntamente com a teoria do estado de necessidade e a teoria dos actos políticos.
Esta leitura tradicional das excepções ao princípio da legalidade já não é hoje bem acolhida pela Doutrina portuguesa – algo que faz todo o sentido.
E porquê é que faz sentido esse abandono da teoria das excepções ao princípio da legalidade? Porque o que este princípio admite é que nos três casos acima enunciados – estado de necessidade, actos políticos e poder discricionário – a Administração não está sujeita à lei, assim como ao escrutínio dos tribunais administrativos.
Tal concepção é, nos nossos dias, errada.
Em primeiro lugar, como é sabido, a Administração Pública está sujeita ao princípio da legalidade: todos os seus actos têm de ter fundamento na lei, não podem cair do céu. É o que nos dizem o artigo 266, número 2 da Constituição (2) e o artigo terceiro, número 1 do Código de Procedimento Administrativo.
Portanto, observando somente a letra dos diplomas agora referidos, o poder discricionário da Administração é vedado por lei, pelo menos na sua concepção clássica, seguida por MARCELLO CAETANO, que o poder discricionário da Administração permitiria a esta eximir-se do princípio da legalidade e do controlo pelos tribunais em certos casos.
Tal é um erro, com todo o respeito que a obra de Marcello Caetano na área do Direito Administrativo nos merece. Num Estado de Direito democrático como é o português, admitir esta antiquada concepção de poder discricionário é admitir que a Administração pode tomar as decisões que quiser, atropelando as leis que a regulam e os direitos dos administrados a seu bel-prazer!
VASCO PEREIRA DA SILVA critica a ideia tradicional das excepções ao princípio da legalidade. Na opinião do professor, “ o que a Administração faz é  sempre concretizar perante o caso concreto concretizar a vontade do legislador, a vontade da ordem jurídica, a vontade do Direito no seu conjunto.” (4) Este rejeita categoricamente a ideia de que a Administração tem liberdade de acção, pois, mesmo no domínio do poder discricionário, esta terá sempre de cumprir a legalidade.
Analisemos agora outras opiniões sobre o poder discricionário da Administração, começando pela opinião de MARCELO REBELO DE SOUSA e ANDRÉ SALGADO DE MATOS.
Estes definem poder discricionário como “ uma liberdade conferida por lei à Administração para que esta escolha entre várias alternativas de actuação juridicamente admissíveis.” (5)
O poder discricionário, segundo os Autores, desdobra-se em três ideias – a discricionariedade de acção ( a liberdade entre agir e não agir), discricionariedade de escolha ( a escolha entre duas ou mais alternativas estipuladas pela lei) e a discricionariedade criativa, que é a de criar uma actuação concreta, mas sempre no domínio da lei. (6)
Passemos á concepção de FREITAS DO AMARAL.. Para o Autor, o poder discricionário distingue-se do poder vinculado da seguinte forma: o segundo ocorre nos casos em que a lei não “remete para o critério do respectivo titular a escolha da solução concreta mais adequada”(7) e o primeiro é aquele em que o seu exercício fica “entregue ao critério do respectivo titular, que pode e deve escolher a solução a adoptar em cada caso como mais ajustada à realização do interesse público protegido.”
Mas Freitas do Amaral sublinha que não há actos completamente discricionários e actos completamente vinculados. (9)
Mas o que mais nos interessa para este trabalho é o facto do autor – na senda de Vasco Pereira da Silva, Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos, assim como Sérvulo Correia – deixar bastante explícito que o poder discricionário está sempre debaixo da alçada da lei, sempre debaixo do rule of law, como dizem os britânicos:
“ (…) Em suma, na discricionariedade, a lei não dá ao órgão administrativo competente liberdade para escolher qualquer solução que respeite a competência e o fim legal, antes o obriga a procurar a melhor solução que satisfaça o interesse público de acordo com os princípios jurídicos que condicionam ou orientam a sua actuação.” (10)
VIEIRA DE ANDRADE tem opinião coincidente:
“ a discricionariedade não é uma liberdade (…), mas sim uma competência (…) a Administração não é remetida para um arbítrio (…) não pode fundar na sua vontade as decisões que toma. (…)” (11)
Portanto, que conclusões é que retiramos da leitura das posições dos Autores acima referidos?
Concluímos que a discricionariedade nos actos da Administração - que é necessária por motivos de celeridade e rapidez na decisão, sublinhe-se(12) – esta tem de estar sempre sob a alçada da lei e dos princípios do Direito – e qualquer desvio destes é inaceitável na ordem jurídica hodierna. Assim, e não obstante as discordâncias dos Autores aqui sobre a natureza do poder discricionário, todos concordam que este poder só o é porque a sua legitimidade deriva da lei.
2 - 2. Os órgãos e agentes administrativos estão subordinados à Constituição e à lei(…)
3 -  Os órgãos da Administração Pública devem actuar em obediência à lei e ao direito, dentro dos limites dos poderes que lhes forem conferidos e em conformidade com os respectivos fins.
4 – Ensino oral de VASCO PEREIRA DA SILVA – frase retirada da transcriação da aula de 6 de Março de 2017, feita por colegas de turma.
5 - MARCELO REBELO DE SOUSA e ANDRÉ SALGADO DE MATOS, Direito Administrativo Geral, vol.I, pág. 180.
6 – Idem.
 7 - DIOGO FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, vol.II – pág. 86
8 – Idem
9 – Idem ibidem
10 – Idem, págs. 91 e 92.
11 – VIEIRA DE ANDRADE, citado em DIOGO FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, vol.II, pág. 90
12 Sobre a necessidade da discricionariedade na Administração Pública, ver DIOGO FREITAS DO AMARAL, Curso…, vol.II,, págs. 95 a 98.


Ricardo Mendonça
 

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