domingo, 30 de outubro de 2016

Personalismo e Administração Pública

Segundo escreve o Professor Marcelo Rebelo de Sousa, difícil será negar o facto da Administração Pública nos acompanhar durante toda a vida, todos os dias e todas as noites, desde o amanhecer até o anoitecer. O facto de estar a escrever este post, que brevemente será lido e avaliado, recorrendo à comunicação via internet constitui uma vulgar manifestação do Direito Administrativo em movimento.
Ora, do texto constitucional, mais concretamente do previsto na redação do artigo 266.º, "a Administração Pública visa a prossecução do interesse público, no respeito pelos direitos  e interesses legalmente protegidos dos cidadãos", sendo que a atuação dos órgãos e agentes administrativos se encontra legitimada pela subordinação ao Direito e à lei.
Da previsão do citado artigo instantaneamente nos assalta o intelecto uma questão que, uma vez mais, vê o seu significado se esfumar diante de nós, restando apenas tentativas de definição: afinal, o que é o interesse público? E daqui advem uma infinidade de outras questões: quem é que se encontra legitimado a prosseguir o interesse público? quais os meios que podem e devem ser-lhe afetos? como conciliar os diferentes interesses dos indivíduos?
A verdade é que não há uma resposta una. Esta varia consoante o momento histórico em que vivemos e, particularmente, conforme o sistema de governo em vigor. No dizer do Professor Paulo Otero, tendo em conta a relação entre as posições jurídicas subjetivas dos sujeitos e a Administração Pública, a prossecução do interesse público e a satisfação das necessidades coletivas pode desenrolar-se segundo três conceções:
  • conceção de matriz totalitária, em se observa o domínio do interesse público, o que justifica o sacrifício das posições jurídicas subjetivas dos sujeitos;
  • conceção compromissória, que harmoniza a prossecução do interesse público com as posições jurídicas subjetivas dos indivíduos;
  • conceção personalista, em que se verifica a prevalência absoluta do núcleo fundamental da dignidade da pessoa humana sobre a prossecução do interesse público.
Esta corresponde a uma interpretação de natureza personalista do artigo 266.º, n.º 1, que se coaduna com as próprias fundações da República Portuguesa (artigo 1.º). Recorrendo novamente ao pensamento do Professor Paulo Otero, esta interpretação assenta em dois postulados:
  • o respeito pela dignidade da pessoa humana nunca pode ser derrogado em favor da prossecução do interesse público;
  • a dignidade da pessoa humana é o fundamento e o limite da prossecução do interesse público

Portanto, do n.º 1 do artigo 266.º decorrem dois limites substanciais à atividade administrativa: um limite positivo, expresso na obrigatoriedade da prossecução do interesse público, e um limite negativo, patente no respeito pelos direitos e interesses legítimos dos cidadãos. 
O interesse público corresponde sempre ao fim da atividade administrativa considerado pela lei e pela Constituição, mesmo no uso de poderes discricionários. O critério teleológico de interpretação e adequação da prossecução do interesse público é o respeito pela dignidade humana. Somente a dignidade humana pode limitar a dignidade humana. Os direitos fundamentais e as liberdades inerentes ao seu núcleo essencial são insuscetíveis de ceder perante todo e qualquer interesse público. 
Por seu turno do n.º 2 do referido artigo decorre o princípio da constitucionalidade da administração: todos os órgãos e poderes do Estado estão submetidos às normas e princípios hierarquicamente superiores da Constituição. Como relacionar com o princípio da legalidade em sentido estrito, isto é, a subordinação à lei? A atividade administrativa supõe prévia mediação necessária da lei, ou pode executar diretamente a Constituição? 
Sabe-se que, sendo a função legislativa função primária do Estado, a Administração deve obedecer à definição dos interesses públicos primários legalmente definidos. Por outro lado, a Administração livre de lei apesar de ter de obedecer aos quadros legais pré-estabelecidos (princípio da prevalência de lei), assume uma iniciativa autónoma e conformadora em domínios menos propícios à regulação por lei.
Cumpre também saber se a Constituição pode incumprir as leis por motivo de inconstitucionalidade. A resposta clássica é a de que, à partida, a Administração está diretamente subordinada à lei, não podendo deixar de a cumprir a pretexto da sua inconstitucionalidade. O problema maior surge  no domínio dos direitos, liberdades e garantias (artigo 18.º) em que só a lei os pode restringir nos casos expressamente previstos na Constituição. Aí é admissível uma exceção ao princípio da obediência à lei quando a inconstitucionalidade for flagrante e manifesta, tendo em especial consideração a jurisprudência do Tribunal Constitucional até então.
O princípio da justiça remete igualmente para valores e critérios materiais constitucionalmente consagrados, como é o caso da dignidade da pessoa humana (artigo 1.º) e o princípio da igualdade (artigo 13.º). 
O princípio da imparcialidade constitui mais um limite material interno da atividade administrativa e respeita às relações entre Administração pública e os particulares: existindo um conflito entre interesses particulares e o interesse público, a Administração deve proceder com isenção na determinação do interesse público, de modo a não sacrificar desproporcionalmente os interesses dos indivíduos. É também a partir deste princípio que se exige igualdade de tratamento dos interesses dos cidadãos mediante um critério uniforme de prossecução do interesse público.
Do conteúdo deste post salta à vista a perplexidade que constitui a tentativa de conjugar os interesses individuais com o interesse público. O que é um e o que é o outro precisamente, é tarefa impossível de concretizar. Como atingir a plenitude do desenvolvimento individual no seio da vida em comunidade? Qual o papel da Administração nesse sentido? 
Na incerteza temos uma garantia que penso estar expressa na seguinte passagem de 1984 de George Orwell: "pensou no telecrã, nos ouvidos sempre à escuta. Espiavam as pessoas dia e noite, mas mesmo assim, se se conservasse o sangue frio, conseguia-se ludibriá-los. Por muito clarividentes que fossem, nunca resolveriam o enigma de saber quais os pensamentos dos outros seres humanos. (...) Factos, em todo o caso, tornava-se inviável ocultá-los. (...) Mas se o objetivo, em vez de ser continuar vivo, for continuar a ser humano, então, bem vistas as coisas, tudo o mais que diferença faria? (...) Podiam pôr a nu, com todo o pormenor, quanto houvéramos feito, dito ou pensado; mas o mais fundo do coração, cujo funcionamento até para nós constitui um mistério, há-de de ser sempre inexpugnável"

Bibliografia
OTERO, Paulo, Manual de Direito Administrativo, vol. I, Almedina, 2013
SOUSA, Marcelo Rebelo de, MATOS, André Salgado de, Direito Administrativo Geral - Introdução e Princípios Fundamentais, tomo I, reimpressão da 3.ª edição, D. Quixote, 2016
CANOTILHO, J.J. Gomes, MOREIRA, Vital, Constituição Anotada, vol. II, 2.ª edição, 1985

Natalina Hermano (28124, Turma B, subturma 14)



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