sábado, 29 de outubro de 2016

As garantias jurídicas dos particulares e os atos da Administração em função do tipo de Estado


As garantias jurídicas dos particulares e  os atos da Administração em função do tipo de Estado

A Administração Pública é actualmente identificada como um “conjunto de necessidades colectivas cuja satisfação é assumida como tarefa fundamental pela colectividade, através de serviços por esta organizados e mantidos"[1].
A Administração enquanto advento do Estado em sentido Moderno é marcada quanto aos seus actos por dois grandes períodos, o Período do Estado Liberal e o de Estado Social: “sucedendo ao tema de Estado Polícia é o tema de Estado Providência que se afirma[2]. O professor Freitas do Amaral no entanto ressalva que não será correto afirmar que se passou do Estado Liberal ao Estado Social, visto que o que é considerado período de Estado Social “encobre um antagonismo insanável e irredutível[3].  O professor Vasco Pereira da Silva por sua vez recorta estes dois grandes períodos, visto que o conceito de ato administrativo se transformou de um período para o outro.
O ato administrativo teve como função recortada no seu conceito  a de “delimitar os comportamentos da Administração que são susceptíveis de recurso contencioso a fins de garantia dos direitos dos particulares[4], tendo o ato uma função finalística, ou seja “garantia de uma protecção jurídica eficaz do cidadão contra o poder público[5]. Perspectiva-se dessa forma o ato administrativo como sendo garante do direito dos particulares, ao que através do recurso ao tribunal os particulares à partida poderiam contestar caso vissem violadas as suas garantias, mas como irei explicitar, nem sempre a prática correspondeu ao que havia sido teorizado como função do ato administrativo.

-Estado Liberal como Administração Agressiva: ato executório/polícia:
No período de Estado Liberal, que se inicia com as evoluções americana e francesa, (1776 e 1789 respectivamente) o ato administrativo ainda não era garante dos particulares, mas sim servia como garantia da própria Administração.
A Administração na altura estava entregue ao Estado, assim como o poder executivo, tendo decorrido do princípio da separação dos poderes após a Revolução Francesa, que o poder judicial ficava entregue aos Tribunais e o legislativo ao Parlamento.
Com a Revolução Francesa, foi reconhecido aos cidadãos um “conjunto de direitos subjectivos públicos invocáveis perante o Estado[6], ou seja surgiram os “direitos do homem” que eram anteriores e superiores ao Estado, e que por isso o mesmo deve respeitar.
Quais eram então os mecanismos que garantiam essa defesa?                                                          
 Foi proclamada ainda no início deste período, um outro princípio, que é o da legalidade, que afirmava que a Administração apenas podia invadir a esfera dos particulares, ou prejudicar os seus direitos, apenas com base de lei do Parlamento. Caso transgredisse esta esfera de legalidade, seria sujeita a julgamento de tribunal administrativo. Porém, o ato administrativo era isento de controlo judicial, sendo que a separação de poderes determinou que “só os tribunais administrativos, que não eram verdadeiros tribunais, mas órgãos da administração estavam incumbidos de fiscalizar a legalidade da Administração”[7]. Não eram verdadeiros tribunais também pelo facto de não gozarem de jurisdição plena, podendo apenas anular os actos da Administração caso seja ilegal, não sendo de sua competência estipular as consequências jurídicas por ter praticado ato ilegal. Além disso, e visto tratar-se de órgão administrativo é a própria Administração que decide como há de executar as sentenças anulatórias.
Entende-se portanto que o ato administrativo seja uma garantia da Administração, porque apesar de no plano teórico ser entendido como instrumento de garantia do direito dos particulares, permitindo o seu recurso à justiça, traduziu-se pois numa “forma da Administração se eximir  do controlo judicial”[8].
Podemos também caracterizar o ato administrativo, quanto à sua favorabilidade para com os cidadão, sendo notório que neste período o ato aqui desfavorável, visto que “administrar converte-se em sinónimo de executar as leis[9].  O ato administrativo segundo Oto Mayer, é a “manifestação da Administração autoritária, que determina o direito aplicável aos súbditos no caso concreto” sendo então “parente próximo da sentença judicial”[10], visto que tal como o juiz, a administração dizia o direito e aplicava ao caso concreto. A autoridade da Administração seria justificada pelo facto de estar a prosseguir o interesse público, e como tal estaria legitimada a poder “sobrepor-se aos interesses particulares que se oponham à realização do interesse geral”. Para tal detinha um conjunto de “poderes exorbitantes”[11] que se traduziam no facto da Administração executar as suas decisões por autoridade própria, e além disso empregar por si só os meios coativos para que a sua decisão fosse aplicada.
Maurice Hariou considerou o ato como típico da Administração polícia, uma vez que “o poder administrativo é construído à volta desta ideia de polícia administrativa destinada a assegurar a ordem púbica e paz estadual”.

