1. Introdução
Este texto destina-se a fazer um pequeno resumo dos dois
grandes sistemas de Direito Administrativo: o sistema francês e o sistema anglo-saxónico. Este texto não tem
quaisquer intenções de ser mais do que é: um pequeno confronto entre ambos os
sistemas, incluindo também uma análise histórica que explica as diferenças dos dois
“direitos administrativos”. No entanto, como o título indica, quero demonstrar
que hoje em dia os sistemas aqui tratados têm mais semelhanças do que
diferenças.
Antes de concluir esta introdução, deixo ao leitor as obras
de que me socorri para escrever este texto:
Vasco Pereira da
Silva, Em busca do Acto
Administrativo Perdido, assim como apontamentos das aulas teóricas por este
leccionadas;
Diogo Freitas do
Amaral, Curso de Direito
Administrativo, 3ª edição
Marcelo Rebelo de
Sousa e André Salgado de Matos, Direito
Administrativo Geral
Sem mais delongas, comecemos pelas origens de ambos os
sistemas:
2. Uma história de dois sistemas
Os dois sistemas administrativos tiveram origens bastante
distintas: enquanto que o sistema francês teve um nascimento abrupto,
proveniente das mudanças trazidas pela Revolução de 1789, assim como um
crescimento difícil, com os chamados “traumas” enunciados por VASCO PEREIRA DA
SILVA nas suas lições e na sua tese de doutoramento, o sistema anglo-saxónico
teve um desenvolvimento mais gradual e lento, tendo tido um crescimento mais
lento mas menos “traumático” do que o
sistema britânico.
No que toca ao sistema britânico, o sistema administrativo
seguiu ( e segue ainda hoje, ainda que com algumas nuances) uma linha de submissão ao Direito Comum . A Administração,
ao contrário do sistema francês, não adere a uma leitura de ubiquidade e de
interferência total na vida dos particulares, assim como de separação do
restante Direito – segue, sim, uma
lógica de submissão ao Direito ( o chamado common
law of the land) e não se põe a questão de tentar ultrapassar o Direito
Comum: um dos pilares do sistema britânico é a o respeito pelo common law of the land, até mesmo pelo
Monarca e pelos altos funcionários governamentais, em linha com a ideia de
limitação do poder do Governo, com raízes remotas na Manga Carta de 1215 e,
mais tarde, os princípios da limitação do poder do Estado e das garantias dos
particulares frente a este seriam consagradas no “Bill of Rights” de 1689.
Outros dois diplomas fundamentais para a história do Direito
Administrativo britânico foram a abolição da Star Chamber ( 1641), que era caracterizada pela sua
instrumentalização pela Coroa para evitar decisões que lhe fossem desfavoráveis
e também pelo Act of Settlement de 1701, que na área judicial proibiu o Monarca
de demitir os juízes ou de interferir na sua acção.
O sistema francês, pelo contrário, foi formado como uma
espécie de “Direito do Estado”; o Direito que regula o Estado e a Administração
Pública não deve submeter-se ao Direito dos particulares, para que o aparelho
estadual possa agir expeditamente, e, em nome do “interesse comum” ( que
frequentemente, infelizmente, é confundido com “ interesse do Estado), a
Administração, ainda que fiscalizada judicialmente, tem de ter meios poderosos
para poder conduzir as suas acções.
Esta ideia de “Administração” toda-poderosa, teve a sua génese em dois factores: o
primeiro foi desconfiança do novo poder político proveniente da Revolução de
1789 em relação ao sector judicial. Os novos governantes viam os tribunais como
interferências às suas ambições políticas. Os tribunais eram compostos
essencialmente por membros da aristocracia deposta e não hesitaram em utilizar
os seus poderes judiciais para tentar impedir o poder revolucionário de
executar os seus planos. Como tal, o novo poder político sentiu a necessidade
de evitar a interferência judicial na Administração pública, elaborando, para
tal,a Lei 16 de 24 de Agosto de 1790.
