Dicey - Hauriou
A querela sobre os dois sistemas administrativos predominantes
Carla Costa
É inevitável, no estudo do Direito Administrativo, nomeadamente, na análise do seu longo processo de evolução, ignorar a incompreensão mútua estabelecida entre o direito inglês da common Law e o direito romano-germânico da Europa continental.
Em 1964, René David, merecidamente reconhecido pela sua enorme contribuição para o Direito Comparado, na segunda metade do século XX, lamentava a presença de “tantas opiniões erróneas e preconceitos nos países do continente europeu acerca da teoria das fontes do direito inglês”[1]. O mesmo se verificaria no Reino Unido onde “o jurista inglês (…) gosta de valorizar a continuidade histórica do seu direito; este surge-lhe como sendo produto de uma longa evolução que não foi perturbada por nenhuma revolução; orgulha-se desta circunstância, da qual deduz, não sem razão, a prova da grande sabedoria da common Law, das suas faculdades de adaptação, do seu permanente valor e de qualidades correspondentes nos juristas e no povo inglês”[2].
O grande debate desta questão remete-nos para a controvérsia Dicey[3]-Hauriou[4] acerca dos sistemas de controlo jurisdicional da Administração Pública. O confronto entre estes dois grandes juspublicistas é o exemplo mais claro das diferenças de concepção de conceitos como o de Direito, de Estado, de Administração Pública e da posição do cidadão diante dela.
“Rule of Law confronted with ‘Droit Administratif’ ”[5]
Segundo o entendimento de A.V. Dicey, os dois sistemas seriam incompatíveis porquanto o rule of law: “(…) every man, whatever be his rank or condition, is subject to the ordinary law of the realm and amenable too the jurisdiction of the ordinary tribunals”[6]. Em conformidade, Dicey afirmava que a igualdade de todos perante a lei, conceito central no sistema jurídico inglês, era um princípio incompatível com o ‘Droit Administratif’.
A divergência, aos olhos de Dicey, entre o sistema inglês do rule of law e o sistema francês do droit administratif, era inegável: “the rule of law (…) excludes de idea of any exemption of officials or others from the duty of obedience to the law which governs other citizens or from the jurisdiction of the ordinary tribunals; there can be with us nothing really correspondig to the ‘droit administratif’ or the ‘tribunaux administratifs’ of France”[7].
Dicey acusava ainda o ’Droit Administratif’ de defender “two leading ideas alien to the conception of modern Englishmen”[8]: a sujeição da Administração a tribunais administrativos, não tendo juízes imparciais mas sim autênticos funcionários públicos ao serviço dos interesses governamentais; e a separação entre a Administração e a Justiça, não podendo o judiciário interferir no Executivo e vice-versa.
Finalmente para Dicey, a incompatibilidade destes dois sistemas fica ainda mais clara quando o problema da terminologia é colocado. A expressão “direito administrativo” não tem um equivalente exacto em inglês. Em complemento, sugere que “In England, and in countries which like the U. States, derive their civilisation from English sources, the system of administrative Law and the very principles on wich it rests are in truth Unknown”[9].
Assim, esta marca remete não só para um país, segundo Dicey, mas para toda uma civilização: a anglo-saxônica, a civilização da “rule of Law” em oposição à do “droit administratif”, sendo a primeira, na opinião do mesmo autor, francamente superior, pois protegia muito mais e muito melhor os cidadãos contra os excessos cometidos pela Administração Pública[10].
Apesar das duras críticas ao Direito Administrativo francês, a resposta francesa veio apenas duas décadas mais tarde, pela mão de Maurice Hauriou.
Hauriou parte do conceito de função administrativa, que consistiria na prossecução da satisfação das necessidades de ordem pública e no garante do funcionamento de certos serviços públicos para a satisfação de interesses gerais e a gestão dos assuntos de utilidade pública. Esta função seria exercida por todos os Estados modernos. Neste sentido, quando Dicey afirma que o Direito Administrativo é uma exclusividade continental sem correspondente na Inglaterra, confunde, na perspectiva de Hauriou, o conceito de função administrativa com o conceito de regime administrativo. Consequentemente, o que nem todos os Estados têm é um regime administrativo: “(…)tous les functions administratifs y ont eté fortement centralisées et confiées à un pouvoir unique”[11]. É essa centralização das funções administrativas e sua submissão jurídica à autoridade do executivo que caracteriza este regime.
