quarta-feira, 26 de outubro de 2016

As diferenças entre o sistema francês e anglo-saxónico: uma falsa questão?



1.       Introdução
Este texto destina-se a fazer um pequeno resumo dos dois grandes sistemas de Direito Administrativo: o sistema francês  e o sistema anglo-saxónico. Este texto não tem quaisquer intenções de ser mais do que é: um pequeno confronto entre ambos os sistemas, incluindo também uma análise histórica que explica as diferenças dos dois “direitos administrativos”. No entanto, como o título indica, quero demonstrar que hoje em dia os sistemas aqui tratados têm mais semelhanças do que diferenças.
Antes de concluir esta introdução, deixo ao leitor as obras de que me socorri para escrever este texto:
Vasco Pereira da Silva, Em busca do Acto Administrativo Perdido, assim como apontamentos das aulas teóricas por este leccionadas;
Diogo Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, 3ª edição
Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos, Direito Administrativo Geral
Sem mais delongas, comecemos pelas origens de ambos os sistemas:

2.       Uma história de dois sistemas
Os dois sistemas administrativos tiveram origens bastante distintas: enquanto que o sistema francês teve um nascimento abrupto, proveniente das mudanças trazidas pela Revolução de 1789, assim como um crescimento difícil, com os chamados “traumas” enunciados por VASCO PEREIRA DA SILVA nas suas lições e na sua tese de doutoramento, o sistema anglo-saxónico teve um desenvolvimento mais gradual e lento, tendo tido um crescimento mais lento mas  menos “traumático” do que o sistema britânico.
No que toca ao sistema britânico, o sistema administrativo seguiu ( e segue ainda hoje, ainda que com algumas nuances) uma linha de submissão ao Direito Comum . A Administração, ao contrário do sistema francês, não adere a uma leitura de ubiquidade e de interferência total na vida dos particulares, assim como de separação do restante Direito  – segue, sim, uma lógica de submissão ao Direito ( o chamado common law of the land) e não se põe a questão de tentar ultrapassar o Direito Comum: um dos pilares do sistema britânico é a o respeito pelo common law of the land, até mesmo pelo Monarca e pelos altos funcionários governamentais, em linha com a ideia de limitação do poder do Governo, com raízes remotas na Manga Carta de 1215 e, mais tarde, os princípios da limitação do poder do Estado e das garantias dos particulares frente a este seriam consagradas no “Bill of Rights” de 1689.
Outros dois diplomas fundamentais para a história do Direito Administrativo britânico foram a abolição da Star Chamber ( 1641), que era caracterizada pela sua instrumentalização pela Coroa para evitar decisões que lhe fossem desfavoráveis e também pelo Act of Settlement de 1701, que na área judicial proibiu o Monarca de demitir os juízes ou de interferir na sua acção.
O sistema francês, pelo contrário, foi formado como uma espécie de “Direito do Estado”; o Direito que regula o Estado e a Administração Pública não deve submeter-se ao Direito dos particulares, para que o aparelho estadual possa agir expeditamente, e, em nome do “interesse comum” ( que frequentemente, infelizmente, é confundido com “ interesse do Estado), a Administração, ainda que fiscalizada judicialmente, tem de ter meios poderosos para poder conduzir as suas acções.
