A título introdutório, percorrerá a
presente exposição quatro questões:
1- A
circularidade administrativa e a separação de poderes;
2-
A sociedade massificada e o administrador
autómato;
3- A
administração no holocausto: a eficiência e o crime;
4- Breve
referência à administração salazarista;
1-
Admitindo, na
esteira dos professores Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos,
que 1) a Administração
Pública tem por função satisfazer as necessidades colectivas em cada momento
seleccionadas mediante prévia opção constitucional e legislativa através da
produção de bens e prestação de serviços; relembrando que 2)
o Governo é constitucionalmente definido como cabeça de dragão dessa mesma Administração
(182ºCRP) e que 3)
o Governo detém para além de competência administrativa, competência
legislativa nos termos do art.198º da CRP, infere-se que 4) é
do poder do Governo, órgão legitimado, definir legalmente e executar através da
Administração continuadamente o interesse público sob o tecto das disposições
constitucionais.
Ora, cabendo ao mesmo órgão definir
e executar esta função, verifica-se aquilo que podemos chamar de circulo da
administração: delegando a sua vontade na Assembleia da República e no daí
retirado Primeiro-Ministro que a representa, a sociedade portuguesa coroa por
razão de maioria a ideologia a pautar a actividade política e administrativa do
seu país, definindo e executando assim o seu próprio interesse, que por sua vez
foi formado sob a execução do interesse público definido e executado continuamente
nas eleições anteriores.
Esta circularidade consubstancia-se na
formação da sociedade por si mesma e advém do grande peso dos sectores da
saúde, segurança e educação na formação de uma consciência política decisiva
para a condução de um país.
Observe-se particularmente o impacto
social advindo da actuação do Ministério da Educação, a que cabem as políticas executivas
nesse sector, a desenvolver por decreto-lei a partir das bases emanadas da
Assembleia da República (164ºi) – desde a elaboração de programas de ensino e
matérias a contemplar à delineação do funcionamento dos exames nacionais de
acesso ao ensino superior. E atente-se a sua interdependência com o orçamento
de Estado, também ele proposto pelo Governo.
É sabido que a actuação da
Administração é perseguida pelo princípio da legalidade, só podendo,
na simplificação de João Caupers, agir com fundamento
na lei e de acordo com os seus limites. A lei concede-lhe, no entanto, margens
de actuação: ora na apreciação de situações de facto, preenchendo, lecciona-nos
Sérvulo Correia, conceitos indeterminados [margem de
livre apreciação], ora na escolha entre várias alternativas de actuação
juridicamente admissíveis [discricionariedade].
Se a prossecução do interesse
público é deixada em aberto para a definição política sob tecto das disposições
constitucionais, e integra o poder legislativo o poder de revisão
constitucional, este interesse encontra-se aberto às variações socioeconómicas
e ideológicas. E se, por um lado, isso é bom, permitindo uma constante
actualização do texto legal, pode por outro tornar-se numa fragilidade perante
o triunfo de ideais perigosos para o Estado de Direito.
Tenhamos como exemplo desta
susceptibilidade de mudança do interesse público a revisão de 1986, que veio
remover o cunho socializante da Constituição de 1976 trazendo, na
letra do professor Gomes Canotilho, uma mutação
constitucional. Alterou-se o então artigo 83º relativo à proibição da
privatização das empresas directamente nacionalizadas pós-25 de Abril, para se
passar a permitir essa reprivatização desde que não fosse além dos 49% do
capital social, de maneira a finalmente abolir o artigo na revisão de 1989. A
propósito reflecte o professor Gomes Canotilho sobre a legalidade desta
alteração.
O dito reconduz-nos a uma separação
de poderes um tanto quanto movediça, uma vez que é perfeitamente praticável a
intromissão de um poder na esfera do outro. E mais verifique-se que o princípio
da legalidade como primado do bloco legal [a Constituição,
a lei, o
regulamento, os direitos
resultantes de contrato administrativo e
de direito privado
ou de acto
administrativo constitutivo de direitos], de seus corolários
preferência e reserva de lei, se faz acompanhar de um executivo que produz lei (art.112ºCRP).
Não sedimentando a teoria de
Montesquieu, vem o professor Freitas de Amaral abrigar os actos políticos – aqueles
que, brotando da Administração, correspondem materialmente ao exercício da função
política – nas excepções ao princípio da legalidade,
dizendo-os não susceptíveis de recurso contencioso perante os tribunais
administrativos, ressalvando embora o seu dever de obediência à lei, ainda que
não susceptível de sanção legal. Seguimos aqui o entendimento do professor
Marcelo Rebelo de Sousa quando este diz nunca caber à Administração a função
política, esta primária e aquela secundária.
2-
Verificado o papel da Administração
na definição e formação do interesse público a prosseguir por si e apontada a
susceptibilidade de adaptação constitucional a esse mesmo interesse,
debrucemo-nos sobre a relação entre a mentalidade técnico-científica que hoje
impera e a abstenção ética na actuação dos delegados administrativos, e depois
sobre o perigo de um administrador autómato.