Posso então afirmar que no Estado Liberal proclamava-se um conjunto de garantias jurídicas dos direitos dos particulares face à atuação administrativa, sob o pretexto de ter nascido a preocupação de proteger os particulares contra ao arbítrio da administração.
As garantias, no entanto, não tinham como ser efetivadas, visto que: o professor Vasco Pereira da Silva afirma que “havia promiscuidade entre o poder de julgar e de administrar” ou seja a administração julgava-se a si própria (pecado original); além disso o juiz não gozava de jurisdição plena, só podendo anular os atos da administração, não podendo proibir a administração de agir de certa forma nem mesmo impor um comportamento.


-Estado Social como Administração Prestadora: o ato favorável:
Como havia referido, só numa fase posterior é que o ato administrativo, segundo o professor Vasco Pereira da Silva, passou a ser um “conceito que funciona ao serviço das garantias dos particulares”, sendo que o Estado Social surge na transição para o século XX.
O ato administrativo passou então a funcionar ao serviço dos particulares, isto porque surgem ao lado dos direitos, liberdades e garantias, os direitos económicos sociais e culturais. O Estado é “então conduzindo a alargar consideravelmente a sua acção”[12], sendo também mais intensa a mesma, ou seja deu-se “o crescimento quantitativo e qualitativo das funções por si desempenhadas”[13].
O Estado passou então a intervir na relação laboral, também de forma generalizada no funcionamento da economia (regulando a procura e oferta), tendo atingido o seu apogeu enquanto Estado Social ao assumir a função de prestador, ou seja, prestava bens e serviços aos particulares decorrentes da função de proteger e garantir os direitos económicos, sociais e políticos.
O tipo de Estado que aqui surge, o Estado Providência, visa ajudar a resolver os problemas de integração dos indivíduos na sociedade, trazendo consigo o aumento da dependência do individuo relativamente aos poderes públicos, originando um sentimento de insegurança e insatisfação que leva os indivíduos a reclamar a maior intervenção. Para que haja maior integração, o Estado assume como funções: a fiscalização e controlo da economia, assumindo também em maior escala a produção de bens e serviços públicos; a promoção da cultura ao garantir que todos têm acesso à educação; a acção social ao garantir que assegura aos cidadãos o direito à saúde, trabalho, segurança social.
Trata-se de um tipo de “Estado que se sente na obrigação de derramar sobre os seus membros todos os benefícios do progresso”.[14]
É patente que neste período as garantias jurídicas dos particulares eram efectivas, sendo que para o efeito dispunham da “mais ampla panóplia de instrumentos jurídicos de protecção”[15]: possibilidade de recurso, os processos executivos eram eficazes e não estavam sujeitos a controlo governamental. Além disso, os tribunais administrativos tornaram-se órgãos independentes da Administração e os juízes gozam agora de jurisdição plena.
A figura típica no seio da Administração prestadora é a do “ato favorável aos particulares ou ato constitutivo de direitos”[16], podendo a Administração escolher de entre as formas de actuação possíveis (contrato, regulamento, operação técnica ato administrativo em sentido estrito…) a que melhor prossiga os interesses dos particulares entendendo-se também que no seio de uma Administração Prestadora que não seja sempre necessário que o ato seja “definidor de direito ou suscetível de realização coactiva”[17], deixando de ser visto como “uma agressão da esfera individual”  e transitando para “instrumento de satisfação de interesses individuais”[18].
Posso então concluir ao afirmar que no seio Administração prestadora, o particular tinha garantias jurídicas que eram efectivas, podendo não só reagir contra os actos ilegais da Administração, mas também contra a as omissões da Administração que são relativas à recusa da Administração realizar uma prestação que atribuía uma vantagem ao particular, lesando assim os seus direitos. No quadro europeu, era possível reagir judicialmente por 2 vias: na Alemanha por via da criação de “sentenças condenatórias da Administração” que se reconduzem a “acções de cumprimento de um dever”, e em Portugal, Itália, Espanha e França, através da criação do “ato tácito”, cuja impugnação se permite como “forma de reagir contra uma atitude omissa ou ilegal”[19].




