O antes e o depois do estatuto do particular face à evolução do
Direito Administrativo
Em
primeira instância, antes de passarmos ao ponto basilar desta exposição
(nomeadamente o de analisar os diferentes estatutos das entidades particulares
perante a evolução do Direito Administrativo), há uma relevante necessidade de enquadrarmos
o mesmo no contexto histórico-social em que surgiu e analisarmos o modo como
foi evoluindo ao longo do tempo. Uma nota importante, é a de que não vão ser
analisadas quais as garantias específicas dos particulares, mas sim, somente se
os mesmos tinham sequer essas garantias perante a Administração (ou “senhora
Administração” nas palavras do Professor Doutor Vasco Pereira da Silva).
Atendendo a um ponto de vista
estrutural, há autores que defendem que a evolução histórica do Direito
Administrativo foi algo de linear, constante e acima de tudo, de tipo
quantitativo, ou seja, do menos/mínimo para o mais/máximo, sempre a crescer. Á
luz deste prisma estrutural, estes autores consideram que entre o século XIX e
o século XX, esta evolução fez-se da Administração como mero aparelho incumbido
da execução da lei para a Administração como conjunto de entidades promotoras
do bem-estar. Todavia, para Freitas do Amaral, esta evolução histórica
caracteriza-se pela sua volatilidade, não tendo sido linear de todo, uma vez
que apresenta avanços e retrocessos ao longo do tempo.
Começando com o Estado oriental
(Estado característico das civilizações mediterrânicas e do Médio Oriente na
Antiguidade oriental – do terceiro ao primeiro milénio a.C.), é com este tipo
de estado que vão surgir os primeiros resquícios de administração pública,
caracterizando-se por ser um Estado unitário com regime totalitário. Porém, em
que actos se traduziram estes primeiros resquícios? Em torno do aproveitamento
das águas dos rios pelas populações, os detentores do poder político das
civilizações da Mesopotâmia e do Egipto tiveram em consideração a vital
necessidade de procederem a obras hidráulicas. Daí, o Estado chamou a si
diversos programas de obras públicas, sendo que a execução das mesmas
necessitaria da cobrança de impostos por parte dos particulares. Assim, os
imperadores, sendo funcionários permanentes e pagos pelo tesouro público,
cobram os devidos impostos para a execução de obras públicas e assegurar a
defesa nacional. Dito isto, podemos concluir que a actividade administrativa
nesta época cinge-se a fins económico-sociais e não a fins de protecção ou
defesa dos particulares. Os particulares não têm qualquer colaboração com a
administração e encontram-se num estado de sujeição à mesma, uma vez que esta
recorre a práticas fiscalizadoras da actividade dos particulares. Não se
reconhecendo fórmulas de administração local autárquica e nem existindo
garantias dos particulares face à Administração (garantias nulas face ao
Poder), este modelo oriental é análogo a um modelo administrativo típico de um
país moderno.
Passando para o Estado grego
(Estado característico da civilização grega, no quadro da Antiguidade Clássica
– do século VI ao século III a.C.), o mesmo caracteriza-se essencialmente pela
reduzida expressão territorial (os Estados passam a cidades-Estado ou pólis). Será que há agora uma melhoria
quanto ao estatuto e garantias dos particulares face à Administração? Para
responder a esta pergunta, temos de realçar o facto de que os cidadãos começam
a formar o núcleo da vida política, surgindo o conceito e a prática da
democracia. Porém, esta aparente melhoria no estatuto dos particulares
traduz-se numa ilusão de óptica, pois mesmo os cidadãos gozando de direitos de
participação política, as garantias dos particulares em si são reduzidas
perante a Administração, que era essencialmente executada pelas magistraturas
que exerciam poderes administrativos e judiciais e que ao longo do tempo se
foram especializando noutros ramos (arcontes
para questões legislativas, judiciais e religiosas, estrategos para questões militares, etc.).
