O Poder
Discricionário da Administração e a sua subordinação à legalidade
Antes que
mais, importa definir o que é o poder discricionário da Administração. Tal
exercício é difícil e trabalhoso, devido à multiplicidade de concepções que
foram existindo ao longo dos anos.
Façamos uma
leitura rápida pelas posições dos autores.
A doutrina
portuguesa tradicional, de MARCELLO CAETANO
e AFONSO QUEIRÓ inclui o poder discricionário da Administração na
categoria das excepções do princípio da legalidade, (1) juntamente com a
teoria do estado de necessidade e a teoria dos actos políticos.
Esta leitura
tradicional das excepções ao princípio da legalidade já não é hoje bem acolhida
pela Doutrina portuguesa – algo que faz todo o sentido.
E porquê é
que faz sentido esse abandono da teoria das excepções ao princípio da
legalidade? Porque o que este princípio admite é que nos três casos acima
enunciados – estado de necessidade, actos políticos e poder discricionário – a
Administração não está sujeita à lei, assim como ao escrutínio dos tribunais
administrativos.
Tal
concepção é, nos nossos dias, errada.
Em primeiro
lugar, como é sabido, a Administração Pública está sujeita ao princípio da
legalidade: todos os seus actos têm de ter fundamento na lei, não podem
cair do céu. É o que nos dizem o artigo 266, número 2 da Constituição (2) e o
artigo terceiro, número 1 do Código de Procedimento Administrativo.
Portanto,
observando somente a letra dos diplomas agora referidos, o poder discricionário
da Administração é vedado por lei, pelo menos na sua concepção clássica,
seguida por MARCELLO CAETANO, que o poder discricionário da Administração
permitiria a esta eximir-se do princípio da legalidade e do controlo pelos
tribunais em certos casos.
Tal é um
erro, com todo o respeito que a obra de Marcello Caetano na área do Direito
Administrativo nos merece. Num Estado de Direito democrático como é o
português, admitir esta antiquada concepção de poder discricionário é admitir
que a Administração pode tomar as decisões que quiser, atropelando as leis que
a regulam e os direitos dos administrados a seu bel-prazer!
VASCO
PEREIRA DA SILVA critica a ideia tradicional das excepções ao princípio da
legalidade. Na opinião do professor, “ o que a Administração faz é sempre concretizar perante o caso concreto
concretizar a vontade do legislador, a vontade da ordem jurídica, a vontade do
Direito no seu conjunto.” (4) Este rejeita categoricamente a ideia de que a
Administração tem liberdade de acção, pois, mesmo no domínio do poder
discricionário, esta terá sempre de cumprir a legalidade.
Analisemos
agora outras opiniões sobre o poder discricionário da Administração, começando
pela opinião de MARCELO REBELO DE SOUSA e ANDRÉ SALGADO
DE MATOS.
Estes definem
poder discricionário como “ uma liberdade conferida por lei à Administração
para que esta escolha entre várias alternativas de actuação juridicamente
admissíveis.” (5)
O poder
discricionário, segundo os Autores, desdobra-se em três ideias – a
discricionariedade de acção ( a liberdade entre agir e não agir),
discricionariedade de escolha ( a escolha entre duas ou mais alternativas
estipuladas pela lei) e a discricionariedade criativa, que é a de criar uma
actuação concreta, mas sempre no domínio da lei. (6)
Passemos á
concepção de FREITAS DO AMARAL.. Para o Autor, o poder discricionário
distingue-se do poder vinculado da seguinte forma: o segundo ocorre nos casos
em que a lei não “remete para o critério do respectivo titular a escolha da
solução concreta mais adequada”(7) e o primeiro é aquele em que o seu exercício
fica “entregue ao critério do respectivo titular, que pode e deve escolher a
solução a adoptar em cada caso como mais ajustada à realização do interesse
público protegido.”
Mas Freitas
do Amaral sublinha que não há actos completamente discricionários e actos
completamente vinculados. (9)
Mas o que
mais nos interessa para este trabalho é o facto do autor – na senda de Vasco
Pereira da Silva, Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos, assim como
Sérvulo Correia – deixar bastante explícito que o poder discricionário está
sempre debaixo da alçada da lei, sempre debaixo do rule of law, como dizem os britânicos:
“ (…) Em
suma, na discricionariedade, a lei não dá ao órgão administrativo competente
liberdade para escolher qualquer solução que respeite a competência e o fim
legal, antes o obriga a procurar a melhor solução que satisfaça o interesse
público de acordo com os princípios jurídicos que condicionam ou orientam a sua
actuação.” (10)
VIEIRA DE
ANDRADE tem opinião coincidente:
“ a
discricionariedade não é uma liberdade (…), mas sim uma competência (…) a
Administração não é remetida para um arbítrio (…) não pode fundar na sua
vontade as decisões que toma. (…)” (11)
Portanto,
que conclusões é que retiramos da leitura das posições dos Autores acima
referidos?
Concluímos
que a discricionariedade nos actos da Administração - que é necessária por
motivos de celeridade e rapidez na decisão, sublinhe-se(12) – esta tem de estar
sempre sob a alçada da lei e dos princípios do Direito – e qualquer desvio
destes é inaceitável na ordem jurídica hodierna. Assim, e não obstante as
discordâncias dos Autores aqui sobre a natureza do poder discricionário, todos
concordam que este poder só o é porque a sua legitimidade deriva da lei.
1 – Ver DIOGO FREITAS DO
AMARAL, Curso de Direito Administrativo, vol.II,
pág 61 e seguintes
2 - 2. Os órgãos e agentes administrativos estão subordinados à
Constituição e à lei(…)
3 - Os
órgãos da Administração Pública devem actuar em obediência à lei e ao direito,
dentro dos limites dos poderes que lhes forem conferidos e em conformidade com
os respectivos fins.
4 – Ensino oral de VASCO PEREIRA DA SILVA – frase retirada
da transcriação da aula de 6 de Março de 2017, feita por colegas de turma.
5 - MARCELO REBELO DE SOUSA e ANDRÉ SALGADO DE MATOS, Direito Administrativo Geral, vol.I,
pág. 180.
6 – Idem.
7 - DIOGO FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, vol.II
– pág. 86
8 – Idem
9 – Idem ibidem
10 – Idem, págs. 91 e 92.
11 – VIEIRA
DE ANDRADE, citado em DIOGO FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, vol.II, pág. 90
12 Sobre a
necessidade da discricionariedade na Administração Pública, ver DIOGO FREITAS
DO AMARAL, Curso…, vol.II,, págs. 95
a 98.
Ricardo Mendonça
Sem comentários:
Enviar um comentário