segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Administração e Moral

A título introdutório, percorrerá a presente exposição quatro questões:
1-     A circularidade administrativa e a separação de poderes;
2-     A sociedade massificada e o administrador autómato;
3-     A administração no holocausto: a eficiência e o crime;
4-     Breve referência à administração salazarista;
           
           
1-    Admitindo, na esteira dos professores Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos, que 1) a Administração Pública tem por função satisfazer as necessidades colectivas em cada momento seleccionadas mediante prévia opção constitucional e legislativa através da produção de bens e prestação de serviços; relembrando que 2) o Governo é constitucionalmente definido como cabeça de dragão dessa mesma Administração (182ºCRP) e que 3) o Governo detém para além de competência administrativa, competência legislativa nos termos do art.198º da CRP, infere-se que 4) é do poder do Governo, órgão legitimado, definir legalmente e executar através da Administração continuadamente o interesse público sob o tecto das disposições constitucionais.
            Ora, cabendo ao mesmo órgão definir e executar esta função, verifica-se aquilo que podemos chamar de circulo da administração: delegando a sua vontade na Assembleia da República e no daí retirado Primeiro-Ministro que a representa, a sociedade portuguesa coroa por razão de maioria a ideologia a pautar a actividade política e administrativa do seu país, definindo e executando assim o seu próprio interesse, que por sua vez foi formado sob a execução do interesse público definido e executado continuamente nas eleições anteriores.
            Esta circularidade consubstancia-se na formação da sociedade por si mesma e advém do grande peso dos sectores da saúde, segurança e educação na formação de uma consciência política decisiva para a condução de um país.
            Observe-se particularmente o impacto social advindo da actuação do Ministério da Educação, a que cabem as políticas executivas nesse sector, a desenvolver por decreto-lei a partir das bases emanadas da Assembleia da República (164ºi) – desde a elaboração de programas de ensino e matérias a contemplar à delineação do funcionamento dos exames nacionais de acesso ao ensino superior. E atente-se a sua interdependência com o orçamento de Estado, também ele proposto pelo Governo.
            É sabido que a actuação da Administração é perseguida pelo princípio da legalidade, só podendo, na simplificação de João Caupers, agir com fundamento na lei e de acordo com os seus limites. A lei concede-lhe, no entanto, margens de actuação: ora na apreciação de situações de facto, preenchendo, lecciona-nos Sérvulo Correia, conceitos indeterminados [margem de livre apreciação], ora na escolha entre várias alternativas de actuação juridicamente admissíveis [discricionariedade].

            Se a prossecução do interesse público é deixada em aberto para a definição política sob tecto das disposições constitucionais, e integra o poder legislativo o poder de revisão constitucional, este interesse encontra-se aberto às variações socioeconómicas e ideológicas. E se, por um lado, isso é bom, permitindo uma constante actualização do texto legal, pode por outro tornar-se numa fragilidade perante o triunfo de ideais perigosos para o Estado de Direito.
            Tenhamos como exemplo desta susceptibilidade de mudança do interesse público a revisão de 1986, que veio remover o cunho socializante da Constituição de 1976 trazendo, na letra do professor Gomes Canotilho, uma mutação constitucional. Alterou-se o então artigo 83º relativo à proibição da privatização das empresas directamente nacionalizadas pós-25 de Abril, para se passar a permitir essa reprivatização desde que não fosse além dos 49% do capital social, de maneira a finalmente abolir o artigo na revisão de 1989. A propósito reflecte o professor Gomes Canotilho sobre a legalidade desta alteração.

            O dito reconduz-nos a uma separação de poderes um tanto quanto movediça, uma vez que é perfeitamente praticável a intromissão de um poder na esfera do outro. E mais verifique-se que o princípio da legalidade como primado do bloco legal [a  Constituição,  a  lei,  o  regulamento,  os  direitos  resultantes  de contrato  administrativo  e  de  direito  privado  ou  de  acto  administrativo constitutivo de direitos], de seus corolários preferência e reserva de lei, se faz acompanhar de um executivo que produz lei (art.112ºCRP).                              
            Não sedimentando a teoria de Montesquieu, vem o professor Freitas de Amaral abrigar os actos políticos – aqueles que, brotando da Administração, correspondem materialmente ao exercício da função política – nas excepções ao princípio da legalidade, dizendo-os não susceptíveis de recurso contencioso perante os tribunais administrativos, ressalvando embora o seu dever de obediência à lei, ainda que não susceptível de sanção legal. Seguimos aqui o entendimento do professor Marcelo Rebelo de Sousa quando este diz nunca caber à Administração a função política, esta primária e aquela secundária.
                       
2-      Verificado o papel da Administração na definição e formação do interesse público a prosseguir por si e apontada a susceptibilidade de adaptação constitucional a esse mesmo interesse, debrucemo-nos sobre a relação entre a mentalidade técnico-científica que hoje impera e a abstenção ética na actuação dos delegados administrativos, e depois sobre o perigo de um administrador autómato.

