domingo, 30 de outubro de 2016

A margem de livre decisão administrativa


Herbert Hart, em O conceito de Direito, afirma que quando são utilizadas regras gerais, podem surgir dúvidas quanto à conduta a adotar, no caso concreto. O autor defende que os mecanismos de interpretação não podem eliminar as incertezas causadas pela linguagem, embora possam diminuí-las. Segundo Hart, verificar-se-ão situações em que expressões gerais se aplicam sem grandes dúvidas, dando o seguinte exemplo: “Se existir algo qualificável como um veículo, um automóvel é-o certamente”. Mas verificar-se-ão casos em que não é claro se se aplicam ou não, ou seja, a expressão «veículo» utilizada incluirá “bicicletas, aviões e patins?” Os modelos de interpretação não eliminarão as incertezas quanto a aplicação das “expressões” aos casos concretos, quanto muito podem diminui-las.
E de que modo é que a questão referida releva para o Direito Administrativo? Ou como pode ser comparada? Não se trata exatamente do problema que a abertura da linguagem representa para o Direito, mas sim de partir da linguagem da norma e da sua “abertura” para se saber a que caso concreto aplicar e, perante a incerteza, de que forma atuar. Esta faculdade é conferida, de certo modo, à Administração Pública.
A verdade é que a Administração Pública dispõe de um espaço de liberdade, conferido pela lei, e limitado pelo bloco de legalidade, para atuar. E essa margem de liberdade permite à Administração atuar no caso concreto, conforme as circunstâncias de cada caso.  Contrariamente ao que sucede na função legislativa, na qual se verifica uma certa “distância” quanto ao caso concreto, tal é a generalidade e a abstração dos atos emanados pelo poder legislativo. O futuro que os atos gerais e abstratos pretendem disciplinar só pode ser antecipado de forma muito limitada. Daqui surge a necessidade da Administração dispor de uma abertura em relação às normas legais, para que se adapte o sentido normativo aos casos concretos e imprevistos pelo legislador, e para que se prossiga com sucesso o interesse público.
A margem de livre decisão administrativa pode ser exercida através da discricionariedade e da margem de livre apreciação. Enquanto a discricionariedade consiste numa liberdade conferida à Administração Pública para que esta escolha entre as várias alternativas de atuação juridicamente admissíveis, a margem de livre apreciação não se baseia em escolhas entre agir e não agir (isto é, na discricionariedade de ação), entre duas ou mais possibilidades de atuação legalmente predefinidas (isto é, na discricionariedade de escolha), ou na criação da atuação concreta (isto é, na discricionariedade criativa), mas antes, resulta da atribuição pela lei de uma liberdade à administração na apreciação de situações de facto, que dizem respeito aos pressupostos das suas decisões.
Contudo, sendo a função administrativa uma função secundária do Estado na medida em que se subordina às funções primárias (sendo elas a função legislativa e a função política), engloba apenas escolhas de segundo grau, ao contrário do que compete às funções primárias.
Apesar de ser designada como a “autonomia pública”, a margem de livre de decisão não pode ser colocada no mesmo plano que a autonomia privada. Este princípio que decorre do direito civil, move-se num plano de liberdade, podendo produzir todos os efeitos que não sejam normativamente proibidos. Já a margem de livre decisão, está subordinada ao princípio da legalidade, de que resulta a proibição de atuações que não sejam permitidas pela lei. Pode mesmo dizer-se que o raio de atuação em nome da “autonomia pública” é mais reduzido do que o raio de atuação no âmbito da autonomia privada, ou pelo menos mais limitado.
Porém, a existência de margem de livre decisão pode envolver a perda de alguma segurança jurídica e a introdução de alguma desigualdade, na medida em que as decisões administrativas são tomadas no caso concreto, com base em elementos retirados desse mesmo caso, correndo-se o risco de que uma visão conjunta dessas decisões venha a revelar incoerências e distorções sistemáticas.
Estas desvantagens são compensadas por uma melhor concretização da justiça e uma melhor adequação da aplicação do direito e, em certos casos, por uma maior igualdade, na medida em que evita o tratamento normativamente padronizado de situações que espelham dissemelhanças relevantes.
Herbert Hart, em O Conceito de Direito, apresenta um exemplo através da “paz no parque” relativamente aos fundamentos e às vantagens da abertura das normas jurídicas para a decisão no caso concreto. Perante a necessidade de disciplinar as condições de segurança nos parques infantis, o legislador poderia publicar normas que enumerassem as atividades cuja realização seria proibida nesses locais, como por exemplo: “É proibida a circulação de automóveis, autocarros e motociclos nos parques infantis”. Essas normas teriam a vantagem da certeza e da previsibilidade, mas poderiam acabar por ver frustrado o seu fim, no caso de vir a surgir um perigo para as crianças, que não tivesse sido previsto pelo legislador. Por exemplo, a circulação de automóveis de brinquedos eléctricos, levados pelos próprios utilizadores do parque. Perante esta situação, os órgãos de aplicação do direito estariam impedidos de atuar. Mais valeria disciplinar este caso de modo a permitir que tais órgãos atuassem, com recurso a uma margem de liberdade, para decidirem de acordo com a avaliação que fizessem de cada caso concreto, à luz da finalidade normativamente prosseguida.
No âmbito da margem de livre decisão administrativa não existe contudo controlo jurisdicional. Na medida em que o controlo se resume unicamente ao respeito da atuação administrativa pelas normas e pelos limites internos da margem de livre decisão. O que decorre também do princípio da separação e interdependência de poderes, consagrado nos artigos nº2 e 111º, nº1 da Constituição da República Portuguesa.
A separação de poderes implica a ausência do controlo jurisdicional da margem de livre decisão administrativa na medida em que, subjacente à sua atribuição à administração está um juízo do legislador, segundo o qual o interesse público será melhor prosseguido se a última palavra decisória no caso concreto pertencer à Administração Pública. O exercício da margem de livre decisão implica, tipicamente, a formulação dos chamados “juízos de prognose” e a assunção de riscos decisórios, que tendo em conta as suas características distintivas, os tribunais não se encontram preparados para realizar. Na realidade, se os tribunais controlassem o exercício da margem de livre decisão administrativa estariam a exercer a função administrativa, em termos menos aptos do que a própria Administração, e encontrar-se-iam desprovidos dos mecanismos de controlo e responsabilização que a prossecução do interesse público pela administração garante.
A margem de livre decisão não constitui, no entanto, um espaço de total liberdade para a administração decidir.
Os limites impostos à margem de livre decisão podem ser de dois tipos: vinculações legais ou os próprios limites que lhe são imanentes. As vinculações legais correspondem a requisitos de legalidade, que podem incidir sobre todos os pressupostos e elementos da conduta administrativa. Os limites imanentes da margem de livre decisão são os princípios da proteção das posições jurídicas dos particulares, da proporcionalidade, da imparcialidade, da igualdade, da justiça, da boa fé, da decisão e da gratuitidade.

Da incidência das vinculações legais e dos limites imanentes da margem de livre decisão pode resultar que passe a existir apenas uma decisão juridicamente admissível para o caso concreto. Estaremos perante a redução a zero da margem de livre decisão.

Bibliografia:
SOUSA, Marcelo Rebelo de, MATOS, André Salgado de, Direito Administrativo Geral, tomo I Introdução e princípios fundamentais, reimpressão da 3ª edição, 2008
HART, Herbert, O Conceito de Direito, 3ª edição, 2012

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