A Fiscalização Administrativa da Constitucionalidade e a (des)aplicação de normas inconstitucionais: poder ou dever, eis a questão
Na
presente exposição propõe-se a abordagem da problemática da fiscalização da
constitucionalidade pela Administração Pública, refletindo acerca do
desenvolvimento da competência de exame e do problema da (des)aplicação
administrativa das normas legais inconstitucionais, além da questão da
fiscalização da constitucionalidade por órgãos diferentes dos tribunais. Por
último, uma breve conclusão criticando o panorama doutrinário retratado.
A problemática da
fiscalização da constitucionalidade pela Administração
Em
Portugal a justiça constitucional tem um carácter restritivo, incidindo apenas
sobre normas. Esta ideia resulta dos artigos 204º, 277º, 280º, 281º e 283º da
Constituição. Ficam de fora da competência de fiscalização dos tribunais, os
actos políticos e executivos, assim como, as próprias decisões dos tribunais
enquanto actos jurisdicionais.
As
leis inconstitucionais colocam um leque de problemas a todas as entidades
públicas que têm como função a aplicação de normas jurídicas. A problemática da
fiscalização da constitucionalidade pela Administração coloca, como afirma Rui
Medeiros e O. Bachof “em causa a relação
fundamental entre o poder legislativo e o poder executivo na nossa ordem
constitucional”[1].
Para
melhor entender o problema em questão, deve-se expor, em primeiro lugar, o que
se entende por “competência de
fiscalização”[2].
André Salgado Matos entende que se trata de uma “permissão conferida pela ordem jurídica a um determinado órgão público
para apreciar a conformidade de certos actos com os seus parâmetros jurídicos e
para agir sobre o resultado dessa apreciação”[3].
O seu principal poder é o de efectuar um juízo
de conformidade (competência de exame)[4]
e o poder de extrair desse juízo algumas directrizes para a aplicação do acto
fiscalizado.
Competência de exame da
constitucionalidade das leis:
Como afirma André Salgado de Matos, o primeiro passo para
aferir a existência de uma competência administrativa de fiscalização da
constitucionalidade, trata-se de apurar se a Administração Pública dispõe de
uma competência de exame da conformidade constitucional das normas legais.
Contudo, como refere, o que está em causa é saber a relevância funcional desse
juízo.
A doutrina diverge sobre esta matéria. Contra a admissão
de uma competência administrativa de exame da constitucionalidade de normas
legais foram são invocadas vários argumentos. Um dos quais dispõe que a
admissão de uma competência administrativa de exame violaria o princípio da
separação de poderes, assim como o princípio da legalidade, como defende o
autor alemão D. Ronitz.[5]
Outro
contra-argumento dispõe que a competência administrativa de exame poderia pôr
em causa o dever de obediência hierárquica. Nesta perspetiva, o autor alemão
Grund afirma que a admissão de uma competência de exame obstaria ainda o
desvalor das leis inconstitucionais.[6]
Quanto ao primeiro, parece não resultar, pois a
formulação de um simples juízo administrativo de inconstitucionalidade não
afecta directamente o princípio da separação de poderes, tanto em relação ao
poder legislativo como ao poder jurisdicional e bem como ao poder judicial.
Em
relação a uma suposta violação do princípio da legalidade, este argumento
contrário à competência de exame também é alvo de algumas críticas. Como refere
André Salgado de Matos, “não implicando
por si a prática de qualquer acto contrário à lei considerada inconstitucional,
a competência de exame não acarreta qualquer violação do princípio da
legalidade administrativo (...) quando muito, apenas as competências de
suspensão e desaplicação implicariam tal violação.”[7]
Quanto ao
argumento contra a competência de exame, do dever de obediência hierárquica, o
mesmo falha logo no sentido em que, o dever de obediência hierárquica, diz
respeito a comandos administrativos e não a leis.
Em relação ao último argumento
apresentado, o mesmo também é criticável, pois mesmo que a lei inconstitucional
seja anulável, com isto, é eficaz até à declaração definitiva de
inconstitucionalidade, onde apenas a suspensão ou desaplicação é que poderia
afectar a sua eficácia.
Por outro lado, existem também
argumentos a favor da competência de exame. Um dos quais dispõe que a própria
Constituição admite a existência de competências administrativas de exame
específicas, tendo por base alguns preceitos constitucionais como o art. 201º/1,
alínea b) e o art. 220º/2, ambos da Constituição.
Outro
argumento dispõe que no art. 271º/3, ao admitir-se a cessação do dever de
obediência hierárquica perante comandos cujo cumprimento implique a prática de
um crime, a Constituição admite uma competência de exame, realizado pelo
subalterno, da legalidade de todos os comandos hierárquicos.
Problema da (des)aplicação administrativa de
normas inconstitucionais:
No que respeita ao problema da
aplicação ou da desaplicação administrativa das normas legais
inconstitucionais, suscita-se uma colisão entre os princípios constitucionais
da separação de poderes e da constitucionalidade. É possível aferir que a
desaplicação de normas legais inconstitucionais esteja sujeita a um monopólio
de competência, onde é necessária a última palavra do Tribunal Constitucional
sobre esta questão.
