segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Princípio do Respeito pelas Posições Jurídicas Subjectivas dos Particulares

 Os princípios administrativos vinculam toda a actuação de gestão da Administração Pública, seja ela pública ou privada. Impõem, assim, exigências de actuação e têm como função garantir que a liberdade de exercício da Administração, que é natural e necessária, não se transforme em violação do Direito.
Actualmente, estes têm vindo a adquirir um conteúdo cada vez mais sólido e exigente, tendo força invalidante per si.

   Debrucemo-nos sobre o discreto Princípio do Respeito pelas Posições Jurídicas Subjectivas dos Particulares em especial.

   Sendo a essência do Direito Administrativo a necessidade permanente de conciliar as exigências do interesse público com as garantias dos particulares (DFA), é evidente que o interesse público não tem valor ilimitado. Assim dispõe implícita e indirectamente o princípio da legalidade, que nasceu precisamente como limite à acção da Administração Pública. Porém, o seu alcance – tal como o posterior princípio do respeito pelas posições jurídicas subjectivas dos particulares (art.º 266.º/1 da CRP e 4.º do CPA), que de si deriva, vem reiterar - não é o de impedir todo e qualquer exercício administrativo, mas tão somente exigir a consideração de que não são toleráveis afectações que não sejam legalmente habilitadas - reserva de lei - ou que contrariem o bloco de legalidade - preferência de lei -, estando as vinculações legais e os limites imanentes da margem de livre decisão abrangidos.

   Pensamos que a razão de ser do princípio em epígrafe provém da fraca capacidade que o princípio da legalidade revelou para garantir com totalidade a sua função-génese.

 Desta forma, desde o séc. XX, outros mecanismos jurídicos foram paulatinamente configurados, com o fim de conceder protecção autónoma aos direitos subjectivos e aos interesses legalmente protegidos, para além dos casos em que a violação da legalidade ofende simultaneamente esses direitos e interesses (v.g. a abertura aos particulares de uma via contenciosa não fundada em ilegalidade para obter o reconhecimento de um direito subjectivo ou de um interesse legalmente protegido – cfr. LEPTA, art.º 69.º -, ou o alargamento constitucional da responsabilidade civil da Administração aos casos em que o dano a indemnizar consista apenas em violação de direitos, liberdades e garantias do cidadão – cfr. CRP, art.º 22.º).

   Na esteira dos Professores Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado Matos, o princípio do respeito pelas posições jurídicas subjectivas dos particulares confere apenas a dimensão subjectiva, claramente influenciada pelo papel crescente dos Direitos Fundamentais no Estado de Direito Democrático, do princípio da legalidade. Não tendo, desta forma, autonomia própria.
Observamos, assim, que não é, de certa forma, possível o entendimento de um princípio da Administração Pública sem o confronto com outros. Demonstra-se necessário o cruzamento entre o anterior e, nomeadamente, os princípios da imparcialidade e proporcionalidade, uma vez que a dimensão positiva do primeiro requer que as posições jurídicas subjectivas dos particulares sejam objecto de reflexão face aos interesses públicos em questão; e o último exige que, como resultado de tal, se adoptem os meios de prossecução do interesse público que não lesem de forma inadequada, desnecessária e irrazoável o particular.

   Convém, aqui, para o efeito, clarificar conceitos:
o conceito de direito subjectivo, como dizem – e bem – os Professores Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos, é dos mais controversos do Direito Civil. Sem prejuízo de uma passagem mais atenta pela história e desenvolvimento do mesmo - sobretudo pela doutrina voluntarista autonomista de Savigny e utilitarista, heteronomista e normativista de Jhering -, a concepção adoptada hoje é a de que se trata de um interesse directa e imediatamente protegido (objecto do direito) mediante a concessão de um feixe de poderes ou faculdades, que incluem a possibilidade de obter a tutela jurisdicional plena (conteúdo do direito). (MRS E ASM)
No conceito de interesse legalmente protegido, consideram-se certos interesses merecedores de tutela, não com a intensidade de um direito subjectivo, criando, assim, situações jurídicas activas menos consistentes do que as que se verificam aquando do anterior.

  O Professor M. Gomes da Silva defende que este conceito engloba duas realidades:
interesse indirectamente protegido, que será aquele que merece protecção imediata da ordem jurídica, porém em posição subalterna em relação a outro interesse (público ou privado) e, esse sim, pode justificar a atribuição de um direito subjectivo.
Assim, tal como acontece no direito subjectivo, existe um interesse imediatamente protegido, sob a atribuição de poderes e faculdades, entre os quais a possibilidade de reagir contra condutas contrarias ao interesse e a responsabilização civil de quem o tiver violado. Contudo, não há protecção directa desse interesse e também não existe a possibilidade da sua realização jurisdicional plena.
Ex.: Na vacinação por razões de saúde pública, o interesse primariamente protegido é o interesse público da saúde pública, mas a lei protege ainda imediata, mas indirectamente, o interesse de cada cidadão quanto à sua própria saúde, embora não lhe dando a possibilidade de exigir a vacinação;
o interesse reflexamente protegido, que não é objecto de protecção imediata, nem mesmo indirecta, pela lei. No entanto, a sua prossecução resulta da tutela de outro interesse.
Ex.: No fabrico de certo produto, os fabricantes podem ser beneficiados com a proibição legal da importação de produtos concorrentes precisamente por motivos de saúde pública. 

  O Professor Diogo Freitas do Amaral pensa ser necessário ir para além desta mera distinção e segue Viera de Andrade, que nos mostra a existência de posições jurídicas subjectivas que se devem qualificar como direitos, e não como interesses legalmente ou indirectamente protegidos, apesar de não terem uma tutela plena em face da Administração (direitos condicionados e comprimidos) ou de não serem imediatamente accionáveis pelo seu conteúdo depender de densificação ou concretização administrativa (direitos «prima facie»).