O segundo factor foi a centralização da Administração,
começada por Napoleão cônsul, que decidiu transformar os departamentos (départments) em meros instrumentos
locais da Administração central do Estado, liderados pelos prefeitos ( préfets) nomeados pelo Governo central.
Além disso, o Consulado, em 1799, criou os primeiros tribunais administrativos,
o Conselho de Estado ( Conseil d’État) e os Conselhos de Prefeitura ( Conseils
de Préfecture). Tal, em teoria, procurava fazer com que a Administração fosse
fiscalizada pelo sistema judicial.
Contudo, na prática, o diploma enunciava que eram
criados órgãos fiscalizadores da Administração mas que estavam dentro desta;
eram apenas órgãos consultivos. Tal deu origem à caricata situação de que a
Administração, na verdade, julgava-se a ela própria. (“ Le Conseil d’État:
c’est l’Administration qui se juge”, citado em FREITAS DO AMARAL, pág.110).
Portanto, apesar do Estado francês pós-revolução arrogar-se de seguir a
separação de poderes de Montesqueiu, tal não aconteceu no sistema francês como
devia ter acontecido. Houve uma distorção desse princípio, que fez com que as
acções da Administração fossem incómules às decisões dos tribunais. Essa
impunidade atingiu o seu apogeu no tristemente célebre “ acórdão Blanco”,
emitido pelo Conselho de Estado em 1873, que proclamou que os casos que
envolvessem a Administração deveriam ser julgados pelos tribunais
administrativos. A partir daí, passou-se a um sistema de “justiça delegada” no
Conselho de Estado, sendo gradualmente reduzida, ao longo do tempo, a ideia do
“administrador-juiz”. ( VASCO PEREIRA DA SILVA)
Portanto, o que podemos concluir de uma análise à história
dos sistemas anglófono e francófono? Podíamos concluir que o sistema britânico
tem o acento tónico na protecção do particular frente ao Estado e na
fiscalização da Administração pelos tribunais, enquanto que o sistema francês
seria caracterizado por uma Administração ubíqua e poderosa, que agia tendo em
conta o difuso conceito de “interesse público”, e onde a Administração
executiva permanecia impune à fiscalização judicial.
Ora, analisando somente a história dos dois sistemas
poderíamos entrar em conclusões precipitadas. É verdade que durante um longo
tempo a Administração francesa foi demasiado poderosa e ignorava frequentemente
os direitos dos administrados, enquanto que na Grã-Bretanha sempre esteve
implícita a preocupação com a limitação do poder administrativo, evitando
discricionariedade e uma garantia dos poderes dos particulares.
Porém, no século XX, com a influência de duas guerras
mundiais, e com a fundação do “Estado social”, houve mudanças em ambos os
sistemas administrativos.
Tendo em conta o que foi referido, podemos dizer que até ao
século XX o Direito Administrativo britânico aproximava-se mais do objectivo
hoje aceite do Direito Administrativo de proteger os particulares dos abusos da
Administração do que a sua versão franco-continental. Como já referido, apesar
da Revolução de 1789 ter tido ideias grandiloquentes nos termos da separação de
poderes e da protecção do particular frente à Administração, durante todo o
século XIX a Administração francesa, segundo PAULO OTERO, acabou por ser mais
autoritário do que a Administração do Antigo Regime. A tradição britânica de
equiparar o Direito Administrativo ao Direito Comum e submetê-lo à jurisdição
comum, assim como a sua desconcentração de poder, acabou por ser mais benéfica
para o simples particular, dotando-o de mais meios jurídicos para se defender,
do que a tradição centralizadora francesa.
Mas o advento do Estado Social, trazendo consigo a Administração
prestadora de serviços e a necessidade desta de se especializar tecnicamente e
de se dotar dos meios adequados para as novas realidades, o Direito
Administrativo de ambos os lados do canal foi obrigado a mudar: os britânicos
depararam-se com uma maior necessidade, devido à nova realidade do Estado
Social, criar um sem número de instituições que fossem capazes de acorrer ás
necessidades dos cidadãos, nomeadamente nos ramos da cultura, assistência
social, saúde e educação. Tal fez com que fossem criadas milhares de novas leis
administrativas que regulassem as instituições recém-criadas, como referido por
FREITAS DO AMARAL no seu manual. ( pág.126)
Em França, nomeadamente a partir de 1958 ( início da V
República), o Estado central começou a fazer o caminho inverso: tem havido uma
maior delegação dos poderes administrativos em órgãos autónomos do Estado,
assim como uma descentralização de alguns poderes da Administração em benefício
das regiões, que foram adquirindo maior importância.
