I) Uma das temáticas de maior interesse
para o Direito no geral reporta-se à obrigação de indemnizar pelos factos que
dão origem aos danos sofridos por outrem[1], ou o comummente
denominado instituto da responsabilidade civil.
O interesse dogmático desta questão é
fundamental para compreender a ordem jurídica na sua globalidade, na medida que
a existência deste instituto corresponde ao primeiro e último fundamento da
ideia de Justiça - Aristóteles foi o primeiro a abordar o tema, através da sua
formulação da justiça comutativa[2], sendo que os romanos
através do brocardo “Suum cuique tribuere”
elevaram e desenvolveram esta ideia que permaneceu no ideário jurídico até
à realidade actual. Indubitavelmente,
partindo desta ideia milenar assume-se a premissa de que para “dar a cada um, o
que é seu”, é necessário saber primeiramente o que é de “cada um”, logo após
esse exercício procede-se à imputação do responsável o “que é seu”. Neste
sentido compreende-se a existência do instituto para o regular o bom
funcionamento das relações jurídicas e do ordenamento, especialmente nos dias
de hoje, devido à complexidade e disseminação do tráfego jurídico.
No âmbito do Direito Administrativo,
esta matéria revela na mesma medida uma importância ímpar, não tivesse Maurice
Hauriou declarado que “as duas principais teorias do Direito Administrativo são
o recurso contencioso contra decisões executórias da Administração e a das
responsabilidades pecuniárias em que incorre a Administração no exercício da
sua actividade”[3].
A nossa constituição reporta-se a esta temática nos artigos nº 22º e 227º. O
primeiro artigo enunciado visa responsabilizar o Estado pelos danos resultantes
do exercício da função política, legislativa, administrativa e jurisdicional,
ou seja, é uma disposição geral que se apresenta como limitação à actuação do
Estado, dado que abrange a responsabilidade por actos ilícitos, actos lícitos,
e pelo risco, sendo a lei 67/2007 de 31 de Dezembro, a concretização específica
deste regime; Já o artigo 271º tem um alcance diferente, conquanto aponta à
responsabilidade dos funcionários e agentes do Estado pelas acções e omissões
praticadas no exercício das suas funções que sejam propícias a lesar os
interesses de terceiros (vide, por
exemplo, o artigo 271º/2, que demonstra como um agente deve agir de modo a
evitar a responsabilização), trata-se de uma disposição mais instrumentalizada
e específica[4].
Todavia, esta é uma matéria que se
afirma de difícil apreensão, derivado das diversas vicissitudes históricas e
dogmáticas da disciplina e do próprio instituto em questão. Evidentemente, as
dificuldades só podem ser ultrapassadas através de um profundo exercício
exegético, algo que não nos propomos realizar nesta sede. O objecto deste
excerto cinge-se a uma avaliação mais específica, e que pessoalmente nos
desperta bastante interesse pela similitude com a sua congénere no direito
civil, embora contenha algumas alterações, falamos da responsabilidade
extra-contratual subjectiva da Administração.
II) Originalmente a
responsabilidade emergente por danos causados pela Administração era meramente
subjectiva, exigindo portanto um juízo de censura sobre o comportamento
causador de dano, que consecutivamente poderia ter sido evitado caso se tivesse
optado por uma conduta menos gravosa e possivelmente menos danosa[5].
Sem dúvida, é mais que óbvio que tal
como a responsabilidade delitual civil, a responsabilidade extra-contratual no
Direito Administrativo, tem como pressuposto fundamental a constatação de um
juízo efectivo de culpa – conjuntamente com a ideia ilicitude, como afirma no
seu estudo o professor JOÃO CAUPERS[6], por nosso lado confluímos
na opinião que o que caracteriza e retém lugar de destaque aquando da avaliação
da responsabilidade subjectiva é necessariamente a culpa, na medida em que a
ilicitude se traduz meramente num pressuposto a ser observado para aplicação,
basta reparar que a grande diferença relativamente à responsabilidade objectiva
é a inexistência de um juízo deste tipo, visto que a ilicitude se observa em
ambas.
Apesar
do lugar de destaque atribuído ao elemento da culpa do agente, a
responsabilidade subjectiva da Administração para que se apure, é necessário
verificar-se cinco pressupostos, identicamente ao registado no direito civil[7], a saber: a existência de
um facto voluntário; facto esse que deve conjugar numa actuação ilícita; que de
acordo com um juízo de conduta se deva considerar como reprovável, ou seja, o
agente age com culpa; sendo que esta acção deve provocar um dano a outrem; e
para finalizar, deve existir um nexo de causalidade entre o facto ilícito e o
prejuízo causado, de maneira a que se conclua que a conduta em causa foi o
resultado adequado do dano registado.
