Os princípios administrativos vinculam toda a actuação de gestão
da Administração Pública, seja ela pública ou privada. Impõem, assim,
exigências de actuação e têm como função garantir que a liberdade de exercício
da Administração, que é natural e necessária, não se transforme em violação do
Direito.
Actualmente, estes têm vindo a adquirir um conteúdo cada vez mais sólido e
exigente, tendo força invalidante per si.
Debrucemo-nos sobre o discreto Princípio do Respeito
pelas Posições Jurídicas Subjectivas dos Particulares em especial.
Sendo a essência do Direito Administrativo a necessidade
permanente de conciliar as exigências do interesse público com as garantias dos
particulares (DFA), é evidente que o interesse público não tem valor ilimitado.
Assim dispõe implícita e indirectamente o princípio da legalidade,
que nasceu precisamente como limite à acção da Administração Pública. Porém, o
seu alcance – tal como o posterior princípio do respeito pelas posições
jurídicas subjectivas dos particulares (art.º 266.º/1 da CRP e 4.º do CPA), que
de si deriva, vem reiterar - não é o de impedir todo e qualquer exercício
administrativo, mas tão somente exigir a consideração de que não são toleráveis
afectações que não sejam legalmente habilitadas - reserva de lei - ou que
contrariem o bloco de legalidade - preferência de lei -, estando as vinculações
legais e os limites imanentes da margem de livre decisão abrangidos.
Pensamos que a razão de ser do princípio em epígrafe provém da fraca
capacidade que o princípio da legalidade revelou para garantir com totalidade a
sua função-génese.
Desta forma, desde o séc. XX, outros mecanismos jurídicos
foram paulatinamente configurados, com o fim de conceder protecção
autónoma aos direitos subjectivos e aos interesses legalmente protegidos, para
além dos casos em que a violação da legalidade ofende simultaneamente esses
direitos e interesses (v.g. a abertura aos particulares de uma via contenciosa
não fundada em ilegalidade para obter o reconhecimento de um direito subjectivo
ou de um interesse legalmente protegido – cfr. LEPTA, art.º 69.º -, ou o
alargamento constitucional da responsabilidade civil da Administração aos casos
em que o dano a indemnizar consista apenas em violação de direitos, liberdades
e garantias do cidadão – cfr. CRP, art.º 22.º).
Na esteira dos Professores Marcelo Rebelo de Sousa e
André Salgado Matos, o princípio do respeito pelas posições jurídicas
subjectivas dos particulares confere apenas a dimensão subjectiva,
claramente influenciada pelo papel crescente dos Direitos Fundamentais no
Estado de Direito Democrático, do princípio da legalidade. Não tendo, desta
forma, autonomia própria.
Observamos, assim, que não é, de certa forma, possível o entendimento de um
princípio da Administração Pública sem o confronto com outros. Demonstra-se
necessário o cruzamento entre o anterior e, nomeadamente, os princípios da
imparcialidade e proporcionalidade, uma vez que a dimensão positiva do primeiro
requer que as posições jurídicas subjectivas dos particulares sejam objecto de
reflexão face aos interesses públicos em questão; e o último exige que, como
resultado de tal, se adoptem os meios de prossecução do interesse público que
não lesem de forma inadequada, desnecessária e irrazoável o particular.
Convém, aqui, para o efeito, clarificar conceitos:
o conceito de direito subjectivo, como dizem – e bem – os
Professores Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos, é dos
mais controversos do Direito Civil. Sem prejuízo de uma passagem mais
atenta pela história e desenvolvimento do mesmo - sobretudo pela doutrina
voluntarista autonomista de Savigny e utilitarista, heteronomista e
normativista de Jhering -, a concepção adoptada hoje é a de que se trata
de um interesse directa e imediatamente protegido (objecto do direito)
mediante a concessão de um feixe de poderes ou faculdades, que incluem a
possibilidade de obter a tutela jurisdicional plena (conteúdo do direito). (MRS
E ASM)
No conceito de interesse legalmente protegido, consideram-se
certos interesses merecedores de tutela, não com a intensidade de um
direito subjectivo, criando, assim, situações jurídicas activas menos
consistentes do que as que se verificam aquando do anterior.
