segunda-feira, 31 de outubro de 2016



O antes e o depois do estatuto do particular face à evolução do Direito Administrativo


                Em primeira instância, antes de passarmos ao ponto basilar desta exposição (nomeadamente o de analisar os diferentes estatutos das entidades particulares perante a evolução do Direito Administrativo), há uma relevante necessidade de enquadrarmos o mesmo no contexto histórico-social em que surgiu e analisarmos o modo como foi evoluindo ao longo do tempo. Uma nota importante, é a de que não vão ser analisadas quais as garantias específicas dos particulares, mas sim, somente se os mesmos tinham sequer essas garantias perante a Administração (ou “senhora Administração” nas palavras do Professor Doutor Vasco Pereira da Silva).
                Atendendo a um ponto de vista estrutural, há autores que defendem que a evolução histórica do Direito Administrativo foi algo de linear, constante e acima de tudo, de tipo quantitativo, ou seja, do menos/mínimo para o mais/máximo, sempre a crescer. Á luz deste prisma estrutural, estes autores consideram que entre o século XIX e o século XX, esta evolução fez-se da Administração como mero aparelho incumbido da execução da lei para a Administração como conjunto de entidades promotoras do bem-estar. Todavia, para Freitas do Amaral, esta evolução histórica caracteriza-se pela sua volatilidade, não tendo sido linear de todo, uma vez que apresenta avanços e retrocessos ao longo do tempo.
                Começando com o Estado oriental (Estado característico das civilizações mediterrânicas e do Médio Oriente na Antiguidade oriental – do terceiro ao primeiro milénio a.C.), é com este tipo de estado que vão surgir os primeiros resquícios de administração pública, caracterizando-se por ser um Estado unitário com regime totalitário. Porém, em que actos se traduziram estes primeiros resquícios? Em torno do aproveitamento das águas dos rios pelas populações, os detentores do poder político das civilizações da Mesopotâmia e do Egipto tiveram em consideração a vital necessidade de procederem a obras hidráulicas. Daí, o Estado chamou a si diversos programas de obras públicas, sendo que a execução das mesmas necessitaria da cobrança de impostos por parte dos particulares. Assim, os imperadores, sendo funcionários permanentes e pagos pelo tesouro público, cobram os devidos impostos para a execução de obras públicas e assegurar a defesa nacional. Dito isto, podemos concluir que a actividade administrativa nesta época cinge-se a fins económico-sociais e não a fins de protecção ou defesa dos particulares. Os particulares não têm qualquer colaboração com a administração e encontram-se num estado de sujeição à mesma, uma vez que esta recorre a práticas fiscalizadoras da actividade dos particulares. Não se reconhecendo fórmulas de administração local autárquica e nem existindo garantias dos particulares face à Administração (garantias nulas face ao Poder), este modelo oriental é análogo a um modelo administrativo típico de um país moderno.
                Passando para o Estado grego (Estado característico da civilização grega, no quadro da Antiguidade Clássica – do século VI ao século III a.C.), o mesmo caracteriza-se essencialmente pela reduzida expressão territorial (os Estados passam a cidades-Estado ou pólis). Será que há agora uma melhoria quanto ao estatuto e garantias dos particulares face à Administração? Para responder a esta pergunta, temos de realçar o facto de que os cidadãos começam a formar o núcleo da vida política, surgindo o conceito e a prática da democracia. Porém, esta aparente melhoria no estatuto dos particulares traduz-se numa ilusão de óptica, pois mesmo os cidadãos gozando de direitos de participação política, as garantias dos particulares em si são reduzidas perante a Administração, que era essencialmente executada pelas magistraturas que exerciam poderes administrativos e judiciais e que ao longo do tempo se foram especializando noutros ramos (arcontes para questões legislativas, judiciais e religiosas, estrategos para questões militares, etc.). 
                Falando agora no Estado romano (Estado característico da civilização romana no quadro da Antiguidade Clássica – do século II a.C. ao século IV d.C.). Com este tipo de Estado, passamos de uma forma de governo monárquica para republicana e desta para um império, havendo uma inserção de todas as classes sociais na vida política. Desta vez, temos um reforço relativo das garantias individuais face ao Estado, bem como o aparecimento da noção de pessoa e do primado da dignidade da pessoa humana. No topo do Estado encontramos a figura do Imperador, titular dos poderes legislativo, executivo e judicial, no entanto, as funções executivas deste eram delegadas ao no pretor, que por sua vez funciona como um “primeiro-ministro”. Qual é a relevância do pretor no que diz respeito ao estatuto dos particulares? As decisões do pretor eram imponentes e tinham cariz soberano, não havendo hipótese por parte dos particulares de intentarem algum recurso face às mesmas. Todavia, com Diocleciano (imperador romano de 284 d.C. a 305 d.C.), surge assim o direito de se recorrer contra estas decisões num prazo estipulado de dois anos, o que nos mostra uma clara evolução na garantia e no estatuto dos particulares perante o Estado. Mas não nos enganemos, porque com esta preciosa garantia não se exercitava um direito individual, mas sim somente se solicitava uma graça do poder (facultas supplicandi non provocandi). Para concluir, é de realçar que esta melhoria no estatuto dos particulares na época do Império Romano também se deve à grande distinção que se faz entre Direito Privado e Direito Público.