3.
Diferenças e semelhanças entre os
dois sistemas
Utilizando a dicotomia criada por HAURIOU, o sistema francês
é sobretudo de administração executiva, enquanto que o sistema britânico
é de administração judiciária.
O sistema de administração judiciária , segundo
FREITAS DO AMARAL, obriga a Administração a ter de recorrer aos tribunais
comuns antes de executar uma decisão administrativa por meios coactivos. O
sistema de administração
executiva dispensa a intervenção prévia do tribunal e a Administração pode,
por si mesma, coagir os particulares a aceitar uma decisão da Administração.
Estes poderão, no entanto, recorrer aos tribunais administrativos para
receberem a sua indemnização, se considerarem que a Administração agiu de forma
abusiva.
Porém, temos de referir a posição do professor VASCO PEREIRA
DA SILVA, que discorda completamente da posição de FREITAS DO AMARAL.
PEREIRA DA SILVA considera – e bem, diga-se – que a teoria
de FREITAS DO AMARAL de que todas as
decisões administrativas terem de passar pelo crivo dos tribunais comuns no
Reino Unido não tem sentido, pelas seguintes razões:
. A Administração
decide mas espera que o particular execute a sua decisão. Só se o
particular se recusar a fazê-lo é que há um litígio que faz com que seja
necessário o recurso aos tribunais. Na
maioria das vezes, o particular acata a decisão da Administração.
. Só se não houver
uma norma que permita à Administração executar por via coactiva é que
existe recurso aos tribunais.
. A diferença que
separa os sistemas britânico e francês é que o primeiro tem uma atitude
mais negocial, mais própria do Direito Privado. A Administração procura que o
particular esteja envolvido na decisão administrativa, enquanto que o sistema
francês é mais agressivo.
. A divisão que faz
mais sentido é a divisão entre autotutela e heterotutela. Autotutela é
quando a Administração pode executar por si mesma as suas próprias decisões;
heterotutela é quando a Administração tem de recorrer aos tribunais.
Continuemos, no entanto, com o confronto de ambos os
sistemas, baseando-nos no esquema de FREITAS DO AMARAL , ( pág. 114)
-Descentralização: como
já referido anteriormente, devido ao advento do Estado Social, no Reino Unido
houve a necessidade de concentrar os poderes da administração, enquanto que em
França houve uma descentralização dos poderes da Administração central para
órgãos autónomos desta e para as regiões. Ex: Em França, direcções regionais de
Saúde, Segurança Social, etc.; e no Reino Unido, os executive departments, que estão sob a tutela dos Ministérios, que
tratam das mais variadas matérias. Note-se que tal não diminui a importância
das administrações locais, e das administrações regionais da Escócia, Gales e
Irlanda do Norte, na senda da progressiva autonomização político-administrativa
desses países.
. Tutela judicial: apesar
de ainda haver vários resquícios da submissão do Direito Administrativo
britânico aos tribunais, agora temos os tribunals
, que podem executar as decisões directamente, sem necessidade dum “visto
prévio” judicial . Além dos tribunals,
há o administrative court, integrado
no Queen’s Bench ( Banco da Rainha) que é um tribunal especializado de primeira
instância que julga as decisões da Administração. Os particulares podem
recorrer depois para o “ Court of Appeal”, tribunal de recurso, e em último caso, para o Supremo Tribunal do
Reino Unido. A Administração judiciária do Reino Unido, incluindo em matéria
administrativa, é regulada pelo Senior Courts Act publicado em 1981. (
originalmente, Supreme Court Act)
Em França, a estruturação desenrola-se da seguinte maneira,
do tribunal superior ao tribunal inferior:
. Conselho de Estado ( Conseil d’ État)
. Tribunais Administrativos de Recurso ( Cours
administraives d’appel), criados em 1987.