Conclui-se
que os pressupostos de facto a serem registados em sede administrativa são os
mesmos da congénere civil[8]. Nesta altura do nosso
estudo importa realizar uma pequena síntese de cada um dos elementos
apresentados, no sentido de percepcionar de modo esquemático as diferenças que
apresentam no campo do Direito Administrativo. Assim, em primeiro lugar, é
indispensável a existência de um facto voluntário por parte de um agente de uma
pessoa colectiva pública, ou seja, tem de existir um comportamento
correspondente à vontade do agente em questão, podendo este consistir num facto
positivo, uma acção, ou num facto negativo, uma omissão, bastando para que se
registe que exista uma mera possibilidade de controlar o acto[9]. O segundo passo a ser
tomado é o de averiguar se a conduta é ilícita, tendo o artigo 9º/1 da lei
67/2007 (Regime da Responsabilidade
Civil extracontratual do Estado e demais Entidades públicas) sido muito
preciso, bem ao jeito do legislador português, em encontrar uma definição para
a questão, portanto: “consideram-se ilícitas as acções ou omissões dos
titulares de órgãos, funcionários e agentes que violem disposições ou
princípios constitucionais, legais ou regulamentares ou infrinjam regras de
ordem técnica ou deveres objectivos de cuidado e de que resulte a ofensa de
direitos ou interesses legalmente protegidos.” Não obstante é essencial fazer um reparo, não
basta a existência de uma mera ilegalidade para a verificação da ilicitude,
implica que subsista uma efectiva lesão das posições subjectivas de terceiros-
fica demonstrado deste modo o caracter relacional dos vários pressupostos da
responsabilidade civil subjectiva. Seguidamente, e como anteriormente já foi
referido, o juízo de culpa é condição existencial para a verificação desta
forma de responsabilidade, consequentemente só há obrigação de indemnizar caso
exista um individuo ou conjunto de indivíduos, cuja acção ou omissão seja
realizada culposamente[10]. No caso das pessoas colectivas, a imputação da
responsabilidade processa-se de maneira diferente, na medida em que preciso
imputar aos titulares ou agentes dos órgãos responsáveis pela conduta
considerada censurável realizada no exercício das funções da pessoa colectiva,
isto é, o processo de desconsideração da pessoa colectiva. Na responsabilidade
por actos de gestão pública, o legislador estabeleceu um certo grau de exigência
dividindo o elemento da culpa – em culpa em abstrato e culpa em concreto – de
maneira a se compreender de modo mais eficiente e com maior grau de certeza a
actuação que provoca danos nos interesses e bens de terceiros[11]. Indiscutivelmente, a actividade administrativa
contem em si um difícil missão de “procurar um equilíbrio delicado entre a
eficácia da acção administrativa e a responsabilidade por eventuais
consequências danosas para os particulares”, nesse sentido a solução encontrada
pelo legislador foi partir de duas distinções, uma opõe os factos funcionais
aos factos pessoais, a outra distingue entre culpa leve, culpa grave e dolo. O
dano corresponde à lesão efectiva de direitos interesses ou bens
constitucionalmente ou legalmente protegidos, no âmbito administrativo esta
verificação é peculiar devido à utilização muitas das vezes por parte da
Administração de poderes de autoridade[12]. Em ultimo lugar, o nexo de causalidade não apresenta
diferenças relativamente ao direito civil[13], desta maneira representa um sinalagma entre o
facto ilícito e o dano, concluindo-se que este foi a causa adequada para a
verificação do mesmo.
III) Neste momento
é relevante proceder a uma distinções de maior interesse para o correcto
entendimento da matéria em questão, e acima de tudo, para compreender o RCEEP,
falamos dos conceitos de facto funcional e de responsabilidade por factos
pessoais. Logo, considera-se facto funcional “aquele facto que é praticado no exercício
das funções do seu autor[14]”, por esse
motivo não está em causa uma actuação apenas do titular do órgão, mas concomitantemente
também da Administração, porque indiscutivelmente o agente procurou
corresponder à prossecução do interesse público. Neste sentido considera-se que
a responsabilidade no caso é solidária, dado que assim se assegura efectivamente
a posição jurídica dos particulares lesados pela violação dos seus direitos
legalmente atribuídos.
Contrariamente, o facto pessoal traduz-se num acto praticado fora do
exercício das funções que competem ao agente devido à sua posição enquanto
agente público, ou durante o exercício destas mas onde exista qualquer
correlação com a função a prosseguir, nesses caso estamos perante uma forma de
responsabilização exclusivamente pessoal, a Administração não tem qualquer tipo
de intervenção, ou seja esta violação deve ser regulada pelo direito civil[15].
IV) Os factos funcionais podem ser praticados
de acordo com diversas graduações de culpa, onde as consequências são diferente
consoante o nível atribuído, podendo os actos ser praticados com culpa leve,
culpa grave ou dolo.
A culpa leve é a menos séria[16], e significa
basicamente que o agente apesar de não ter agido com a prudência ideal, a sua
actuação é manifestamente inferior àquela que se achava obrigada em razão das
funções exercidas. Neste caso, diz-nos o artigo nº 7º/1 do RCEEP que “ O Estado e as demais pessoas colectivas de
direito público são exclusivamente responsáveis pelos danos que resultem de
acções ou omissões ilícitas, cometidas com culpa leve, pelos titulares dos seus
órgãos, funcionários ou agentes, no exercício da função administrativa e por
causa desse exercício”, ou seja a pessoa colectiva pública é exclusivamente
responsável, não podendo posteriormente exercer direito de regresso sobre o
agente que actuou com culpa leve. Ainda relativamente a esta categoria, o
artigo nº 10/ 2 e 3 estabelece uma presunção na qual um acto ilícito ou o
incumprimento de deveres de vigilância faz presumir um acto sob culpa leve
(solução que vai ao encontro do ideal proposto por alguma doutrina, onde se
centraliza a pessoa individual como o centro do Direito Administrativo)[17].
