Antes de nos focarmos no “dever de
obediência” parece-me importante que se consolidem conceitos que nos levem, a
uma mais fácil compreensão da sua origem e respetivo conteúdo.
Mediante os ensinamentos do Prof.
Marcello Caetano entende-se o conceito de “serviço público” como uma organização humana criada no seio
de cada pessoa coletiva pública com o fim de desempenhar as atribuições desta,
sob direção nos respetivos órgãos. Desta forma, estas são estruturas
administrativas em que os indivíduos que as constituem trabalham ao serviço de
determinada entidade pública, estas são parte integrante da pessoa coletiva e
terão sido criadas para realizaram funções de polícia, educação, transportes ou
até mesmo obras públicas.
Sendo que as decisões que vinculam a
pessoa coletiva pública, perante o exterior, são tomadas pelos seus órgãos e
estando também a cargo destes a direção do funcionamento dos serviços
existentes no interior dela; é importante que nos foquemos nas relações que
existem entre os seus órgãos e os serviços públicos, uma vez que, são estes
últimos, que desempenham as tarefas concretas e específicas em que se traduz a
prossecução das atribuições das pessoas coletivas públicas.
No seguimento desta ideia entende-se
que os princípios fundamentais do regime jurídico dos serviços públicos passam
pelo facto de este serviço revelar sempre de uma pessoa coletiva pública, o que
pressupõe o vínculo à prossecução de um interesse público, sendo a sua organização interna matéria
regulamentar, na medida em que a criação e extinção destes, bem como a sua
fusão e restruturação, são aprovadas por decreto-regulamentar. A continuidade
destes serviços deverá também ser mantida, pelo que o regime de organização e
funcionamento de qualquer serviço público é modificável, visto que só assim se
pode corresponder à natural variabilidade do interesse público, podendo, ainda,
atuar em concorrência ou até gozar de exclusivo e de acordo com o direito
público ou privado. Em princípio, a utilização dos serviços pelos particulares
será onerosa, no entanto estes deverão ser tratados e servidos em pé de
igualdade, apesar da lei admitir vários modos de gestão dos serviços públicos e
dos seus utentes ficarem sujeitos a regras próprias que os colocam numa
situação jurídica especial.
No que diz respeito à organização
dos serviços públicos, estes podem ser organizados segundo três critérios –
organização horizontal (em razão da matéria), territorial (em razão do
território) e vertical (em razão da hierarquia). No entanto, parece-me
essencial que se imponha um foque sobre a organização vertical (hierárquica)
que nos leva ao dever de obediência.
De forma algo genérica, este tipo de
organização traduz-se na estruturação dos serviços em função da sua
distribuição por diversos graus ou escalões, deste a base até ao topo,
relacionando-se entre si em termos de suberania e subordinação.
“A hierarquia dos serviços consiste
no seu ordenamento em unidades que compreendem subunidades de um ou mais graus
e podem agrupar-se em grandes unidades, escalando-se os poderes dos respetivos
cheves de modo a assegurar a harmonia de todo um conjunto” (Marcello Caetano).
Fala-se assim de uma hierarquia das respetivas chefias, havendo sempre um chefe
superior, coadjuvado por chefes subalternos de vários graus, aos quais estão
destinadas determinadas tarefas e responsabilidades de forma propocional,
mediante o escalão em que estejam colocados. Sendo que o poder típico do
superior hierárquico é o da direcção, ao qual corresponde um dever de
obediência por parte do subalterno.
Levanta-se assim um problema
resultante da organização hierárquica e do dever de obediência uma vez que o
subalterno, ainda que tenha determinada posição, não é de forma alguma um
autómato. Mesmo enquanto tal, é um ser racional e livre, sendo moral e
juridicamente responsável pelas suas decisões, decidindo se deverá ou não
obedecer às ordens do superior, uma vez que a vontade deste, que embora tenha
mais força jurídica do que a do subalterno, não a substitui. O que não impede
que a desobediência lhe possa acarretar sanções de vária ordem.
A prova de que o subalterno não é
mecanicamente obediente está na competência que a lei lhe confere para
“examinar a legalidade de todos os comandos hierárquicos” (como ressalva o
Prof. Paulo Otero), que lhe permitem rejeitar a obediência, recusando o
cumprimento de determinadas ordens superiores mediante actos como os
criminosos.
Salienta-se ainda que o facto de se
entender que o poder da direcção não
carece de consagração legal expressa, não sendo necessário que a lei refira
explicitamente a existência de determinado poder. A competência de dar ordens e
instruções decorre da própria natureza das funções do superior hierárquico por
ele exercidas.