. Tribunais administrativos comuns ( tribunaux administratifs),
que são 42.
Desde 1872 que o papel jurisprudencial do Conselho de Estado,
nomeadamente por via dos grandes acórdãos ( grands
arrêts) em matéria administrativa tem sido fundamental para a garantia dos
direitos dos particulares e para uma estabilização doutrinárina nesse sentido
que era há muito necessária no Direito Administrativo francês. ( Manual de Derecho Administrativo, de
RAMÓN PARADA).
Existe também o Tribunal dos Conflitos ( Tribunal des
Conflits) que é composto por membros do Conselho de Estado e do Tribunal de
Recurso ( Cour de la cassation) que decide sobre conflitos entre competência
administrativa ou civil.
. Direito regulador
da Administração: aqui mantém-se a unidade de jurisdição no Reino Unido (
ainda que tenha havido uma maior especialização do Direito Administrativo pelos
tribunais, ao contrário do preconizado por DICEY) e mantém-se a separação entre
jurisdição comum e jurisdição administrativa em França.
- Sobre as garantias
jurídicas dos particulares: há uma semelhança que ambos os sistemas
partilham: a existência de um cargo equivalente ao Provedor de Justiça
português, encarregado de defender os direitos dos particulares frente à
Administração. Em França, o cargo tem a denominação de Défenseur des Droits ( Defensor dos Direitos) e no Reino Unido, o
cargo chama-se Parliamentary Ombudsman.
Portanto, podemos ver que nas últimas décadas os dois
sistemas administrativos aproximaram-se. No entanto, não podemos negar que
ainda subsistem diferenças.
Mas tal não obsta a que, hoje em dia, tanto em França como
na Grã-Bretanha, os sistemas têm semelhanças: o Direito Administrativo Francês
actual já dispõe de garantias elevadas para os particulares e respeita o princípio da protecção dos particulares
frente à Administração; o Direito Administrativo Britânico teve de se
centralizar para executar as suas decisões com maior celeridade, nomeadamente
por meio das executive agencies, para
melhor responder às necessidades do
moderno Direito Administrativo. Ambos os sistemas, no último século, procuraram
mitigar os seus pontos fracos: em França, a sua centralização excessiva e o seu
excessivo autoritarismo, tanto por via jurisprudencial proveniente do Conselho
de Estado, tanto por via legislativa, nomeadamente a partir de 1958.
No Reino Unido, procurou-se dotar o aparelho judiciário de
uma maior especialização em matéria administrativa, para que houvesse uma maior
agilização das decisões. Além disso, o Governo passou a ter uma influência bem
maior no tocante à Administração, tendo sido feitas numerosas leis sobre a
matéria.
Portanto, respondendo à pergunta formulada no título deste
texto: É uma falsa e inútil questão a divisão doutrinária entre o sistema
francês e anglo-saxónico? Não, esta reflecte a realidade. Mas a nova realidade
política e social do século XX, influenciando marcadamente o Direito europeu,
obrigou a que ambos os sistemas se assemelhassem para colmatar os seus pontos
fracos. Citando MARCELO REBELO DE SOUSA e ANDRÉ SALGADO DE MATOS:
“ Nos dias de hoje, a distinção entre administração
judiciária e administração faz, portanto, cada vez menos sentido, devendo as
diferenças de regime administrativo imputar-se mais às diferenças ainda
subsistentes de sistemas jurídicos e de culturas jurídico-políticas.”
Concluo com uma citação de HAURIOU ( retirada do livro de
FREITAS DO AMARAL, págs 123 e 130), que reflecte a minha opinião : “ os dois
sistemas são distintos, mas são apenas duas espécies do mesmo género. (…) No
fundo, trata-se de dois modos de submeter a Administração Pública ao Direito.”
Ricardo Mendonça
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