Falando agora no Estado romano
(Estado característico da civilização romana no quadro da Antiguidade Clássica
– do século II a.C. ao século IV d.C.). Com este tipo de Estado, passamos de
uma forma de governo monárquica para republicana e desta para um império,
havendo uma inserção de todas as classes sociais na vida política. Desta vez,
temos um reforço relativo das garantias individuais face ao Estado, bem como o
aparecimento da noção de pessoa e do primado da dignidade da pessoa humana. No
topo do Estado encontramos a figura do Imperador, titular dos poderes
legislativo, executivo e judicial, no entanto, as funções executivas deste eram
delegadas ao no pretor, que por sua vez funciona como um “primeiro-ministro”.
Qual é a relevância do pretor no que diz respeito ao estatuto dos particulares?
As decisões do pretor eram imponentes e tinham cariz soberano, não havendo
hipótese por parte dos particulares de intentarem algum recurso face às mesmas.
Todavia, com Diocleciano (imperador romano de 284 d.C. a 305 d.C.), surge assim
o direito de se recorrer contra estas decisões num prazo estipulado de dois
anos, o que nos mostra uma clara evolução na garantia e no estatuto dos
particulares perante o Estado. Mas não nos enganemos, porque com esta preciosa
garantia não se exercitava um direito individual, mas sim somente se solicitava
uma graça do poder (facultas supplicandi
non provocandi). Para concluir, é de realçar que esta melhoria no estatuto
dos particulares na época do Império Romano também se deve à grande distinção
que se faz entre Direito Privado e Direito Público.
Entramos agora no Estado
medieval (Estado característico da Idade Média – século V d.C. ao século XV).
Este tipo de Estado caracteriza-se por dois factores que considero serem de
maior relevância: forte descentralização política do Estado, com o feudalismo e
primeiros esboços de enunciação das garantias individuais contra o poder do
Estado, esboços esses que resultam de um certo documento que iremos ver
posteriormente. Mesmo com a fragmentação do poder político provocado pelo
feudalismo, ainda temos evidências da presença da administração pública na vida
colectiva, na forma de órgãos centrais (no caso português, Cúria Régia,
Alferes-mor, Mordomo da Corte, etc). Uma novidade administrativa relativamente
ao Estado oriental, é que agora temos uma auto-organização das populações de
vilas e aldeias que levam ao surgimento de fórmulas de governo local/auto-administração,
através das quais as comunidades procedem a actividades administrativas como a
construção de estradas, regulamentação de feiras e mercados, questões de
urbanismo, entre outras. Neste regime feudalista, constatamos que há um
fortalecimento do poder real do Rei, que sendo um supremo legislador e juiz,
não está, como administrador, inteiramente submetido ao Direito, podendo
subtrair quem ele desejar do cumprimento da lei (quando o próprio não se
subtrai às regras gerais), podendo conceder privilégios especiais e até podendo
matar quem ameace a sua autoridade. Face a este tão imperativo (e até
assustador) estatuto do rei, em que posição ficam os particulares? Mesmo com a
Magna Carta (o dito documento com a enunciação das garantias individuais),
estas mesmas garantias apresentam-se ainda muito deficientes contra o arbítrio
dos poderes públicos. Estando instaurado o princípio de que o Rei não é
responsabilizado pelos seus actos (the
King can do no wrong), os particulares vêem-se assim numa posição muito
debilitada, podendo pelo menos recorrer a certos actos régios ou recorrer de
resoluções municipais, mas não de forma sistemática ou como regra.
