domingo, 30 de outubro de 2016

O interesse público e os interesses dos particulares

O princípio do respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares está diretamente relacionado com o princípio da prossecução do interesse público. Este é um dos princípios (para além do princípio da legalidade) que criam balizas à atividade administrativa ao assegurar o interesse público. Para desenvolver este tema, consultei os manuais dos Professores Diogo Freitas do Amaral (Curso de Direito Administrativo, vol.II), João Caupers (Introdução ao Direito Administrativo), Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos (Direito Administrativo Geral, Tomo I) e a tese de doutoramento do Professor Vasco Pereira da Silva (Em Busca do Ato Administrativo Perdido). 

A prossecução dos interesses públicos que a lei confere à administração não pode ser assegurada de qualquer forma. A administração deve respeitar os direitos e interesses dos particulares, ideia que está expressa no art.266º/1 da CRP e no art.4º do CPA. Para o Professor Diogo Freitas do Amaral “não é feliz” a expressão interesses legalmente protegidos (preferindo a designação interesses legítimos, expressão uniforme) e a utilização do termo “cidadãos”. Concordo particularmente com esta última crítica, no sentido em que os argumentos do Professor vão no sentido de se proteger todos os indivíduos de Direito (e não apenas cidadãos portugueses) e também proteger os interesses de pessoas coletivas (criadas e reconhecidas pelo Direito). 

Apesar de a Administração ter em consideração os interesses dos particulares, tal não significa que não deva impedir de todo a afetação administrativa das posições dos particulares, pois essa é uma das suas funções. Esta é uma função impossível de eliminar, mesmo nos modelos de administração mínima como é o caso do Estado liberal. A posição dos Professores Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos é de que “sem agressão de posições jurídicas subjetivas dos particulares, e mesmo dos seus direitos fundamentais, não existe administração pública”, ou seja, deve existir um equilíbrio entre prossecução do interesse público e a proteção dos direitos dos particulares, nem que a Administração Pública não deve perder a sua essência, privilegiando os interesses legalmente protegidos dos particulares. 

O princípio do respeito pelas posições jurídicas dos particulares proíbe é a violação, a sua afetação com desrespeito pelos parâmetros de juridicidade da atuação administrativa. Por isso, são proibidas as afetações que não sejam legalmente habilitadas e as que contrariem o bloco de legalidade. Tendo em conta estes últimos limites, este princípio releva para o princípio da proporcionalidade e princípio da imparcialidade. No primeiro princípio, é proibido que se adotem meios de prossecução do interesse público que lesem de forma inadequada, desnecessária ou desrazoável as posições jurídicas subjetivas dos particulares. O segundo princípio, na sua vertente positiva, prevê que as posições jurídicas subjetivas tenham de ser ponderadas entre si e com os interesses públicos em presença para a decisão do caso concreto. 

Houve uma evolução no que respeita ao equilíbrio entre interesses públicos e interesses dos particulares. Anteriormente, como a Administração Pública era pouco interveniente e bastante extrativa, o princípio da legalidade garantia o equilíbrio entre interesses públicos e interesses dos particulares. Atualmente, a administração caracteriza-se por ser mais interventiva, ou seja, o princípio da legalidade tornou-se insuficiente para garantir tal harmonia. Segundo o Professor João Caupers, outros fatores também influenciam a atuação administrativa na prossecução dos interesses dos particulares: dever de fundamentação do ato administrativo, o princípio da proporcionalidade, a tutela jurisdicional cautelar e o provedor de justiça. 

As posições jurídicas dos particulares face à Administração podem qualificar-se como direitos subjetivos e interesses legítimos, sendo a distinção destes conceitos desenvolvida em Itália. Enquanto o direito subjetivo consubstancia uma situação jurídica ativa que possibilita a satisfação de um interesse próprio do interesse do titular, o interesse legítimo não permite a satisfação de um interesse próprio do titular mas a satisfação de um interesse público. A satisfação desse interesse público, também possibilitaria a satisfação do interesse privado associado. Estas duas categorias também se distinguem quanto ao tipo de proteção (segundo a conceção tradicional): enquanto no direito subjetivo a proteção é imediata e plena, o interesse legítimo caracteriza-se por uma proteção mediata ou de segunda linha. Ou seja, no direito subjetivo existe um direito à satisfação de um interesse próprio e no interesse legítimo existe uma garantia da legalidade das decisões que exerçam sobre um direito próprio. 

O Professor João Caupers defende que uma posição jurídica ativa cujo objeto se reduz à reposição da legalidade ofendida, ainda que sem uma projeção direta, como vantagem, na esfera jurídica do titular é algo diverso de um direito subjetivo. Não se trata de uma mera distinção formal, sendo realidades qualitativamente diversas. 

Quanto à utilidade da distinção, existe uma divergência doutrinária: por um lado, o Professor Diogo Freitas Amaral considera esta distinção bastante significativa mas cuja aplicação ainda não é plena e, por outro lado, o Professor Vasco Pereira da Silva considera esta distinção insignificante. 

O Professor Diogo Freitas do Amaral considera esta distinção significativa, em que o direito subjetivo consiste num ou mais poderes legais que permitem manter ou obter a satisfação plena de um interesse privado e o interesse legítimo consiste no poder legal de garantir que o sacrifício de um interesse privado, por razões de interesse público, seja sempre decidido com total respeito pela legalidade administrativa vigente e que no caso de ilegalidade exista o poder de nova apreciação pela Administração ou pelos tribunais sem que isso tenha de beneficiar o interesse particular afetado. Porém, o Professor considera que os traços essenciais do regime jurídico dos direitos subjetivos e dos interesses legítimos não se aplicam a todos os direitos subjetivos e a todos os interesses legítimos. 

O Professor Vasco Pereira da Silva criticou esta distinção, considerando-a inútil no ordenamento jurídico português: “ a diferença entre o direito subjetivo e o interesse legítimo não respeita, portanto, à existência do próprio direito, mas a uma maior ou menor amplitude do seu conteúdo”. Esta tese é defendida no Em Busca do Ato Administrativo Perdido. No divã da psicanálise, o Professor sustenta que estes interesses “equivalem a direitos subjetivos públicos decorrentes da Constituição”. 

Esta distinção é uma distinção muito importante, essencial e que necessita de um aprofundamento dogmático, uma vez que que a Constituição e as leis administrativas distinguem entre direitos subjetivos e interesses legalmente protegidos, devendo-se, por isso, continuar a fazer um estudo aprofundado do significado e alcance de ambos os conceitos.

Catarina Fonseca (28119)

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