Embora “l’Anglaterre est le type le plus achevé de ces États sans régime administratif”[12], a função administrativa existe e, por isso, há, também, Direito Administrativo.
Afigura-se importante prestar atenção, em especial, a uma advertência de Hauriou: “Il ne faudrait pas croire que, seuls existent dans le monde les deux types trés tranchés du pays sans régime administratif à la mode de l’Anglaterre et du pays à regime administratif à la mode de la France (…) La plupart des pays se sont arrêtés à des combinaisons variées de l’administration judiciaire et de l’administration exécutive”[13].
Que pensar deste debate intelectual?
De acordo com os ensinamentos do Professor Freitas do Amaral, Dicey, pioneiro no estudo das diferenças entre os sistemas administrativos britânico e francês, terá sido bastante acertivo ao classificar os “tribunaux administratifs”, não como verdadeiros tribunais, mas como órgãos especiais da Administração, compostos por funcionários.
Todavia, Dicey errou, de acordo com esta perspectiva, ao reduzir o Direito Administrativo à existência de tribunais administrativos, confundindo assim o plano do direito substantivo com o da organização judiciária: pode haver, nomeadamente, Direito Administrativo confiado à aplicação dos tribunais comuns, tal como tribunais administrativos que apliquem o direito privado à Administração[14].
Freitas do Amaral acrescenta, posteriormente, a existência de outro lapso: Dicey sustenta que os tribunais administrativos de modelo francês não eram capazes de garantir eficazmente a protecção dos direitos dos particulares contra os excessos de poder da Administração Pública. No entanto, já nesta altura o Conseil d’État[15] se desincumbia da missão de tutela jurisdicional efectiva dos particulares face ao poder executivo.
É ainda dúbio que no final do século XIX não houvesse em Inglaterra numerosas leis administrativas, conferindo extensos poderes de autoridade a vários órgãos da Administração. Sabino Cassese, notável jurista italiano, avalia na sua obra “Le Basi del Diritto amministrativo” esta dicotomia entre os dois sistemas, comentando a posição de Albert Van Dicey e alguns pontos criticáveis na sua argumentação. Em conformidade, Cassesse afirma que em Inglaterra existiam regras especiais apenas aplicáveis a autoridades públicas, como o princípio da imunidade da Coroa em matéria de responsabilidade ou ainda o princípio do privilégio do corpo diplomático e da polícia.
A verdade é que, com o passar do tempo, é o próprio Dicey quem admite que a administração inglesa gozava igualmente de alguns privilégios especiais análogos aos da administração francesa, acrescentando que «recent legislation has occasionally, and for particular purposes, given to officials something like judicial authorithy»[16], o que permite, nalgumas circunstâncias, «to see a slight approximation to “droit administratif”»[17].
Por outro lado, Hauriou, tal como o afirma Freitas do Amaral, compreende que as diferenças entre estes dois sistemas não se prendem pelo género, mas pela espécie. São, portanto, dois modos de submeter a Administração Pública ao direito.
Tem ainda particular interesse a sua visão relativamente aos regimes administrativos: Hauriou afirmava que, historicamente, mesmo os países com este tipo de regime passaram pela fase da administração judiciária, e desta é que evoluíram depois para a fase da administração judiciária. Embora não tenha feita a sua previsão, isto viria a ser verificado, em maior ou menor medida, em Inglaterra.
Concluindo, é importante ressaltar que Dicey e Hauriou são homens da virada do século XIX para o XX. As suas reflexões, dizem, portanto, respeito a outro tempo, com outras circunstâncias. Erra quem pensa que o sistema administrativo inglês e francês não mudaram com o tempo. Pelo contrário: mudaram e não foi pouco, reflectindo as novas tendências e circunstâncias históricas.