O dever de obediência o principal
dever típico da relação hierárquica. Este dever consiste, segundo o art. 3.º n.º
7 do Estatuto Disciplinar, na obrigação
de o subalterno cumprir as ordens e instruções dos seus legítimos superiores
hierárquicos, dadas em objecto de serviço sob a forma legal, resultando daqui
os requisitos deste dever:
·
a ordem ou instruções provenham de legítimo superior
hierárquico do subalterno em causa;
·
que a ordem ou as instruções tem de ser dadas em
matéria de serviço;
·
e que a ordem e instruções têm de revestir a forma
legal prescrita.
Daqui decorre que não existirá dever
de obediência quando o comando emane de quem não seja legítimo superior do
subalterno, uma vez que não seja órgão da Administração, por não pertencer à
cadeia hierárquica em que está inserido; quando a ordem em questão diga
respeito a um assunto da vida particular do superior ou mesmo do subalterno; ou
até mesmo quando tenha sido dada verbalmente uma vez que a lei exigiria que
fosse escrita. Casos estes em que a ordem é “extrinsecamente” ilegal e o
subalterno não fica obrigado a cumpri-la, visto ter-lhe sido irregular ou
indevidamente atribuída, a obrigação.
Por outro lado, nos casos em que se
verifique que o subalterno recebe uma ordem que provenha de um legítimo
superior hierárquico e que se debruce sobre matérias de serviço mas que é
“intrinsecamente” ilegal implicando, portanto, se for acatada a pratica pelo
subalterno de um acto ilegal ou ilícito.
Mediante
isto, deveremos debruçar-nos sobre duas correntes, hierárquica ou legalista,
para que possamos saber se a ordem intrinsecamente ilegal deve ou não ser
cumprida pelo subalterno.
A corrente hierárquica defende a
existência de um dever de obediência, não estando na mão do subalterno decidir
ou questionar a legalidade das ordens do seu superior hierárquico. Segundo esta
corrente, questionar a legalidade das ordens, é exatamente ir contra a razão de
ser da hierarquia. O subalterno poderá, única e exclusivamente, exercer o
direito de respeitosa representação junto do superior expondo-lhe as suas
dúvidas, embora tenha sempre de cumprir com aquilo que for decidido pelo seu
superior (posição defendida por Otto Mayer, Laband e Nézard).
Por outro lado, para a corrente
legalista, não haverá um dever de obediência em relação a ordens julgadas
ilegais (corrente que terá sido defendida por Hauriu e Jezé ou Orlando e Santi
Romano). Esta corrente terá tido ainda uma versão mais restritiva, uma posição
mais intermédia e uma posição mais ampla, em que se defende que não existiria
dever de obediência se a ordem implicasse a prática de um crime, em que o dever
de obediência cessa se e só se a ordem for inequivocamente ilegal e em que há
dever de obediência a uma ordem ilegal, independentemente do motivo da
ilegalidade, na medida em que acima do superior está sempre a lei e o
subalterno deve sempre respeitar em primeiro lugar a legalidade e só depois a
hierarquia. Relativamente à posição intermédia, se houverem dúvidas ou mera
divergência de entendimentos e interpretações, quanto há legalidade da ordem,
esta continua a ser imperativa e a ter de ser acatada para o subalterno.
Procuramos agora responder à questão
que é aqui ressalvada: deverá afinal permanecer a lei ou a hierárquia?
O Prof. Marcello Caetano terá
adoptado a corrente hierárquica, embora “ temperada nos termos em que está
regulada na lei portuguesa”.
Por outro lado, João Tello de
Magalhães Collaço defensor de uma solução legalista, considera que não deve o subalterno
obedecer a nenhuma ordem ilegal, dada a necessária supremacia da lei sobre a
hierarquia.
No entanto, o Prof. Freitas do
Amaral chama-nos à atenção para o facto de que apesar de, pelo menos
aparentemente, estarmos perante um sistema administrativo que se encontra
sujeito ao princípio da legalidade não se deveria sequer colocar a questão de
saber se os subalternos devem ou não cumprir ordens ilegais. Apesar do facto de
que algumas razões obstam que tal conclusão seja tao óbvia e clara, uma vez que
consagra o direito de desobedecer a ordens ilegais dadas por um superior
hierárquico podendo assim gerar um factor de indisciplina nos serviços
públicos, significa também dar a todos os subalternos o poder de examinar as
ordens dos seus superior e determina ainda que se o subalterno tiver o dever de
desobedecer a ordens ilegais. Sendo que a consequência que dele advém no caso
de decidir é que também ele se torna responsável pelas consequências da
execução de uma ordem ilegal.