Esta ideia de “Administração” toda-poderosa,  teve a sua génese em dois factores: o primeiro foi desconfiança do novo poder político proveniente da Revolução de 1789 em relação ao sector judicial. Os novos governantes viam os tribunais como interferências às suas ambições políticas. Os tribunais eram compostos essencialmente por membros da aristocracia deposta e não hesitaram em utilizar os seus poderes judiciais para tentar impedir o poder revolucionário de executar os seus planos. Como tal, o novo poder político sentiu a necessidade de evitar a interferência judicial na Administração pública, elaborando, para tal,a Lei 16 de 24 de Agosto de 1790.
O segundo factor foi a centralização da Administração, começada por Napoleão cônsul, que decidiu transformar os departamentos (départments) em meros instrumentos locais da Administração central do Estado, liderados pelos prefeitos ( préfets) nomeados pelo Governo central. Além disso, o Consulado, em 1799, criou os primeiros tribunais administrativos, o Conselho de Estado ( Conseil d’État) e os Conselhos de Prefeitura ( Conseils de Préfecture). Tal, em teoria, procurava fazer com que a Administração fosse fiscalizada pelo sistema judicial.
Contudo, na prática, o diploma enunciava que eram criados órgãos fiscalizadores da Administração mas que estavam dentro desta; eram apenas órgãos consultivos. Tal deu origem à caricata situação de que a Administração, na verdade, julgava-se a ela própria. (“ Le Conseil d’État: c’est l’Administration qui se juge”, citado em FREITAS DO AMARAL, pág.110). Portanto, apesar do Estado francês pós-revolução arrogar-se de seguir a separação de poderes de Montesqueiu, tal não aconteceu no sistema francês como devia ter acontecido. Houve uma distorção desse princípio, que fez com que as acções da Administração fossem incómules às decisões dos tribunais. Essa impunidade atingiu o seu apogeu no tristemente célebre “ acórdão Blanco”, emitido pelo Conselho de Estado em 1873, que proclamou que os casos que envolvessem a Administração deveriam ser julgados pelos tribunais administrativos. A partir daí, passou-se a um sistema de “justiça delegada” no Conselho de Estado, sendo gradualmente reduzida, ao longo do tempo, a ideia do “administrador-juiz”. ( VASCO PEREIRA DA SILVA)
Portanto, o que podemos concluir de uma análise à história dos sistemas anglófono e francófono? Podíamos concluir que o sistema britânico tem o acento tónico na protecção do particular frente ao Estado e na fiscalização da Administração pelos tribunais, enquanto que o sistema francês seria caracterizado por uma Administração ubíqua e poderosa, que agia tendo em conta o difuso conceito de “interesse público”, e onde a Administração executiva permanecia impune à fiscalização judicial.
Ora, analisando somente a história dos dois sistemas poderíamos entrar em conclusões precipitadas. É verdade que durante um longo tempo a Administração francesa foi demasiado poderosa e ignorava frequentemente os direitos dos administrados, enquanto que na Grã-Bretanha sempre esteve implícita a preocupação com a limitação do poder administrativo, evitando discricionariedade e uma garantia dos poderes dos particulares.
Porém, no século XX, com a influência de duas guerras mundiais, e com a fundação do “Estado social”, houve mudanças em ambos os sistemas administrativos.