                Entramos agora no Estado medieval (Estado característico da Idade Média – século V d.C. ao século XV). Este tipo de Estado caracteriza-se por dois factores que considero serem de maior relevância: forte descentralização política do Estado, com o feudalismo e primeiros esboços de enunciação das garantias individuais contra o poder do Estado, esboços esses que resultam de um certo documento que iremos ver posteriormente. Mesmo com a fragmentação do poder político provocado pelo feudalismo, ainda temos evidências da presença da administração pública na vida colectiva, na forma de órgãos centrais (no caso português, Cúria Régia, Alferes-mor, Mordomo da Corte, etc). Uma novidade administrativa relativamente ao Estado oriental, é que agora temos uma auto-organização das populações de vilas e aldeias que levam ao surgimento de fórmulas de governo local/auto-administração, através das quais as comunidades procedem a actividades administrativas como a construção de estradas, regulamentação de feiras e mercados, questões de urbanismo, entre outras. Neste regime feudalista, constatamos que há um fortalecimento do poder real do Rei, que sendo um supremo legislador e juiz, não está, como administrador, inteiramente submetido ao Direito, podendo subtrair quem ele desejar do cumprimento da lei (quando o próprio não se subtrai às regras gerais), podendo conceder privilégios especiais e até podendo matar quem ameace a sua autoridade. Face a este tão imperativo (e até assustador) estatuto do rei, em que posição ficam os particulares? Mesmo com a Magna Carta (o dito documento com a enunciação das garantias individuais), estas mesmas garantias apresentam-se ainda muito deficientes contra o arbítrio dos poderes públicos. Estando instaurado o princípio de que o Rei não é responsabilizado pelos seus actos (the King can do no wrong), os particulares vêem-se assim numa posição muito debilitada, podendo pelo menos recorrer a certos actos régios ou recorrer de resoluções municipais, mas não de forma sistemática ou como regra.
                Chegando agora ao Estado moderno (tipo de Estado característico da Idade Moderna e Contemporânea, do século XV ao século XX), este caracteriza-se pelo aparecimento do conceito de Estado na acepção que hoje tem e na centralização do poder político. Este tipo de Estado incorpora o Estado corporativo, o Estado absoluto e o Estado liberal, por isso vamos agora concentrar-nos, devido à extensão da caracterização dos mesmos, somente no estatuto dos particulares: no corporativo (séculos XV e XVI, início de século XVII), temos uma transição entre o Estado medieval e o moderno, havendo uma organização do mesmo em clero, nobreza e povo, com a respectiva representação em Cortes, havendo uma progressão muito lenta ou até quase nula das garantias dos particulares; no absoluto (meados de século XVII aos fins do século XVIII), temos uma centralização completa do poder real, dando-se destaque ao enfraquecimento da nobreza e à ascensão da burguesia, havendo também, por sua vez, uma incerteza do direito e uma máxima extensão do poder discricionário (Estado de polícia). Nos termos das Ordenações Filipinas, a protecção conferida pelos tribunais comuns aos particulares era vista como sendo “atrevida e indesejável (e, acrescento eu, inconveniente) ”, logo, as garantias dos particulares perante o Estado absoluto eram muito débeis. 
A Revolução Francesa – Jardim de Éden dos direitos subjectivos
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Ainda antes de falarmos no Estado liberal, temos de fazer uma paragem obrigatória por um marco histórico que foi fundamental para a evolução dos direitos dos particulares face à administração. Contra o abominável autoritarismo da Monarquia europeia, com esta revolução vão finalmente triunfar os ideais de liberdade individual, em que os cidadãos passam a ser titulares de direitos subjectivos públicos, invocáveis perante o Estado. No entender do Professor Doutor Vasco Pereira da Silva, o que são estes direitos subjectivos públicos? A noção de direito subjectivo encontra-se intimamente ligada com a de relação jurídica, porque os direitos subjectivos públicos são uma condição lógica da existência de relações jurídicas administrativas, ou seja, a relação jurídica administrativa é uma condição dos direitos subjectivos. Isto porque é o reconhecimento de direitos subjectivos que faz com que o individuo deixe de ser tratado como objecto do poder (passe de súbdito a cidadão), para se transformar num sujeito de direito em condições de estabelecer relações jurídicas com os órgãos de poder público. O reconhecimento ao indivíduo da titularidade de direitos subjectivos constitui por isso, o fundamento da admissibilidade de relações jurídicas entre ele e o Estado, ou seja, este reconhecimento de direitos fundamentais faz com que o indivíduo não seja subalterno das entidades públicas, mas sim uma figura que possa relacionar-se com as mesmas de “igual para igual”.