            Robenstein fala-nos de uma racionalidade técnica, fruto da cultura que enfatiza a mentalidade analítico cientifica, numa sociedade crente no progresso das ciências e de tónica profissionalizante – quase como a profetizava Aldous Huxley no Brave New Word, feita de indivíduos como os representava Charlie Chaplin em Tempos Modernos.      

3-      Esta caracterização não destoa dos pressupostos apontados por Hannah Arendt para a eclosão da banalidade do mal, no período do holocausto: da massificação social cresceria uma multidão incapaz de fazer julgamentos morais, pronta a cumprir e aceitar ordens sem as questionar, numa “obediência de cadáver”.
            Enquanto repórter ao serviço da New York Times no Julgamento de Eichmann, Arendt repararia com alguma perplexidade que o administrador do programa de solução final judaica não era um monstro, mas um burocrata que renunciara a pensar.
            O Terceiro Reich potenciou aquilo que Adams Balfour trataria por “Administrative Evil”, resultado de uma inversão moral. A propaganda hitleriana conseguiu, num período de choque nacional que abriria ao chanceler a previsão do artigo 48º da Constituição de Weimar, apresentar o mau como algo bom e construtivo. Por debaixo desta ideia, o agente seguia convicto da positividade da sua acção, dispensando a noção das consequências dos seus actos ou convencido de que as suas actuações se justificavam pelo bem maior.
            A propósito da convicção do bem maior, repare-se que esta subversão foi tanto moral quanto legal, visto que Hitler legislou e executou um interesse comum a que a sociedade aderiu. O Conselho de Ministros nazi transforma-se num órgão burocrático subserviente ao líder, que controla a máquina  estatal e cria um aparelho paralelo que multiplica e confunde as esferas de decisão em muitas áreas da administração, com muitos funcionários. Depois de legislar o antisseíssimo, pelas hoje conhecidas Leis de Nuremberg, restava executá-lo. E ensina-nos Rubenstein que nenhuma lei contra o genocídio ou a desumanização foi violada pelos que perpetraram o holocausto, tendo sido tudo administrativamente aprovado por uma autoridade legitimada, enquanto programas-chave eram iniciados de dentro da burocracia. Estes burocratas cumpriram assim deveres enquadrados numa ética consistente com as normas de profissionalismo e racionalidade técnica.
            Tendo Eichmman (assustadoramente) agido em conformidade legal, coube ao tribunal julga-lo por crimes contra a humanidade e contra os judeus. Após este julgamento, prosseguiu a filósofa judia especificando que o mal deixou neste período de ser reconhecido porque perdeu a sua característica por excelência, a tentação, para se consubstanciar no conformismo hierárquico, na abstenção de juízo moral e político responsável e no cumprimento e execução de ordens superiores.

4-      Entre nós, também a administração salazarista prosseguiu um interesse público não tão comum quanto isso. Numa fraca sociedade civil, como a disse António Costa Pinto, ascende uma escassíssima elite social e administrativa letrada, com centros de formação universitária elitistas e de acesso muito limitado, pautados por um conservadorismo católico e monárquico.
            O auto-intitulado presidente do conselho concentraria em si a decisão até sobre áreas técnicas, cortando completamente a margem de decisão autónoma dos ministérios. Era, assim, uma administração pública controlada, tal como a hitleriana, pois instrumento fundamental do poder político ditatorial.

           
            Percorrido aquilo que de mais horrendo foi concretizado na Administração Pública, resta-nos constatar que o administrador executou em tempos directrizes de tortura e de assassinato; mas que ainda hoje executa prisioneiros em Estados que admitem a pena de morte e financiamentos militares, entre outro tipo de atrocidades sabidas como tal, já num ambiente de moral não subvertida, apenas violada.

            BIBLIOGRAFIA
AMARAL, Diogo Freitas. – Curso de Direito Administrativo, Volume I 4-ª Edição. Coimbra: Edições Almedina, 2015;
REBELO DE SOUSA, Marcelo; SALGADO DE MATOS, André. “Direito Administrativo Geral- Tomo I- Introdução e Princípios Fundamentais”. 3ªed. Dom Quixote, 2008;
           
            WEBGRAFIA
            The Problem of Administrative Evil in a Culture of Technical Rationality - Guy B. Adams[http://www.iupui.edu/~spea1/V502/Orosz/Units/Sections/u2s3/adams_admin_evil_public_integrity_su_2011.pdf]
            O império do professor: Salazar e a elite ministerial do Estado Novo (1933-1945)
[http://analisesocial.ics.ul.pt/documentos/1218725415V6nUO2ti9Hs64TS4.pdf]
            À DESCOBERTA DO FUNDAMENTO CONSTITUCIONAL DO DIREITO ADMINISTRATIVO GLOBAL - Francisco Abreu Duarte [http://e-publica.pt/pdf/artigos/adescoberta.pdf]

            
Beatriz Lourenço

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