Chegando agora ao Estado moderno
(tipo de Estado característico da Idade Moderna e Contemporânea, do século XV
ao século XX), este caracteriza-se pelo aparecimento do conceito de Estado na
acepção que hoje tem e na centralização do poder político. Este tipo de Estado
incorpora o Estado corporativo, o Estado absoluto e o Estado liberal, por isso
vamos agora concentrar-nos, devido à extensão da caracterização dos mesmos,
somente no estatuto dos particulares: no corporativo
(séculos XV e XVI, início de século XVII), temos uma transição entre o Estado
medieval e o moderno, havendo uma organização do mesmo em clero, nobreza e
povo, com a respectiva representação em Cortes, havendo uma progressão muito
lenta ou até quase nula das garantias dos particulares; no absoluto (meados de século XVII aos fins do século XVIII), temos
uma centralização completa do poder real, dando-se destaque ao enfraquecimento
da nobreza e à ascensão da burguesia, havendo também, por sua vez, uma
incerteza do direito e uma máxima extensão do poder discricionário (Estado de
polícia). Nos termos das Ordenações Filipinas, a protecção conferida pelos
tribunais comuns aos particulares era vista como sendo “atrevida e indesejável
(e, acrescento eu, inconveniente) ”, logo, as garantias dos particulares perante
o Estado absoluto eram muito débeis.
A
Revolução Francesa – Jardim de Éden dos direitos subjectivos
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Ainda antes de falarmos no Estado liberal, temos de fazer
uma paragem obrigatória por um marco histórico que foi fundamental para a
evolução dos direitos dos particulares face à administração. Contra o
abominável autoritarismo da Monarquia europeia, com esta revolução vão
finalmente triunfar os ideais de liberdade individual, em que os cidadãos
passam a ser titulares de direitos subjectivos públicos, invocáveis perante o
Estado. No entender do Professor Doutor Vasco Pereira da Silva, o que são estes
direitos subjectivos públicos? A noção de direito subjectivo encontra-se intimamente
ligada com a de relação jurídica, porque os direitos subjectivos públicos são
uma condição lógica da existência de relações jurídicas administrativas, ou
seja, a relação jurídica administrativa é uma condição dos direitos
subjectivos. Isto porque é o reconhecimento de direitos subjectivos que faz com
que o individuo deixe de ser tratado como objecto do poder (passe de súbdito a
cidadão), para se transformar num sujeito de direito em condições de
estabelecer relações jurídicas com os órgãos de poder público. O reconhecimento
ao indivíduo da titularidade de direitos subjectivos constitui por isso, o
fundamento da admissibilidade de relações jurídicas entre ele e o Estado, ou
seja, este reconhecimento de direitos fundamentais faz com que o indivíduo não
seja subalterno das entidades públicas, mas sim uma figura que possa
relacionar-se com as mesmas de “igual para igual”.
Feito este aparte, foi precisamente este reconhecimento de
direitos fundamentais que marcou a Revolução Francesa, tendo os cidadãos passado
de objecto do direito para sujeitos do direito. Estabeleceu-se o princípio da
separação de poderes (a Coroa perde o poder legislativo, sendo o poder
legislativo atribuído ao Parlamento e o poder judicial atribuído aos Tribunais,
ficando somente com o poder executivo) e o princípio da legalidade, que impede
a Administração de invadir a esfera dos particulares ou prejudicar os seus
direitos sem ser com base numa norma emanada do poder legislativo (ou seja, administrar
torna-se sinónimo de executar as leis). Perante a conjugação destes dois
princípios, os cidadãos, sempre que se sentirem ofendidos, podem então recorrer
aos Tribunais para fazerem valer os seus direitos face à Administração,
nascendo então a preocupação de conferir aos particulares uma panóplia de
garantias jurídicas, capazes de os abrigar contra ilegalidades da mesma,
surgindo o Direito Administrativo moderno! Concluindo, a Revolução Francesa
contribuiu para o auge/para o pique da evolução e da melhoria do estatuto dos
particulares.