Estes factos levam a que este
professor opte por uma posição legalista, embora de uma forma mais moderada,
com base no princípio do Estado de Direito Democrático (preâmbulo da CRP) e
ainda com base no princípio da legalidade em que se exige claramente a subordinação dos órgãos e agentes
administrativos à lei (art.º 266.º, n.º2), embora um preceito constitucional
legitime expressamente o dever de obediência às ordens ilegais que não
impliquem a prática de um crime (CRP, art.º 271º, n.º3). Não havendo ainda dever
de obediência quando as ordens provenham de um acto nulo (art.º 134º n.º1 do
CPA), isto mesmo em casos que digam respeito a instruções emandas do legítimo
siuperior hierárquico, em objecto de serviço e com a forma legal (CRP, art.º
271.º,n.º 2, e Estatuto, art.º 3º, n.º 7).
Apesar de na vigência do
Constituição de 1933, a natureza autoritária do regime ter reconduzido à
consagração da solução hierárquica; actualmente prevalece um sistema legalista
mitigado e que resulta do art.º 271 n.º 3 da CRP, já referido. Isto porque o
actual dever de obediência difere em vários aspectos importantes daquele que
vigorava antes do 25 de Abril, uma vez que se terá dado a mudança de um regime
autoritário para um regime democrático e, consequentemente, a substituição do
sistema hierárquico pelo sistema legalista.
Esta passagem leva-nos a diferenças
significativas, sendo elas:
a)
O facto de a ordem envolver a prática de um crime,
passou a excluir o dever de obediência;
b)
O regime do direito de representação abranger agora
toda e qualquer ordem, e não apenas as ordens excepcionais e de caráter verbal;
c)
O direito de representação poder ser exercido sempre
que o subalterno entende convenientemente fazê-lo, e não apenas nos casos
taxativamente indicados por lei;
d)
A representação dirigida ao superior hierárquico poder
ter por fim reclamar contra a ordem recebida, pedir a sua confirmação ou pedir
a transmissão da ordem por escrito e não apenas o terceiro desses objetivos;
e)
Por fim, o subalterno poder, agora, exercer o seu direito
de representação sempre que considere ilegais, sob qualquer aspecto, as ordens
recebidas, e não apenas no caso de as ordens emanarem de autoridade
incompetente, ou de serem manifestamente contrárias à letra da lei.
No entanto, o subalterno só ficará
excluído da responsabilidade pelas consequências da execução da ordem se antes
da sua execução tiver reclamado ou
exigido a transmissão ou confirmação delas por escrito, fazendo menção de forma
expressa de que considera ilegais as ordens recebidas (Estatuto Disciplinar,
art. 10.º n.º 1 e 2 do). Já nos casos em que tenha sido dada uma ordem com
menção de cumprimento imediato, será suficiente para a exclusão da
responsabilidade de quem a cumprir que a reclamação,
com a opinião sobre a ilegalidade da ordem, seja eviada logo após a execução
desta (Estatuto Disciplinar, art. 10.º, n.4).
Por outro lado, se antes de proceder
à execução, o agente tiver reclamado ou exigido a transmissão ou confirmação da
ordem por escrito, duas hipóteses se podem verificar (Estatuto Disciplinar,
art. 10.º, n.3). No caso em que a execução demorada da ordem não cause prejuízo
ao interesse público, o agente pode retardar
a execução sem que esteja a incorrer em desobediência. Já nos casos em que
cause prejuízo o agente deverá comunicar logo por escrito ao seu imediato
superior hierárquico os termos da ordem recevida e o respetivo pedido
formulado, bem como a não satisfação deste, e logo executar a ordem, sem que
possa assim ser responsabilizado.
Mediante opinião do Prof. Vasco
Pereira da Silva cessa o dever de obediência sempre que estejam em causa
direitos fundamentais ou a dignidade da pessoa humana (art.º 133º alínea d) do
CPA).
Desta forma, parece-me claro concluir
que é necessário que se impeça que normas ilegais, ou mesmo aquelas que revelem
na prática de um acto crimonoso, não sejam aceitáveis nem sejam executadas pelo
subalterno que esteja perante um dito “dever de obediência”, apesar da exceção
legitimada pela própria Constituição, em que se afirma um dever de obediência a
ordens ilegais, constituíndo uma exceção ao príncipio da legalidade a que está sujeita a Administração; devendo,
no meu entender, ser revista esta contradição uma vez que uma ordem ilegal
mesmo sendo acatada, mantém sempre o seu caráter ilegal.
Bibliografia:
Olindo Geraldes, Conflito de deveres;
Paulo Otero, Conceito e fundamento da hierarquia administrativa;
CAETANO, Marcelo, Manual de Direito Administrativo, I e II;
OTERO, Paulo, Manual de Direito Administrativo, Vol. I, Almedina, 2013;
AMARAL, Diogo Freitas do, Curso
de Direito Administrativo, Vol. , 2015, 4. Edição, edições almedina, S.A.
Érica Correia, n.º 28116
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