domingo, 16 de abril de 2017

A responsabilidade extra-contratual subjectiva da Administração



I)         Uma das temáticas de maior interesse para o Direito no geral reporta-se à obrigação de indemnizar pelos factos que dão origem aos danos sofridos por outrem[1], ou o comummente denominado instituto da responsabilidade civil.

O interesse dogmático desta questão é fundamental para compreender a ordem jurídica na sua globalidade, na medida que a existência deste instituto corresponde ao primeiro e último fundamento da ideia de Justiça - Aristóteles foi o primeiro a abordar o tema, através da sua formulação da justiça comutativa[2], sendo que os romanos através do brocardo “Suum cuique tribuere” elevaram e desenvolveram esta ideia que permaneceu no ideário jurídico até à realidade actual. Indubitavelmente, partindo desta ideia milenar assume-se a premissa de que para “dar a cada um, o que é seu”, é necessário saber primeiramente o que é de “cada um”, logo após esse exercício procede-se à imputação do responsável o “que é seu”. Neste sentido compreende-se a existência do instituto para o regular o bom funcionamento das relações jurídicas e do ordenamento, especialmente nos dias de hoje, devido à complexidade e disseminação do tráfego jurídico.

No âmbito do Direito Administrativo, esta matéria revela na mesma medida uma importância ímpar, não tivesse Maurice Hauriou declarado que “as duas principais teorias do Direito Administrativo são o recurso contencioso contra decisões executórias da Administração e a das responsabilidades pecuniárias em que incorre a Administração no exercício da sua actividade”[3]. A nossa constituição reporta-se a esta temática nos artigos nº 22º e 227º. O primeiro artigo enunciado visa responsabilizar o Estado pelos danos resultantes do exercício da função política, legislativa, administrativa e jurisdicional, ou seja, é uma disposição geral que se apresenta como limitação à actuação do Estado, dado que abrange a responsabilidade por actos ilícitos, actos lícitos, e pelo risco, sendo a lei 67/2007 de 31 de Dezembro, a concretização específica deste regime; Já o artigo 271º tem um alcance diferente, conquanto aponta à responsabilidade dos funcionários e agentes do Estado pelas acções e omissões praticadas no exercício das suas funções que sejam propícias a lesar os interesses de terceiros (vide, por exemplo, o artigo 271º/2, que demonstra como um agente deve agir de modo a evitar a responsabilização), trata-se de uma disposição mais instrumentalizada e específica[4].

Todavia, esta é uma matéria que se afirma de difícil apreensão, derivado das diversas vicissitudes históricas e dogmáticas da disciplina e do próprio instituto em questão. Evidentemente, as dificuldades só podem ser ultrapassadas através de um profundo exercício exegético, algo que não nos propomos realizar nesta sede. O objecto deste excerto cinge-se a uma avaliação mais específica, e que pessoalmente nos desperta bastante interesse pela similitude com a sua congénere no direito civil, embora contenha algumas alterações, falamos da responsabilidade extra-contratual subjectiva da Administração.   

II)        Originalmente a responsabilidade emergente por danos causados pela Administração era meramente subjectiva, exigindo portanto um juízo de censura sobre o comportamento causador de dano, que consecutivamente poderia ter sido evitado caso se tivesse optado por uma conduta menos gravosa e possivelmente menos danosa[5].

Sem dúvida, é mais que óbvio que tal como a responsabilidade delitual civil, a responsabilidade extra-contratual no Direito Administrativo, tem como pressuposto fundamental a constatação de um juízo efectivo de culpa – conjuntamente com a ideia ilicitude, como afirma no seu estudo o professor JOÃO CAUPERS[6], por nosso lado confluímos na opinião que o que caracteriza e retém lugar de destaque aquando da avaliação da responsabilidade subjectiva é necessariamente a culpa, na medida em que a ilicitude se traduz meramente num pressuposto a ser observado para aplicação, basta reparar que a grande diferença relativamente à responsabilidade objectiva é a inexistência de um juízo deste tipo, visto que a ilicitude se observa em ambas.

Apesar do lugar de destaque atribuído ao elemento da culpa do agente, a responsabilidade subjectiva da Administração para que se apure, é necessário verificar-se cinco pressupostos, identicamente ao registado no direito civil[7], a saber: a existência de um facto voluntário; facto esse que deve conjugar numa actuação ilícita; que de acordo com um juízo de conduta se deva considerar como reprovável, ou seja, o agente age com culpa; sendo que esta acção deve provocar um dano a outrem; e para finalizar, deve existir um nexo de causalidade entre o facto ilícito e o prejuízo causado, de maneira a que se conclua que a conduta em causa foi o resultado adequado do dano registado.