Robenstein fala-nos de uma
racionalidade técnica, fruto da cultura que enfatiza a mentalidade analítico
cientifica, numa sociedade crente no progresso das ciências e de tónica profissionalizante
– quase como a profetizava Aldous Huxley no Brave New Word, feita de indivíduos
como os representava Charlie Chaplin em Tempos Modernos.
3-
Esta caracterização não destoa dos
pressupostos apontados por Hannah Arendt para a eclosão da banalidade do mal, no período do holocausto: da massificação social
cresceria uma multidão incapaz de fazer julgamentos morais, pronta a cumprir e
aceitar ordens sem as questionar, numa “obediência de cadáver”.
Enquanto repórter ao serviço da New
York Times no Julgamento de Eichmann, Arendt repararia com alguma perplexidade
que o administrador do programa de solução final judaica não era um monstro,
mas um burocrata que renunciara a pensar.
O Terceiro Reich potenciou aquilo
que Adams Balfour trataria por “Administrative Evil”, resultado de uma inversão
moral. A propaganda hitleriana conseguiu, num período de choque nacional que
abriria ao chanceler a previsão do artigo 48º da Constituição de Weimar,
apresentar o mau como algo bom e construtivo. Por debaixo desta ideia, o agente
seguia convicto da positividade da sua acção, dispensando a noção das
consequências dos seus actos ou convencido de que as suas actuações se
justificavam pelo bem maior.
A propósito da convicção do bem
maior, repare-se que esta subversão foi tanto moral quanto legal, visto que
Hitler legislou e executou um interesse comum a que a sociedade aderiu. O Conselho
de Ministros nazi transforma-se num órgão burocrático subserviente ao líder, que
controla a máquina estatal e cria um aparelho
paralelo que multiplica e confunde as esferas de decisão em muitas áreas da
administração, com muitos funcionários. Depois de legislar o antisseíssimo,
pelas hoje conhecidas Leis de Nuremberg, restava executá-lo. E ensina-nos
Rubenstein que nenhuma lei contra o genocídio ou a desumanização foi violada
pelos que perpetraram o holocausto, tendo sido tudo administrativamente
aprovado por uma autoridade legitimada, enquanto programas-chave eram iniciados
de dentro da burocracia. Estes burocratas cumpriram assim deveres enquadrados
numa ética consistente com as normas de profissionalismo e racionalidade
técnica.
Tendo Eichmman (assustadoramente)
agido em conformidade legal, coube ao tribunal julga-lo por crimes contra a
humanidade e contra os judeus. Após este julgamento, prosseguiu a filósofa
judia especificando que o mal deixou neste período de ser reconhecido porque
perdeu a sua característica por excelência, a tentação, para se consubstanciar
no conformismo hierárquico, na abstenção de juízo moral e político responsável
e no cumprimento e execução de ordens superiores.
4-
Entre nós, também a administração
salazarista prosseguiu um interesse público não tão comum quanto isso. Numa
fraca sociedade civil, como a disse António Costa Pinto, ascende uma
escassíssima elite social e administrativa letrada, com centros de formação
universitária elitistas e de acesso muito limitado, pautados por um
conservadorismo católico e monárquico.
O auto-intitulado presidente do
conselho concentraria em si a decisão até sobre áreas técnicas, cortando
completamente a margem de decisão autónoma dos ministérios. Era, assim, uma
administração pública controlada, tal como a hitleriana, pois instrumento fundamental
do poder político ditatorial.
Percorrido aquilo que de mais horrendo
foi concretizado na Administração Pública, resta-nos constatar que o
administrador executou em tempos directrizes de tortura e de assassinato; mas
que ainda hoje executa prisioneiros em Estados que admitem a pena de morte e
financiamentos militares, entre outro tipo de atrocidades sabidas como tal, já
num ambiente de moral não subvertida, apenas violada.
BIBLIOGRAFIA
AMARAL, Diogo Freitas.
– Curso de Direito Administrativo, Volume I 4-ª Edição. Coimbra: Edições
Almedina, 2015;
REBELO DE SOUSA,
Marcelo; SALGADO DE MATOS, André. “Direito Administrativo Geral- Tomo I-
Introdução e Princípios Fundamentais”. 3ªed. Dom Quixote, 2008;
WEBGRAFIA
The Problem of Administrative Evil in a Culture of
Technical Rationality - Guy B. Adams[http://www.iupui.edu/~spea1/V502/Orosz/Units/Sections/u2s3/adams_admin_evil_public_integrity_su_2011.pdf]
O império do professor:
Salazar e a elite ministerial do Estado Novo (1933-1945)
[http://analisesocial.ics.ul.pt/documentos/1218725415V6nUO2ti9Hs64TS4.pdf]
À DESCOBERTA DO FUNDAMENTO CONSTITUCIONAL DO DIREITO
ADMINISTRATIVO GLOBAL - Francisco Abreu Duarte [http://e-publica.pt/pdf/artigos/adescoberta.pdf]
Beatriz Lourenço
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