O Professor M. Gomes da Silva defende que este conceito engloba
duas realidades:
o interesse indirectamente protegido, que será aquele que
merece protecção imediata da ordem jurídica, porém em posição subalterna em
relação a outro interesse (público ou privado) e, esse sim, pode justificar a
atribuição de um direito subjectivo.
Assim, tal como acontece no direito subjectivo, existe um interesse imediatamente
protegido, sob a atribuição de poderes e faculdades, entre os quais a
possibilidade de reagir contra condutas contrarias ao interesse e a
responsabilização civil de quem o tiver violado. Contudo, não há protecção
directa desse interesse e também não existe a possibilidade da sua realização
jurisdicional plena.
Ex.: Na vacinação por razões de saúde pública, o interesse primariamente
protegido é o interesse público da saúde pública, mas a lei protege ainda
imediata, mas indirectamente, o interesse de cada cidadão quanto à sua própria
saúde, embora não lhe dando a possibilidade de exigir a vacinação;
E o interesse reflexamente protegido, que não é objecto de
protecção imediata, nem mesmo indirecta, pela lei. No entanto, a sua
prossecução resulta da tutela de outro interesse.
Ex.: No fabrico de certo produto, os fabricantes podem ser beneficiados com
a proibição legal da importação de produtos concorrentes precisamente
por motivos de saúde pública.
O Professor Diogo Freitas do Amaral pensa ser necessário ir
para além desta mera distinção e segue Viera de Andrade, que nos mostra a
existência de posições jurídicas subjectivas que se devem qualificar como
direitos, e não como interesses legalmente ou indirectamente protegidos, apesar
de não terem uma tutela plena em face da Administração (direitos
condicionados e comprimidos) ou de não serem imediatamente accionáveis
pelo seu conteúdo depender de densificação ou concretização
administrativa (direitos «prima facie»).
Os direitos condicionados – onde Viera de
Andrade insere os enfraquecidos – são os que, por força da lei
ou de acto administrativo com base na lei, “podem ser sacrificados através do
exercício legítimo de poderes de autoridade administrativa (v.g. o direito de
propriedade face ao poder de expropriação)”.
Os direitos comprimidos são os “limitados por lei em
termos de necessitarem de uma intervenção administrativa que permita o seu
exercício” (v.g. a liberdade de circulação automóvel dependente da obtenção da
carta de condução).
Os direitos «prima facie» são interesses individualizados
protegidos directamente por uma norma cujo conteúdo, para se tornar preciso,
carece de concretização (v.g. direitos genéricos a prestações de tipo ou
montante variável) ou densificação administrativa (v.g. direito à protecção
policial).
Tal como sucede na figura dos interesses legalmente protegidos,
divisam-se hoje, e cada vez mais, exemplos de direitos subjectivos cujos
titulares não beneficiam de uma tutela plena em face da Administração, e
direitos subjectivos cujo conteúdo não está, à priori e com precisão,
determinado. A variedade existente entre as figuras é hoje uma variedade de
grau, por oposição à categorial, “a definir em cada hipótese por interpretação
nas normas aplicáveis”- em apelo ao caso concreto -, como já referenciado.
A utilidade da destrinça é posta em causa pelo Professor
Regente Vasco Pereira da Silva, adoptando, a nosso ver, uma posição que vai no
sentido da do Professor Diogo Freitas do Amaral, que diz que, apesar de não
haver uma equiparação absoluta, não há diferenças significativas, uma vez que
os regimes são idênticos. Prova disso será, nomeadamente, o reconhecimento por
parte dos autores da equivalência e conjunção das expressões nos textos
normativos.
