Herbert Hart, em O conceito de Direito, afirma que quando são utilizadas regras gerais,
podem surgir dúvidas quanto à conduta a adotar, no caso concreto. O autor
defende que os mecanismos de interpretação não podem eliminar as incertezas
causadas pela linguagem, embora possam diminuí-las. Segundo Hart, verificar-se-ão
situações em que expressões gerais se aplicam sem grandes dúvidas, dando o
seguinte exemplo: “Se existir algo qualificável como um veículo, um automóvel
é-o certamente”. Mas verificar-se-ão casos em que não é claro se se aplicam ou
não, ou seja, a expressão «veículo» utilizada incluirá “bicicletas, aviões e
patins?” Os modelos de interpretação não eliminarão as incertezas quanto a
aplicação das “expressões” aos casos concretos, quanto muito podem diminui-las.
E de que modo é que a questão referida releva para o Direito Administrativo? Ou como pode ser comparada?
Não se trata exatamente do problema que a abertura da linguagem representa para
o Direito, mas sim de partir da linguagem da norma e da sua “abertura” para se
saber a que caso concreto aplicar e, perante a incerteza, de que forma atuar. Esta
faculdade é conferida, de certo modo, à Administração Pública.
A verdade é que a Administração Pública
dispõe de um espaço de liberdade, conferido pela lei, e limitado pelo bloco de
legalidade, para atuar. E essa margem de liberdade permite à Administração
atuar no caso concreto, conforme as circunstâncias de cada caso. Contrariamente ao que sucede na função
legislativa, na qual se verifica uma certa “distância” quanto ao caso concreto,
tal é a generalidade e a abstração dos atos emanados pelo poder legislativo. O
futuro que os atos gerais e abstratos pretendem disciplinar só pode ser
antecipado de forma muito limitada. Daqui surge a necessidade da Administração
dispor de uma abertura em relação às normas legais, para que se adapte o
sentido normativo aos casos concretos e imprevistos pelo legislador, e para que
se prossiga com sucesso o interesse público.
A margem de livre decisão administrativa
pode ser exercida através da discricionariedade e da margem de livre
apreciação. Enquanto a discricionariedade consiste numa liberdade conferida à
Administração Pública para que esta escolha entre as várias alternativas de atuação
juridicamente admissíveis, a margem de livre apreciação não se baseia em
escolhas entre agir e não agir (isto é, na discricionariedade de ação), entre
duas ou mais possibilidades de atuação legalmente predefinidas (isto é, na discricionariedade
de escolha), ou na criação da atuação concreta (isto é, na discricionariedade
criativa), mas antes, resulta da atribuição pela lei de uma liberdade à
administração na apreciação de situações de facto, que dizem respeito aos
pressupostos das suas decisões.
Contudo, sendo a função administrativa uma
função secundária do Estado na medida em que se subordina às funções primárias
(sendo elas a função legislativa e a função política), engloba apenas escolhas
de segundo grau, ao contrário do que compete às funções primárias.
Apesar de ser designada como a “autonomia
pública”, a margem de livre de decisão não pode ser colocada no mesmo plano que
a autonomia privada. Este princípio que decorre do direito civil, move-se num
plano de liberdade, podendo produzir todos os efeitos que não sejam
normativamente proibidos. Já a margem de livre decisão, está subordinada ao
princípio da legalidade, de que resulta a proibição de atuações que não sejam
permitidas pela lei. Pode mesmo dizer-se que o raio de atuação em nome da “autonomia
pública” é mais reduzido do que o raio de atuação no âmbito da autonomia
privada, ou pelo menos mais limitado.
Porém, a existência de margem de livre
decisão pode envolver a perda de alguma segurança jurídica e a introdução de
alguma desigualdade, na medida em que as decisões administrativas são tomadas
no caso concreto, com base em elementos retirados desse mesmo caso, correndo-se
o risco de que uma visão conjunta dessas decisões venha a revelar incoerências
e distorções sistemáticas.