Conclui-se que os pressupostos de facto a serem registados em sede administrativa são os mesmos da congénere civil[8]. Nesta altura do nosso estudo importa realizar uma pequena síntese de cada um dos elementos apresentados, no sentido de percepcionar de modo esquemático as diferenças que apresentam no campo do Direito Administrativo. Assim, em primeiro lugar, é indispensável a existência de um facto voluntário por parte de um agente de uma pessoa colectiva pública, ou seja, tem de existir um comportamento correspondente à vontade do agente em questão, podendo este consistir num facto positivo, uma acção, ou num facto negativo, uma omissão, bastando para que se registe que exista uma mera possibilidade de controlar o acto[9]. O segundo passo a ser tomado é o de averiguar se a conduta é ilícita, tendo o artigo 9º/1 da lei 67/2007 (Regime da Responsabilidade Civil extracontratual do Estado e demais Entidades públicas) sido muito preciso, bem ao jeito do legislador português, em encontrar uma definição para a questão, portanto: “consideram-se ilícitas as acções ou omissões dos titulares de órgãos, funcionários e agentes que violem disposições ou princípios constitucionais, legais ou regulamentares ou infrinjam regras de ordem técnica ou deveres objectivos de cuidado e de que resulte a ofensa de direitos ou interesses legalmente protegidos.” Não obstante é essencial fazer um reparo, não basta a existência de uma mera ilegalidade para a verificação da ilicitude, implica que subsista uma efectiva lesão das posições subjectivas de terceiros- fica demonstrado deste modo o caracter relacional dos vários pressupostos da responsabilidade civil subjectiva. Seguidamente, e como anteriormente já foi referido, o juízo de culpa é condição existencial para a verificação desta forma de responsabilidade, consequentemente só há obrigação de indemnizar caso exista um individuo ou conjunto de indivíduos, cuja acção ou omissão seja realizada culposamente[10]. No caso das pessoas colectivas, a imputação da responsabilidade processa-se de maneira diferente, na medida em que preciso imputar aos titulares ou agentes dos órgãos responsáveis pela conduta considerada censurável realizada no exercício das funções da pessoa colectiva, isto é, o processo de desconsideração da pessoa colectiva. Na responsabilidade por actos de gestão pública, o legislador estabeleceu um certo grau de exigência dividindo o elemento da culpa – em culpa em abstrato e culpa em concreto – de maneira a se compreender de modo mais eficiente e com maior grau de certeza a actuação que provoca danos nos interesses e bens de terceiros[11]. Indiscutivelmente, a actividade administrativa contem em si um difícil missão de “procurar um equilíbrio delicado entre a eficácia da acção administrativa e a responsabilidade por eventuais consequências danosas para os particulares”, nesse sentido a solução encontrada pelo legislador foi partir de duas distinções, uma opõe os factos funcionais aos factos pessoais, a outra distingue entre culpa leve, culpa grave e dolo. O dano corresponde à lesão efectiva de direitos interesses ou bens constitucionalmente ou legalmente protegidos, no âmbito administrativo esta verificação é peculiar devido à utilização muitas das vezes por parte da Administração de poderes de autoridade[12]. Em ultimo lugar, o nexo de causalidade não apresenta diferenças relativamente ao direito civil[13], desta maneira representa um sinalagma entre o facto ilícito e o dano, concluindo-se que este foi a causa adequada para a verificação do mesmo.

III)      Neste momento é relevante proceder a uma distinções de maior interesse para o correcto entendimento da matéria em questão, e acima de tudo, para compreender o RCEEP, falamos dos conceitos de facto funcional e de responsabilidade por factos pessoais. Logo, considera-se facto funcional “aquele facto que é praticado no exercício das funções do seu autor[14]”, por esse motivo não está em causa uma actuação apenas do titular do órgão, mas concomitantemente também da Administração, porque indiscutivelmente o agente procurou corresponder à prossecução do interesse público. Neste sentido considera-se que a responsabilidade no caso é solidária, dado que assim se assegura efectivamente a posição jurídica dos particulares lesados pela violação dos seus direitos legalmente atribuídos.

Contrariamente, o facto pessoal traduz-se num acto praticado fora do exercício das funções que competem ao agente devido à sua posição enquanto agente público, ou durante o exercício destas mas onde exista qualquer correlação com a função a prosseguir, nesses caso estamos perante uma forma de responsabilização exclusivamente pessoal, a Administração não tem qualquer tipo de intervenção, ou seja esta violação deve ser regulada pelo direito civil[15].

IV)      Os factos funcionais podem ser praticados de acordo com diversas graduações de culpa, onde as consequências são diferente consoante o nível atribuído, podendo os actos ser praticados com culpa leve, culpa grave ou dolo.

A culpa leve é a menos séria[16], e significa basicamente que o agente apesar de não ter agido com a prudência ideal, a sua actuação é manifestamente inferior àquela que se achava obrigada em razão das funções exercidas. Neste caso, diz-nos o artigo nº 7º/1 do RCEEP que “ O Estado e as demais pessoas colectivas de direito público são exclusivamente responsáveis pelos danos que resultem de acções ou omissões ilícitas, cometidas com culpa leve, pelos titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, no exercício da função administrativa e por causa desse exercício”, ou seja a pessoa colectiva pública é exclusivamente responsável, não podendo posteriormente exercer direito de regresso sobre o agente que actuou com culpa leve. Ainda relativamente a esta categoria, o artigo nº 10/ 2 e 3 estabelece uma presunção na qual um acto ilícito ou o incumprimento de deveres de vigilância faz presumir um acto sob culpa leve (solução que vai ao encontro do ideal proposto por alguma doutrina, onde se centraliza a pessoa individual como o centro do Direito Administrativo)[17].