Na opinião dos Professores Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado Matos
esta, onde subjazem também os interesses indirecta e reflexamente
protegidos, não pode ser levada demasiadamente longe; isto
porque a diferença entre os anteriores é de carácter quantitativo e não
qualitativo.
Ora recapitulemos: no direito subjectivo existe um
direito à satisfação de um interesse próprio, tendo o particular o direito
a uma decisão final favorável ao seu interesse; no interesse legítimo, existe
um direito à legalidade das deciões que versem sobre um interesse
próprio, e este apenas pode pretender que uma eventual decisão
desfavorável ao seu interesse não seja tomada ilegalmente.
Para apurá-lo, note-se o exemplo seguinte:
se a administração ocupar, sem qualquer titulo,
um prédio de um particular, este pode obter a tutela
jurisdicional plena da sua posição jurídica,
designadamente através da devolução do bem que lhe foi
esbulhado. Estaremos, aqui, perante um direito subjectivo;
Todavia, a mera instauração de um processo administrativo expropriatório
sobre o imóvel tem a consequência de o proprietário passar a poder
exigir jurisdicionalmente apenas que a privação do direito
que lhe venha a ser imposta ocorra com a observância dos limites
legais aplicáveis, onde entram o princípio
da discricionariedade e igualdade. Estando, aqui, um interesse
legalmente protegido.
Deste modo, retira-se que uma situação jurídica
aparentemente idêntica do ponto de vista qualitativo pode ser tratada como
direito subjectivo ou interesse legalmente protegido. Não podendo perder-se a
ideia de que a tutela jurídica de posições subjectivas dos particulares pode
ter intensidades diferentes.
Atente-se, ainda, para o facto do Código de Processo Administrativo
equiparar hoje expressamente o estatuto revogatório dos actos constitutivos de
interesses legalmente protegidos ao de direitos (art.º 140.º/1, alínea b)); por
outro lado, vem sendo doutrinal e jurisprudencialmente entendido que a
responsabilidade civil do Estado e de outras pessoas públicas no art.º 22.º da
CRP vale tanto para casos em que ocorra a violação de direitos subjectivos como
a violação de interesses legalmente protegidos.
Esta realidade explica que alguma doutrina, entre a qual
Vieira de Andrade, construa um conceito amplo de direito subjectivo, que
abrange os interesses legalmente protegidos.
O Professor Diogo Freitas do Amaral declara tratar-se de uma situação
válida. No entanto, diz que a matéria carece de aprofundamento dogmático.
De nossa parte e em forma de conclusão, concorda-se que o princípio das situações jurídicas dos particulares não é autonomizável quanto
ao princípio sumo da legalidade. Porém, tal dependência não lhe retira valor
nem diminui o seu alcance. Será razoável acusá-lo de tautologia, todavia esta é
comprovavelmente necessária. O seu objectivo é colmatar a falta de
exequibilidade prática do anterior no confronto da Administração Pública com os
particulares e salvaguardar os direitos subjectivos e interesses legalmente
protegidos dos mesmos. Pensa-se que o princípio tratado por esta exposição
afigura-se num update reforçado do princípio da legalidade em
matéria de consolidação da protecção devida aos particulares.
Maria Margarida Bento e Silva, n.º 28075.
Bibliografia:
AMARAL, Diogo Freitas. – Curso de Direito
Administrativo, Volume I 4-ª Edição. Coimbra: Edições Almedina, 2015;
REBELO DE SOUSA, Marcelo; SALGADO DE MATOS, André.
“Direito Administrativo Geral- Tomo I- Introdução e Princípios Fundamentais”.
3ªed. Dom Quixote, 2008;
VASCO PEREIRA DA SILVA, “Em busca do Ato
Administrativo Perdido”, Dissertação de Doutoramento em Ciências Jurídico
Políticas, Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa,1996.
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