Estas desvantagens são compensadas por uma
melhor concretização da justiça e uma melhor adequação da aplicação do direito
e, em certos casos, por uma maior igualdade, na medida em que evita o
tratamento normativamente padronizado de situações que espelham dissemelhanças
relevantes.
Herbert Hart, em O Conceito de Direito, apresenta um exemplo através da “paz no
parque” relativamente aos fundamentos e às vantagens da abertura das normas
jurídicas para a decisão no caso concreto. Perante a necessidade de disciplinar
as condições de segurança nos parques infantis, o legislador poderia publicar
normas que enumerassem as atividades cuja realização seria proibida nesses
locais, como por exemplo: “É proibida a circulação de automóveis, autocarros e motociclos
nos parques infantis”. Essas normas teriam a vantagem da certeza e da
previsibilidade, mas poderiam acabar por ver frustrado o seu fim, no caso de
vir a surgir um perigo para as crianças, que não tivesse sido previsto pelo
legislador. Por exemplo, a circulação de automóveis de brinquedos eléctricos, levados
pelos próprios utilizadores do parque. Perante esta situação, os órgãos de
aplicação do direito estariam impedidos de atuar. Mais valeria disciplinar este
caso de modo a permitir que tais órgãos atuassem, com recurso a uma margem de
liberdade, para decidirem de acordo com a avaliação que fizessem de cada caso
concreto, à luz da finalidade normativamente prosseguida.
No âmbito da margem de livre decisão
administrativa não existe contudo controlo jurisdicional. Na medida em que o
controlo se resume unicamente ao respeito da atuação administrativa pelas
normas e pelos limites internos da margem de livre decisão. O que decorre
também do princípio da separação e interdependência de poderes, consagrado nos
artigos nº2 e 111º, nº1 da Constituição da República Portuguesa.
A separação de poderes implica a ausência
do controlo jurisdicional da margem de livre decisão administrativa na medida
em que, subjacente à sua atribuição à administração está um juízo do
legislador, segundo o qual o interesse público será melhor prosseguido se a
última palavra decisória no caso concreto pertencer à Administração Pública. O exercício
da margem de livre decisão implica, tipicamente, a formulação dos chamados “juízos
de prognose” e a assunção de riscos decisórios, que tendo em conta as suas
características distintivas, os tribunais não se encontram preparados para realizar.
Na realidade, se os tribunais controlassem o exercício da margem de livre
decisão administrativa estariam a exercer a função administrativa, em termos
menos aptos do que a própria Administração, e encontrar-se-iam desprovidos dos
mecanismos de controlo e responsabilização que a prossecução do interesse
público pela administração garante.
A margem de livre decisão não constitui, no
entanto, um espaço de total liberdade para a administração decidir.
Os limites impostos à margem de livre
decisão podem ser de dois tipos: vinculações legais ou os próprios limites que
lhe são imanentes. As vinculações legais correspondem a requisitos de
legalidade, que podem incidir sobre todos os pressupostos e elementos da
conduta administrativa. Os limites imanentes da margem de livre decisão são os
princípios da proteção das posições
jurídicas dos particulares, da proporcionalidade, da imparcialidade, da
igualdade, da justiça, da boa fé, da decisão e da gratuitidade.
Da incidência das vinculações legais e dos
limites imanentes da margem de livre decisão pode resultar que passe a existir
apenas uma decisão juridicamente admissível para o caso concreto. Estaremos perante
a redução a zero da margem de livre decisão.
Bibliografia:
SOUSA, Marcelo Rebelo de, MATOS, André Salgado de, Direito Administrativo Geral, tomo I Introdução e princípios fundamentais, reimpressão da 3ª edição, 2008
HART, Herbert, O Conceito de Direito, 3ª edição, 2012
Sem comentários:
Enviar um comentário