No caso de o acto ser ferido de culpa grave ou dolo, sendo uma actuação dolosa a que existe uma clara intenção do agente em realizar a ilicitude, enquanto a actuação com culpa grave é a conduta na qual o agente procedeu com a diligência bastante inferior em termos de zelo às pretendidas por alguém que prossegue funções administrativas (vide artigo 8º/1 do RCEEP onde está explanado o critério de averiguação da culpa). Nestes dois casos, a responsabilidade é solidária (artigo nº 8º/2 da RCEEP), dado que deste modo se assegura efectivamente o pagamento da indemnização, evitando situações injustas, pelo maior poderio financeiro da pessoa colectiva pública, contudo esta garante um direito de regresso sobre o individuo que causou o dano (esta solução está exposta nos artigos nº 6º/1 e 8º/3 do RCEEP). Mais uma vez, existe uma presunção de culpa no artigo 10º/4 que as culpas se presumem iguais (um pouco na linha do artigo 497º do CC)  , todavia esta presunção é ilidível, podendo as culpas ser distribuídas de modo não igualitário.

V) Após esta pequena revisão ao regime substantivo da responsabilidade civil por factos ilícitos culposo, chega-se a altura de realizar umas pequenas considerações finais. Nesse seguimento, é por demais evidente a importância deste instituto e das suas inerentes vicissitude para o normal funcionamento da “máquina administrativa”. Apesar de pequenas diferenças regimentais a similitude com a congénere do direito civil, faz-nos pensar que efectivamente a barreira entre ambos os regimes é muito ténue, longe estão as correntes dogmáticas que afirmavam a separação rígida entre Direito Público e Direito Privado. Sem dúvida, que este regime acautela os interesses e bens privados, exemplo disso é a responsabilização solidária, de modo a possibilitar a real satisfação dos interesses do lesado, vítima de uma acção ou omissão inesperada por parte do agente com funções administrativas. Esperamos que através deste trabalho muito menos exegético que o normal, contudo muito útil do ponto de vista descritivo e de aplicação prática se tenha demonstrado a importância do instituto da responsabilidade civil, especificamente a responsabilidade subjectiva extracontratual.


 Pedro Fernandes
TB14
Nº 28230
Bibliografia

AMARAL, Diogo Freitas, Curso de Direito Administrativo, vol. I, Almedina, 4ª edição, 2015

LEITÃO, Luís Manuel Teles de Menezes, Direito das Obrigações, Volume I, Almedina, 13ª Edição, 2016

ANDRADE, Maria Paula Gouveia, Prática de Direito Administrativo- Questões e hipóteses resolvidas, QuidJuris, 2ª Edição, 2009

TAVARES, José Fernandes Farinha, Administração Pública e Direito Administrativo, Almedina, 3ª Edição, 2007

CAUPERS, João, Introdução ao Direito Administrativo, Âncora Editora, 10ª Edição, 2009






[1] LEITÃO, Luís Manuel Teles de Menezes, Direito das Obrigações, Volume I, Almedina, 13ª Edição, 2016, p. 287
[2] AMARAL, Diogo Freitas, Curso de Direito Administrativo, vol. I, Almedina, 4ª edição, 2015, p. 545
[3] Apud AMARAL, Diogo Freitas, Curso de Direito Administrativo, vol. I, Almedina, 4ª edição, 2015, p. 554
[4] ANDRADE, Maria Paula Gouveia, Prática de Direito Administrativo- Questões e hipóteses resolvidas, QuidJuris, 2ª Edição, 2009, pp. 83-84
[5] CAUPERS, João, Introdução ao Direito Administrativo, Âncora Editora, 10ª Edição, 2009, p. 329
[6] Idem
[7] LEITÃO, Luís Manuel Teles de Menezes, Direito das Obrigações, Volume I, Almedina, 13ª Edição, 2016, p. 287
[8] AMARAL, Diogo Freitas, Curso de Direito Administrativo, vol. I, Almedina, 4ª edição, 2015, p. 584
[9] Apud. Idem
[10] Ibidem, p. 585
[11] Ibidem, p. 586
[12] Ibidem, p. 548
[13] Ibidem, p. 584
[14] Ibidem, p. 587
[15] Vide os exemplos apresentados por FREITAS DO AMARAL in AMARAL, Diogo Freitas, Curso de Direito Administrativo, vol. I, Almedina, 4ª edição, 2015, p.589
[16] CAUPERS, João, Introdução ao Direito Administrativo, Âncora Editora, 10ª Edição, 2009, p.330
[17] Idem

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