No caso de o acto ser ferido de culpa grave ou
dolo, sendo uma actuação dolosa a que existe uma clara intenção do agente em
realizar a ilicitude, enquanto a actuação com culpa grave é a conduta na qual o
agente procedeu com a diligência bastante inferior em termos de zelo às
pretendidas por alguém que prossegue funções administrativas (vide artigo 8º/1 do RCEEP onde está
explanado o critério de averiguação da culpa). Nestes dois casos, a
responsabilidade é solidária (artigo nº 8º/2 da RCEEP), dado que deste modo se
assegura efectivamente o pagamento da indemnização, evitando situações
injustas, pelo maior poderio financeiro da pessoa colectiva pública, contudo
esta garante um direito de regresso sobre o individuo que causou o dano (esta
solução está exposta nos artigos nº 6º/1 e 8º/3 do RCEEP). Mais uma vez, existe
uma presunção de culpa no artigo 10º/4 que as culpas se presumem iguais (um
pouco na linha do artigo 497º do CC) ,
todavia esta presunção é ilidível, podendo as culpas ser distribuídas de modo
não igualitário.
V) Após esta pequena revisão
ao regime substantivo da responsabilidade civil por factos ilícitos culposo,
chega-se a altura de realizar umas pequenas considerações finais. Nesse
seguimento, é por demais evidente a importância deste instituto e das suas inerentes
vicissitude para o normal funcionamento da “máquina administrativa”. Apesar de
pequenas diferenças regimentais a similitude com a congénere do direito civil,
faz-nos pensar que efectivamente a barreira entre ambos os regimes é muito
ténue, longe estão as correntes dogmáticas que afirmavam a separação rígida entre
Direito Público e Direito Privado. Sem dúvida, que este regime acautela os
interesses e bens privados, exemplo disso é a responsabilização solidária, de
modo a possibilitar a real satisfação dos interesses do lesado, vítima de uma
acção ou omissão inesperada por parte do agente com funções administrativas.
Esperamos que através deste trabalho muito menos exegético que o normal,
contudo muito útil do ponto de vista descritivo e de aplicação prática se tenha
demonstrado a importância do instituto da responsabilidade civil,
especificamente a responsabilidade subjectiva extracontratual.
Pedro Fernandes
TB14
Nº 28230
TB14
Nº 28230
Bibliografia
AMARAL, Diogo Freitas, Curso de Direito Administrativo, vol. I, Almedina, 4ª edição, 2015
LEITÃO, Luís Manuel Teles de Menezes, Direito das Obrigações, Volume I,
Almedina, 13ª Edição, 2016
ANDRADE, Maria Paula Gouveia, Prática de Direito Administrativo- Questões e hipóteses resolvidas, QuidJuris,
2ª Edição, 2009
TAVARES, José Fernandes Farinha, Administração Pública e Direito Administrativo, Almedina, 3ª
Edição, 2007
CAUPERS, João,
Introdução ao Direito Administrativo, Âncora Editora, 10ª Edição, 2009
[1] LEITÃO, Luís Manuel Teles de
Menezes, Direito das Obrigações,
Volume I, Almedina, 13ª Edição, 2016, p. 287
[2] AMARAL, Diogo Freitas, Curso de Direito Administrativo, vol. I,
Almedina, 4ª edição, 2015, p. 545
[3] Apud AMARAL, Diogo Freitas, Curso de Direito Administrativo, vol. I,
Almedina, 4ª edição, 2015, p. 554
[4] ANDRADE, Maria Paula Gouveia, Prática de Direito Administrativo- Questões
e hipóteses resolvidas, QuidJuris, 2ª Edição, 2009, pp. 83-84
[5] CAUPERS, João, Introdução ao Direito Administrativo, Âncora Editora, 10ª Edição,
2009, p. 329
[6] Idem
[7] LEITÃO, Luís Manuel Teles de
Menezes, Direito das Obrigações,
Volume I, Almedina, 13ª Edição, 2016, p. 287
[8] AMARAL,
Diogo Freitas, Curso de Direito
Administrativo, vol. I, Almedina, 4ª edição, 2015, p. 584
[9] Apud. Idem
[10] Ibidem, p. 585
[11] Ibidem, p. 586
[12] Ibidem, p. 548
[13] Ibidem, p. 584
[14] Ibidem, p. 587
[15] Vide os exemplos apresentados por
FREITAS DO AMARAL in AMARAL, Diogo
Freitas, Curso de Direito Administrativo,
vol. I, Almedina, 4ª edição, 2015, p.589
[16] CAUPERS,
João, Introdução ao Direito
Administrativo, Âncora Editora, 10ª Edição, 2009, p.330
[17] Idem
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