Bibliografia
AMARAL, Diogo Freitas do; Curso de Direito Administrativo, vol. I, 4ª edição, Coimbra, 2015
SILVA, Vasco Pereira da; Em Busca do Acto Administrativo Perdido, 1ª edição, 1995
DAVID, René; Grandes Sistemas do Direito Contemporâneo, São Paulo: Martins Fontes, 2002
DICEY, A. V.; Introduction to the Study of the Law of the Constitution, Londres: McMillan, 1899. Disponível em: https://archive.org/details/introductiontos04dicegoog
HAURIOU, Maurice; Précis de Droit Administratif, 2ª edição, Paris, 1893. Disponível em:http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k6525766p/f15.item.r=les%20États%20à%20régime%20administratif.zoom
CASSESE, Sabino; Le Basi del Diritto Amministrativo, 6ª edição, Milão, 2000
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[1] René David, <<Grandes Sistemas de Direito Contemporâneo>>, cit., p. 411
[2] René David, <<Grandes Sistemas de Direito Contemporâneo>>, cit., p. 355
[3] Albert Venn Dicey (1835-1922) - jurista britânico e teórico constitucional, autor de “Introduction to the Study of the Law of the Constitution” (1885) cujos princípios desenvolvidos são considerados parte da Constituição Britânica.
[4] Maurice Hauriou (1856-1929) - jurista e sociólogo francês considerado um dos fundadores do Direito Administrativo francês
[5] Título do capítulo XII de <<Introduction to the Study of the Law of the Constitution>> de A. V. Dicey onde é desenvolvido um estudo comparativo entre os sistemas administrativos inglês e francês
[6] Dicey, apud Diogo Freitas do Amaral, <<Curso de Direito Administrativo>>, vol. I, cit., p. 101. Tradução minha: “(...)Todo homem, qualquer que seja a sua posição ou situação, está sujeito à lei comum do reino e sujeito à jurisdição dos tribunais comuns”
[7] Dicey, apud Diogo Freitas do Amaral <<Curso de Direito Administrativo>> vol. I, p. 101. Tradução minha: “o rule of law exclui a ideia de qualquer isenção de funcionários ou outros do dever de obediência à lei que rege os restantes cidadãos ou da jurisdição dos tribunais comuns; não podemos ter nada correspondente ao direito administrativo ou tribunais administrativos da França"
[8] Albert Venn Dicey, <<Introduction to the Study of the Law of the Constitution>>, cit., p. 310. Tradução minha: “duas ideias principais alheias à concepção de cidadãos britânicos modernos”
[9] Dicey, <<Introduction to the Study of the Law of the Constitution>>, cit., p. 307. Tradução minha: “Em Inglaterra e em países que como os EUA, derivam a sua civilização de fontes inglesas, o sistema de direito administrativo e os princípios onde este assenta, são, na verdade, desconhecidos”
[10] Diogo Freitas do Amaral <<Curso de Direito Administrativo>>, vol. I, cit., p. 104
[11] Diogo Freitas do Amaral, <<Curso de Direito Administrativo>>, vol. I, cit., p.105. Tradução minha: “(...), todas as funções administrativas foram fortemente centralizadas e confiadas a um poder único”
[12] Hauriou, <<Précis de Droit Administratif>>, p.1. Tradução minha: “A Inglaterra é o melhor exemplo destes Estados sem regime administrativo”
[13] Hauriou, <<Précis de Droit Administratif>>, p.2-3. Tradução minha: “Não se deve pensar que só existem no mundo dois tipos distintos de país: um sem regime administrativo, como a Inglaterra, e um com regime administrativo, como a França (...) A maior parte dos países optaram por combinações de administração judiciária e administração executiva”
[14] Diogo Freitas do Amaral, <<Curso de Direito Administrativo>>, vol. I, p. 107
[15] Descendente directo do Conselho do Rei, o Conselho de Estado francês distingue-se, depois da sua criação em 1799, pela sua dupla função: consultiva e contenciosa.
[16] Dicey, <<Introduction to the Study of the Law of the Constitution>> p.391. Tradução minha: “legislação recente tem, ocasionalmente, e para fins particulares, dado aos funcionários algo semelhante a autoridade judicial”
[17] Dicey, <<Introduction to the Study of the Law of the Constitution>> p.391. Tradução minha: “ver uma pequena aproximação ao Direito Administrativo francês”
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