  Os direitos condicionados – onde Viera de Andrade insere os enfraquecidos – são os que, por força da lei ou de acto administrativo com base na lei, “podem ser sacrificados através do exercício legítimo de poderes de autoridade administrativa (v.g. o direito de propriedade face ao poder de expropriação)”.
Os direitos comprimidos são os “limitados por lei em termos de necessitarem de uma intervenção administrativa que permita o seu exercício” (v.g. a liberdade de circulação automóvel dependente da obtenção da carta de condução).
Os direitos «prima facie» são interesses individualizados protegidos directamente por uma norma cujo conteúdo, para se tornar preciso, carece de concretização (v.g. direitos genéricos a prestações de tipo ou montante variável) ou densificação administrativa (v.g. direito à protecção policial).

  Tal como sucede na figura dos interesses legalmente protegidos, divisam-se hoje, e cada vez mais, exemplos de direitos subjectivos cujos titulares não beneficiam de uma tutela plena em face da Administração, e direitos subjectivos cujo conteúdo não está, à priori e com precisão, determinado. A variedade existente entre as figuras é hoje uma variedade de grau, por oposição à categorial, “a definir em cada hipótese por interpretação nas normas aplicáveis”- em apelo ao caso concreto -, como já referenciado.

  A utilidade da destrinça é posta em causa pelo Professor Regente Vasco Pereira da Silva, adoptando, a nosso ver, uma posição que vai no sentido da do Professor Diogo Freitas do Amaral, que diz que, apesar de não haver uma equiparação absoluta, não há diferenças significativas, uma vez que os regimes são idênticos. Prova disso será, nomeadamente, o reconhecimento por parte dos autores da equivalência e conjunção das expressões nos textos normativos.
Na opinião dos Professores Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado Matos esta, onde subjazem também os interesses indirecta e reflexamente protegidos, não pode ser levada demasiadamente longe; isto porque a diferença entre os anteriores é de carácter quantitativo e não qualitativo.

   Ora recapitulemos: no direito subjectivo existe um direito à satisfação de um interesse próprio, tendo o particular o direito a uma decisão final favorável ao seu interesse; no interesse legítimo, existe um direito à legalidade das deciões que versem sobre um interesse próprio, e este apenas pode pretender que uma eventual decisão desfavorável ao seu interesse não seja tomada ilegalmente.

    Para apurá-lo, note-se o exemplo seguinte:
se a administração ocupar, sem qualquer titulo, um prédio de um particular, este pode obter a tutela jurisdicional plena da sua posição jurídica, designadamente através da devolução do bem que lhe foi esbulhado. Estaremos, aqui, perante um direito subjectivo;
Todavia, a mera instauração de um processo administrativo expropriatório sobre o imóvel tem a consequência de o proprietário passar a poder exigir jurisdicionalmente apenas que a privação do direito que lhe venha a ser imposta ocorra com a observância dos limites legais aplicáveis, onde entram o princípio da discricionariedade e igualdade. Estando, aqui, um interesse legalmente protegido.

   Deste modo, retira-se que uma situação jurídica aparentemente idêntica do ponto de vista qualitativo pode ser tratada como direito subjectivo ou interesse legalmente protegido. Não podendo perder-se a ideia de que a tutela jurídica de posições subjectivas dos particulares pode ter intensidades diferentes.

    Atente-se, ainda, para o facto do Código de Processo Administrativo equiparar hoje expressamente o estatuto revogatório dos actos constitutivos de interesses legalmente protegidos ao de direitos (art.º 140.º/1, alínea b)); por outro lado, vem sendo doutrinal e jurisprudencialmente entendido que a responsabilidade civil do Estado e de outras pessoas públicas no art.º 22.º da CRP vale tanto para casos em que ocorra a violação de direitos subjectivos como a violação de interesses legalmente protegidos.


   Esta realidade explica que alguma doutrina, entre a qual Vieira de Andrade, construa um conceito amplo de direito subjectivo, que abrange os interesses legalmente protegidos.
O Professor Diogo Freitas do Amaral declara tratar-se de uma situação válida. No entanto, diz que a matéria carece de aprofundamento dogmático.

   De nossa parte e em forma de conclusão, concorda-se que o princípio das situações jurídicas dos particulares não é autonomizável quanto ao princípio sumo da legalidade. Porém, tal dependência não lhe retira valor nem diminui o seu alcance. Será razoável acusá-lo de tautologia, todavia esta é comprovavelmente necessária. O seu objectivo é colmatar a falta de exequibilidade prática do anterior no confronto da Administração Pública com os particulares e salvaguardar os direitos subjectivos e interesses legalmente protegidos dos mesmos. Pensa-se que o princípio tratado por esta exposição afigura-se num update reforçado do princípio da legalidade em matéria de consolidação da protecção devida aos particulares.

Maria Margarida Bento e Silva, n.º 28075.



Bibliografia:
AMARAL, Diogo Freitas. – Curso de Direito Administrativo, Volume I 4-ª Edição. Coimbra: Edições Almedina, 2015;
REBELO DE SOUSA, Marcelo; SALGADO DE MATOS, André. “Direito Administrativo Geral- Tomo I- Introdução e Princípios Fundamentais”. 3ªed. Dom Quixote, 2008;

VASCO PEREIRA DA SILVA, “Em busca do Ato Administrativo Perdido”, Dissertação de Doutoramento em Ciências Jurídico Políticas, Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa,1996.

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