Recorrendo
aos princípios constitucionais enunciados em supra, o princípio da separação de poderes impõe à primeira vista o
dever de aplicação; por sua vez, o princípio da constitucionalidade impõe à
primeira vista também, o dever de desaplicação. Como acontece em qualquer
conflito de princípios, também sobre esta matéria, só através de uma análise a
um caso em concreto é que pode ser resolvido, embora, através de um processo de
abstracção, é possível detectar condições de preferência prima facie que levem à prevalência de um ou de outro princípio.
Essas condições de preferência devem ser orientadas pelo objectivo de manter a
segurança jurídica gerada pela desaplicação dentro de níveis
constitucionalmente admissíveis.
São
várias as condições de preferência, à primeira vista, do princípio da
constitucionalidade, entre elas, a evidência de inconstitucionalidade, a prévia
desaplicação jurisdicional no mesmo contexto procedimental, a existência de uma
lei considerada inconstitucional pelo Tribunal Constitucional, que entra em
vigor após confirmação parlamentar, entre outras apontadas por André Salgado de
Matos[8].
Como afirma André Salgado de Matos,
“a inexistência de uma competência de
desaplicação irrestrita implica a ocorrência de certos desvios às regras gerais
de direito administrativo”. Nesta óptica, o dever de autocontrolo, o poder
de direcção e o correspectivo dever de obediência, assim como a autotutela
executiva da Administração, existem apenas na medida em que exista a
competência de desaplicação.
O Problema da fiscalização por órgãos
diferentes dos tribunais:
Sobre a questão se os órgãos
administrativos, possuem o poder, e o dever de não aplicar normas contrárias à
Constituição, ao Direito internacional ou a leis reforçadas[9],
afirma Jorge Miranda[10],
que em relação a esta matéria não crê que seja possível reconhecer aos órgãos
administrativos um poder geral de controlo, que é necessariamente concreto,
análogo ao dos tribunais[11],
e apenas em determinadas situações, deve-se deixar à Administração uma margem
de não aplicação.
Jorge Miranda ainda argumenta que
face à nossa Constituição, onde se proclama o princípio da subordinação dos
órgãos e agentes administrativos tanto à lei como à Constituição (art. 266º/2),
que vincula aos preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades
e garantias todas as entidades públicas (art. 18º/1), e que estipula que a
prevenção dos crimes, incluindo a dos crimes contra a segurança do Estado, só
pode ser feita com respeito por estes direitos, como estatui o art. 272º/3 da
Constituição.
Na posição intermédia de André
Salgado de Matos, a colisão dá-se entre o princípio da separação de poderes e o
da constitucionalidade. Neste caso, o princípio da separação de poderes
implica, à primeira vista, o dever de aplicação.
Contudo,
o princípio da constitucionalidade justificaria, por outro lado, a não aplicação
de lei pela própria Administração, não só nos casos de inexistência e de
inconstitucionalidade evidente, quer nos casos de prévia desaplicação judicial
no mesmo contexto procedimental, quer ainda nos casos de criminalização da
aplicação de normas legais internacionais, e
de violação de normas constitucionais com pretensão absoluta de
aplicação, de leis inconstitucionais que foram confirmadas pela Assembleia da
República[12],
como prevê o art. 279º da Constituição, de normas inconstitucionais não declaradas
como tais pelo Tribunal Constitucional.
De
facto, têm de ser os tribunais administrativos, e não os órgãos da
Administração dita activa a apreciar e a não aplicar leis inconstitucionais.
Pois cabe aos tribunais administrativos, nesta matéria, declarar a nulidade ou
anular os actos administrativos inconstitucionais.
A divergência doutrinária sobre o poder de
fiscalização administrativa da constitucionalidade
Rui
Medeiros é o elemento da Doutrina portuguesa que faz a defesa mais firme de um
amplo poder de fiscalização administrativa da constitucionalidade. Esta defesa
é feita “a partir do duplo postulado da
vinculação de todos os poderes públicos, incluindo o administrativo, à
Constituição e da osmose Constituição-lei como elementos integrantes da juridicidade”[13].
Como
afirma Rui Medeiros, tendo por base o art. 266º/2, afirma que o direito dos
administrados de impugnação de actos administrativos estribados em leis
inconstitucionais tornariam patente a necessidade de um autocontrolo da
Administração. Para este autor, “se só os
tribunais pudessem conhecer da inconstitucionalidade, multiplicar-se-iam
inutilmente os processos e consumar-se-iam situações de grave prejuízo para os
particulares”[14].
Embora
os funcionários e agentes possam ser chamados a examinar a constitucionalidade,
tal não significa que os subalternos possam desobedecer, com fundamento em
inconstitucionalidade, às ordens dos seus superiores, pois a decisão da não
aplicação da lei cabe, em regra, ao cume da Administração[15].