Tendo em conta o que foi referido, podemos dizer que até ao século XX o Direito Administrativo britânico aproximava-se mais do objectivo hoje aceite do Direito Administrativo de proteger os particulares dos abusos da Administração do que a sua versão franco-continental. Como já referido, apesar da Revolução de 1789 ter tido ideias grandiloquentes nos termos da separação de poderes e da protecção do particular frente à Administração, durante todo o século XIX a Administração francesa, segundo PAULO OTERO, acabou por ser mais autoritário do que a Administração do Antigo Regime. A tradição britânica de equiparar o Direito Administrativo ao Direito Comum e submetê-lo à jurisdição comum, assim como a sua desconcentração de poder, acabou por ser mais benéfica para o simples particular, dotando-o de mais meios jurídicos para se defender, do que a tradição centralizadora francesa.
Mas o advento do Estado Social, trazendo consigo a Administração prestadora de serviços e a necessidade desta de se especializar tecnicamente e de se dotar dos meios adequados para as novas realidades, o Direito Administrativo de ambos os lados do canal foi obrigado a mudar: os britânicos depararam-se com uma maior necessidade, devido à nova realidade do Estado Social, criar um sem número de instituições que fossem capazes de acorrer ás necessidades dos cidadãos, nomeadamente nos ramos da cultura, assistência social, saúde e educação. Tal fez com que fossem criadas milhares de novas leis administrativas que regulassem as instituições recém-criadas, como referido por FREITAS DO AMARAL no seu manual. ( pág.126)
Em França, nomeadamente a partir de 1958 ( início da V República), o Estado central começou a fazer o caminho inverso: tem havido uma maior delegação dos poderes administrativos em órgãos autónomos do Estado, assim como uma descentralização de alguns poderes da Administração em benefício das regiões, que foram adquirindo maior importância.
3.     Diferenças e semelhanças entre os dois sistemas
Utilizando a dicotomia criada por HAURIOU, o sistema francês é sobretudo de administração executiva, enquanto que o sistema britânico é de administração judiciária.
O sistema de administração judiciária , segundo FREITAS DO AMARAL, obriga a Administração a ter de recorrer aos tribunais comuns antes de executar uma decisão administrativa por meios coactivos. O sistema de administração executiva dispensa a intervenção prévia do tribunal e a Administração pode, por si mesma, coagir os particulares a aceitar uma decisão da Administração. Estes poderão, no entanto, recorrer aos tribunais administrativos para receberem a sua indemnização, se considerarem que a Administração agiu de forma abusiva.
Porém, temos de referir a posição do professor VASCO PEREIRA DA SILVA, que discorda completamente da posição de FREITAS DO AMARAL.
PEREIRA DA SILVA considera – e bem, diga-se – que a teoria de FREITAS DO AMARAL  de que todas as decisões administrativas terem de passar pelo crivo dos tribunais comuns no Reino Unido não tem sentido, pelas seguintes razões:
. A Administração decide mas espera que o particular execute a sua decisão. Só se o particular se recusar a fazê-lo é que há um litígio que faz com que seja necessário o recurso aos tribunais. Na maioria das vezes, o particular acata a decisão da Administração.
. Só se não houver uma norma que permita à Administração executar por via coactiva é que existe recurso aos tribunais.
. A diferença que separa os sistemas britânico e francês é que o primeiro tem uma atitude mais negocial, mais própria do Direito Privado. A Administração procura que o particular esteja envolvido na decisão administrativa, enquanto que o sistema francês é mais agressivo.
. A divisão que faz mais sentido é a divisão entre autotutela e heterotutela. Autotutela é quando a Administração pode executar por si mesma as suas próprias decisões; heterotutela é quando a Administração tem de recorrer aos tribunais.
Continuemos, no entanto, com o confronto de ambos os sistemas, baseando-nos no esquema de FREITAS DO AMARAL , ( pág. 114)
-Descentralização: como já referido anteriormente, devido ao advento do Estado Social, no Reino Unido houve a necessidade de concentrar os poderes da administração, enquanto que em França houve uma descentralização dos poderes da Administração central para órgãos autónomos desta e para as regiões. Ex: Em França, direcções regionais de Saúde, Segurança Social, etc.; e no Reino Unido, os executive departments, que estão sob a tutela dos Ministérios, que tratam das mais variadas matérias. Note-se que tal não diminui a importância das administrações locais, e das administrações regionais da Escócia, Gales e Irlanda do Norte, na senda da progressiva autonomização político-administrativa desses países.