Inês Andreia Mendes Cardoso, número 28219, subturma 14

                          BIBLIOGRAFIA
-DIOGO FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Admnistrativo I , Almedina, 4º edição, 2015
-ERNST FORTSTHOFF, “Lehrbuch des Verwaltungscrechts, volume I, 10ª Edição, Beck Muenchen, 1971
- JEAN RIVERO, “Droit Admnistrátif”, 13ª Edição, Dalloz Pans, 1990
- MAYER OTTO, Deutsches Verwaltungsrecht,  I volume, 6ºa edição Von Duckens Humblot, Berlin 1969
- VASCO PEREIRA DA SILVA, “Em busca do Ato Administrativo Perdido”, Dissertação de Doutoramento em Ciências Jurídico Políticas, Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa,1996




[1] DIOGO FREITAS DO AMARAL, “Curso de Direito Administrativo I”, Almedina, 4º Edição, 2015, página 25
[2] JEAN RIVERO, “Droit Admnistrátif”, 13ª Edição, Dalloz Pans, 1990, página 31
[3] DIOGO FREITAS DO AMARAL, Curso… cit. Página 73
[4] DIOGO FREITAS DO AMARAL, “Direito Admnistrativo”, volume III, Lições Policopiadas, Lisboa, 1989, página 59
[5] ERNST FORTSTHOFF, “Lehrbuch des Verwaltungscrechts, volume I, 10ª Edição, Beck Muenchen, 1971, página 159
[6] DIOGO FREITAS DO AMARAL, Curso… citado, página 63
[7] DIGO FREITAS DO AMARAL, Curso…citado página 93
[8] VASCO PEREIRA DA SILVA, “Em busca do Ato Administrativo Perdido”, Dissertação de Doutoramento em Ciências Jurídico Políticas, Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa, página.
[9] DIOGO FREITAS DO AMARAL, Curso…citado, página 63
[10] MAYER OTTO, Deutsches Verwaltungsrecht,  I volume, 6ºa edição Von Duckens Humblot, Berlin 1969, página 103          
[11] DIOGO FREITAS DO AMARAL, Curso…citado página 97-98
[12] JEAN RIVERO,Droit…citado página 31
[13] VASCO PEREIRA DA SILVA, Em busca…citado página 74
[14] DIOGO FREITAS DO AMARAL, “Curso…citado, página 80-81
[15] DIOGO FREITAS DO AMARAL, “Curso…citado, página 79
[16] VASCO PEREIRA DA SILVA,” Em busca…citado, página 105
[17] MAURICE HARIOU, Précis Élementaire de Droit Administrátif, 5ª edição, Sirey Pans de 1943, página 248 e seguintes
[18] VASCO PEREIRA DA SILVA, “Em busca…”,citado página 106
[19] VASCO PEREIRA DA SILVA, “Em busca…, citado página 112

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