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Voltando
agora ao Estado liberal (nascido das revoluções francesa e americana, conhece o
seu apogeu durante o século XIX e declina na primeira metade do século XX), temos
agora o reconhecimento da existência dos direitos do homem, proclamação da
igualdade jurídica para todos os homens e adopção do constitucionalismo como
técnica de limitação do poder político. Partindo do princípio da separação de
poderes, temos uma distinção material entre função administrativa e
jurisdicional, havendo entrega de competências administrativas aos órgãos de
poder executivo (Governo e seus agentes) e de competências jurisdicionais aos
tribunais. Este Estado liberal constitui um cenário de melhorias reforçadas
quanto ao estatuto dos particulares perante a Administração, pois o Conseil d’État francês, sem textos
legais e com uma inigualável convicção de jurisprudência pretoriana, forjou um
sistema global de garantias dos mesmos.
Desenrolar-se-á
agora a parte final deste tema, que abrange o Estado constitucional, que por
sua vez, abrange o Estado comunista, fascista e democrático. Neste Estado, a
Constituição não actua como um limitador de poder político, mas sim como
mecanismo legitimador do arbítrio estatal, havendo surgimento, a par dos
direitos individuais, de direitos económico-sociais. Vamos então resumir as
garantias dos particulares em cada um deles: no comunista, o exercício de qualquer liberdade individual pode ser
proibido ou não autorizado se o Estado entender que o mesmo contribui para a
construção do socialismo, ou seja, a Administração Pública está sujeita a um
princípio de legalidade socialista; no fascista,
adopta-se uma posição intermédia quanto às garantias dos particulares face
aos actos ilegais do poder público - nem todas, nem nenhumas. Se as decisões
administrativas que afectam particulares não tiverem carácter político e forem
somente actos administrativos ordinários, os lesados podem recorrer aos
tribunais administrativos especiais (controlados pelo Governo), de forma a
estes anularem os actos ilegais e concederem indemnizações para os prejuízos
sofridos. Mas se estas decisões ilegais tiverem efectivamente carácter
político, então a própria lei processual encarrega-se de afastar o perigo e
preservar a imunidade governamental (chama-se a isto insindicabilidade dos
actos praticados no exercício de poderes discricionários). Ou seja, no Estado
comunista, o princípio da legalidade visa subordinar os tribunais à construção
revolucionária do socialismo e no Estado fascista, visa a conotação da defesa
governamental – os cidadãos não vão a tribunal defender os seus interesses, mas
sim, vão ajudar o Governo a manter o respeito pelas leis que ele próprio
elabora e pretende ver cumpridas, diz Freitas do Amaral de forma irónica; no democrático, havendo uma
descentralização e desconcentração do Poder, temos uma variedade de
instrumentos cedidos aos cidadãos para conferir a protecção jurídica dos mesmos
(exemplo: tribunais administrativos independentes, recursos e acções de plena
jurisdição, processos executivos eficazes e não sujeitos a qualquer controlo
governamental).
Dou
por terminada a minha exposição, concluindo que a aventura evolutiva do
estatuto dos particulares perante a Administração não foi de todo linear, tendo
sofrido muitas rupturas, traduzidas num sistema constante de progressos e
retrocessos ao longo das épocas. A acrescentar, no caso português, actualmente,
sob o aspecto económico, o Estado condiciona cada vez mais as actividades
privadas e sob o ponto de vista político, o cidadão cada vez vê mais reforçadas
as suas garantias que o abrigam contra o arbítrio estadual, ou seja, o Estado
está cada vez mais restringido pelas normas que visam a defesa dos direitos e interesses
legítimos dos particulares contra os comportamentos ilegais ou injustos da
Administração.
Bibliografia:
AMARAL, Diogo Freitas. – Curso
de Direito Administrativo. 4-ª Edição. Coimbra: Edições Almedina, 2015.
VASCO PEREIRA DA SILVA, “Em busca
do Ato Administrativo Perdido”, Dissertação de Doutoramento em Ciências
Jurídico Políticas, Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa
Hugo
Pereira Coutinho| nº 28205 | PB14 2º Ano | Direito Administrativo I
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