No entanto Jorge Miranda retrata que
“o competir a decisão sobre a aplicação
ou não de leis aos órgãos superiores de
cada estrutura hierárquica e o não
estarem excluídas medidas tutelares à Administração indirecta e à autónoma
também atenua esses riscos de divergência de entendimento e até de preterição
do princípio da igualdade”[16].
Tendo como contrapartida, a agravação do perigo de concentração do poder no
Governo erigido ainda em órgão com concentração do controlo de
constitucionalidade, paralelo ao Tribunal Constitucional.
Jorge Miranda contrapõe, afirmando
que as únicas faculdades de intervenção dos órgãos políticos de soberania ou
das regiões autónomas no domínio da garantia do cumprimento do disposto na
Constituição são da competência do Presidente da República, do Parlamento e dos
órgãos de iniciativa da fiscalização abstracta. Sentenciando, “Mais do que isso seria a subversão do Estado
de Direito.”[17]
Conclusão:
Podemos concluir que os tribunais não
detêm o controlo exclusivo da fiscalização da constitucionalidade. Na minha
óptica, a própria Constituição deveria ser revista de forma a responder às
necessidades actuais.
O artigo 204º da Constituição,
deveria consagrar a fiscalização, por parte de todos os tribunais, da
constitucionalidade de actos praticados pelo poder público, para além dos
demais actos normativos, mas não só, também deveria ser criado um artigo
relativo à fiscalização concreta destes actos, em paralelo, ao artigo 280º da
Constituição. De facto, a Administração Pública, não pode, por princípio geral,
recusar a aplicação de normas com fundamento na sua inconstitucionalidade.
A vinculação administrativa à
Constituição e a devida competência que assiste a todo e qualquer órgão
administrativo para a interpretação da lei que deva aplicar, acaba por
fundamentar uma ilimitada competência administrativa de exame da
constitucionalidade das leis, e em consequência desta competência, os órgãos
administrativos gozam ainda, de uma competência de interpretação conforme à
Constituição das normas legais cuja aplicação lhes suscite.
Em relação ao problema da
(des)aplicação administrativa das normas legais inconstitucionais e à colisão
entre o princípio da separação de poderes e o princípio da constitucionalidade,
concordo com a posição de André Salgado de Matos, que a resolução do problema
deve ser feita através de cada caso em concreto, ou então, através de um
processo de abstracção, onde à primeira vista, é possível detectar condições de
preferência que levam à prevalência de um ou de outro princípio.
Por fim, embora não tenha tido a
oportunidade de enunciar ao longo da exposição, creio que, o recurso de amparo
deveria ser consagrado na Constituição, de forma a tutelar não só os direitos
fundamentais, como também para garantir aos cidadãos a possibilidade de
recorrer directamente ao Tribunal Constitucional. Contudo, a possibilidade de
recurso de amparo tem de ocorrer em última ratio,
devendo, os tribunais comuns, em primeiro lugar, discutir a violação desse
mesmo direito.
Bibliografia
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[1] O. BACHOF, “Die Prüfungs, und dem bundeswidrigen Gesetz”, 198; também R.
Medeiros, A decisão de
inconstitucionalidade – Os autores, o
conteúdo e os efeitos da decisão de inconstitucionalidade da lei, 149.
[2] Sobre o conceito de fiscalização ou controlo, Jorge Miranda, “Manual de direito constitucional”, VI,
48.
[4] A doutrina alemã utiliza frequentemente esta expressão, mais
concretamente a expressão “direito de exame”, para designar todo o compreensivo
a que se chamou competência de fiscalização, K-H. Hall, “Historische Anmerkungen zum Prüfungsrecht der Verwaltungsbeamnten
gegenüber dem Gesetz”, 559.
[6] Na opinão de André Salgado de Matos, este
argumente carece de fundamentação e utiliza formulação
ambígua, Grund, “Die Stellung”, 1625.
[9] Até
porque actos administrativos inconstitucionais ou ilegais são nulos ou
anuláveis e não se justificaria obrigar a administração a pratica-los para
depois, posteriormente virem a ser impugnados contenciosamente ou até sendo
alvo de resistência por parte dos cidadãos.
[10] [10] Jorge Miranda, “Manual de Direito
Constitucional, inconstitucionalidade e garantia da constituição”, VI, 4º
edição, página 229
[11] Neste
sentido, acórdão nº304/85 do Tribunal Constitucional, de 11 de dezembro, in
Diário da República, 2º série, de 10 de abril de 1986.
[12] André
Salgado de Matos, “A fiscalização
administrativa da constitucionalidade”, 323 e seguintes.
[13] Rui
Medeiros, “A Decisão de
Inconstitucionalidade: os autores, o conteúdo e os efeitos da decisão da inconstitucionalidade
da lei”, cit., página 188.
[16] Jorge
Miranda, “Manual de Direito
Constitucional, inconstitucionalidade e garantia da constituição”, VI, 4º
edição, página 232.
[17] Jorge
Miranda, “Manual de Direito Constitucional,
inconstitucionalidade e garantia da constituição”, VI, 4º edição, página
234.
Felícia Zgardan nº 28055
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