. Tutela judicial: apesar de ainda haver vários resquícios da submissão do Direito Administrativo britânico aos tribunais, agora temos os tribunals , que podem executar as decisões directamente, sem necessidade dum “visto prévio” judicial . Além dos tribunals, há o administrative court, integrado no Queen’s Bench ( Banco da Rainha) que é um tribunal especializado de primeira instância que julga as decisões da Administração. Os particulares podem recorrer depois para o “ Court of Appeal”, tribunal de recurso,  e em último caso, para o Supremo Tribunal do Reino Unido. A Administração judiciária do Reino Unido, incluindo em matéria administrativa, é regulada pelo Senior Courts Act publicado em 1981. ( originalmente, Supreme Court Act)
Em França, a estruturação desenrola-se da seguinte maneira, do tribunal superior ao tribunal inferior:

. Conselho de Estado ( Conseil d’ État)
. Tribunais Administrativos de Recurso ( Cours administraives d’appel), criados em 1987.
. Tribunais administrativos comuns ( tribunaux administratifs), que são 42.
Desde 1872 que o papel jurisprudencial do Conselho de Estado, nomeadamente por via dos grandes acórdãos ( grands arrêts) em matéria administrativa tem sido fundamental para a garantia dos direitos dos particulares e para uma estabilização doutrinárina nesse sentido que era há muito necessária no Direito Administrativo francês. ( Manual de Derecho Administrativo, de RAMÓN PARADA).
Existe também o Tribunal dos Conflitos ( Tribunal des Conflits) que é composto por membros do Conselho de Estado e do Tribunal de Recurso ( Cour de la cassation) que decide sobre conflitos entre competência administrativa ou civil.
. Direito regulador da Administração: aqui mantém-se a unidade de jurisdição no Reino Unido ( ainda que tenha havido uma maior especialização do Direito Administrativo pelos tribunais, ao contrário do preconizado por DICEY) e mantém-se a separação entre jurisdição comum e jurisdição administrativa em França.
- Sobre as garantias jurídicas dos particulares: há uma semelhança que ambos os sistemas partilham: a existência de um cargo equivalente ao Provedor de Justiça português, encarregado de defender os direitos dos particulares frente à Administração. Em França, o cargo tem a denominação de Défenseur des Droits ( Defensor dos Direitos) e no Reino Unido, o cargo chama-se Parliamentary Ombudsman.  
Portanto, podemos ver que nas últimas décadas os dois sistemas administrativos aproximaram-se. No entanto, não podemos negar que ainda subsistem diferenças.
Mas tal não obsta a que, hoje em dia, tanto em França como na Grã-Bretanha, os sistemas têm semelhanças: o Direito Administrativo Francês actual já dispõe de garantias elevadas para os particulares  e respeita o princípio da protecção dos particulares frente à Administração; o Direito Administrativo Britânico teve de se centralizar para executar as suas decisões com maior celeridade, nomeadamente por meio das executive agencies, para melhor  responder às necessidades do moderno Direito Administrativo. Ambos os sistemas, no último século, procuraram mitigar os seus pontos fracos: em França, a sua centralização excessiva e o seu excessivo autoritarismo, tanto por via jurisprudencial proveniente do Conselho de Estado, tanto por via legislativa, nomeadamente a partir de 1958.
No Reino Unido, procurou-se dotar o aparelho judiciário de uma maior especialização em matéria administrativa, para que houvesse uma maior agilização das decisões. Além disso, o Governo passou a ter uma influência bem maior no tocante à Administração, tendo sido feitas numerosas leis sobre a matéria.
Portanto, respondendo à pergunta formulada no título deste texto: É uma falsa e inútil questão a divisão doutrinária entre o sistema francês e anglo-saxónico? Não, esta reflecte a realidade. Mas a nova realidade política e social do século XX, influenciando marcadamente o Direito europeu, obrigou a que ambos os sistemas se assemelhassem para colmatar os seus pontos fracos. Citando MARCELO REBELO DE SOUSA e ANDRÉ SALGADO DE MATOS:
“ Nos dias de hoje, a distinção entre administração judiciária e administração faz, portanto, cada vez menos sentido, devendo as diferenças de regime administrativo imputar-se mais às diferenças ainda subsistentes de sistemas jurídicos e de culturas jurídico-políticas.”
Concluo com uma citação de HAURIOU ( retirada do livro de FREITAS DO AMARAL, págs 123 e 130), que reflecte a minha opinião : “ os dois sistemas são distintos, mas são apenas duas espécies do mesmo género. (…) No fundo, trata-se de dois modos de submeter a Administração Pública ao Direito.”

Ricardo Mendonça

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