Feito este aparte, foi precisamente este reconhecimento de direitos fundamentais que marcou a Revolução Francesa, tendo os cidadãos passado de objecto do direito para sujeitos do direito. Estabeleceu-se o princípio da separação de poderes (a Coroa perde o poder legislativo, sendo o poder legislativo atribuído ao Parlamento e o poder judicial atribuído aos Tribunais, ficando somente com o poder executivo) e o princípio da legalidade, que impede a Administração de invadir a esfera dos particulares ou prejudicar os seus direitos sem ser com base numa norma emanada do poder legislativo (ou seja, administrar torna-se sinónimo de executar as leis). Perante a conjugação destes dois princípios, os cidadãos, sempre que se sentirem ofendidos, podem então recorrer aos Tribunais para fazerem valer os seus direitos face à Administração, nascendo então a preocupação de conferir aos particulares uma panóplia de garantias jurídicas, capazes de os abrigar contra ilegalidades da mesma, surgindo o Direito Administrativo moderno! Concluindo, a Revolução Francesa contribuiu para o auge/para o pique da evolução e da melhoria do estatuto dos particulares.
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                      Voltando agora ao Estado liberal (nascido das revoluções francesa e americana, conhece o seu apogeu durante o século XIX e declina na primeira metade do século XX), temos agora o reconhecimento da existência dos direitos do homem, proclamação da igualdade jurídica para todos os homens e adopção do constitucionalismo como técnica de limitação do poder político. Partindo do princípio da separação de poderes, temos uma distinção material entre função administrativa e jurisdicional, havendo entrega de competências administrativas aos órgãos de poder executivo (Governo e seus agentes) e de competências jurisdicionais aos tribunais. Este Estado liberal constitui um cenário de melhorias reforçadas quanto ao estatuto dos particulares perante a Administração, pois o Conseil d’État francês, sem textos legais e com uma inigualável convicção de jurisprudência pretoriana, forjou um sistema global de garantias dos mesmos.
                      Desenrolar-se-á agora a parte final deste tema, que abrange o Estado constitucional, que por sua vez, abrange o Estado comunista, fascista e democrático. Neste Estado, a Constituição não actua como um limitador de poder político, mas sim como mecanismo legitimador do arbítrio estatal, havendo surgimento, a par dos direitos individuais, de direitos económico-sociais. Vamos então resumir as garantias dos particulares em cada um deles: no comunista, o exercício de qualquer liberdade individual pode ser proibido ou não autorizado se o Estado entender que o mesmo contribui para a construção do socialismo, ou seja, a Administração Pública está sujeita a um princípio de legalidade socialista; no fascista, adopta-se uma posição intermédia quanto às garantias dos particulares face aos actos ilegais do poder público - nem todas, nem nenhumas. Se as decisões administrativas que afectam particulares não tiverem carácter político e forem somente actos administrativos ordinários, os lesados podem recorrer aos tribunais administrativos especiais (controlados pelo Governo), de forma a estes anularem os actos ilegais e concederem indemnizações para os prejuízos sofridos. Mas se estas decisões ilegais tiverem efectivamente carácter político, então a própria lei processual encarrega-se de afastar o perigo e preservar a imunidade governamental (chama-se a isto insindicabilidade dos actos praticados no exercício de poderes discricionários). Ou seja, no Estado comunista, o princípio da legalidade visa subordinar os tribunais à construção revolucionária do socialismo e no Estado fascista, visa a conotação da defesa governamental – os cidadãos não vão a tribunal defender os seus interesses, mas sim, vão ajudar o Governo a manter o respeito pelas leis que ele próprio elabora e pretende ver cumpridas, diz Freitas do Amaral de forma irónica; no democrático, havendo uma descentralização e desconcentração do Poder, temos uma variedade de instrumentos cedidos aos cidadãos para conferir a protecção jurídica dos mesmos (exemplo: tribunais administrativos independentes, recursos e acções de plena jurisdição, processos executivos eficazes e não sujeitos a qualquer controlo governamental).
                      Dou por terminada a minha exposição, concluindo que a aventura evolutiva do estatuto dos particulares perante a Administração não foi de todo linear, tendo sofrido muitas rupturas, traduzidas num sistema constante de progressos e retrocessos ao longo das épocas. A acrescentar, no caso português, actualmente, sob o aspecto económico, o Estado condiciona cada vez mais as actividades privadas e sob o ponto de vista político, o cidadão cada vez vê mais reforçadas as suas garantias que o abrigam contra o arbítrio estadual, ou seja, o Estado está cada vez mais restringido pelas normas que visam a defesa dos direitos e interesses legítimos dos particulares contra os comportamentos ilegais ou injustos da Administração. 

Bibliografia:

AMARAL, Diogo Freitas. – Curso de Direito Administrativo. 4-ª Edição. Coimbra: Edições Almedina, 2015.
VASCO PEREIRA DA SILVA, “Em busca do Ato Administrativo Perdido”, Dissertação de Doutoramento em Ciências Jurídico Políticas, Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa


Hugo Pereira Coutinho| nº 28205 | PB14 2º Ano | Direito Administrativo I

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