segunda-feira, 31 de outubro de 2016

A Fiscalização Administrativa da Constitucionalidade

A Fiscalização Administrativa da Constitucionalidade e a (des)aplicação de normas inconstitucionais: poder ou dever, eis a questão

Na presente exposição propõe-se a abordagem da problemática da fiscalização da constitucionalidade pela Administração Pública, refletindo acerca do desenvolvimento da competência de exame e do problema da (des)aplicação administrativa das normas legais inconstitucionais, além da questão da fiscalização da constitucionalidade por órgãos diferentes dos tribunais. Por último, uma breve conclusão criticando o panorama doutrinário retratado.

A problemática da fiscalização da constitucionalidade pela Administração


Em Portugal a justiça constitucional tem um carácter restritivo, incidindo apenas sobre normas. Esta ideia resulta dos artigos 204º, 277º, 280º, 281º e 283º da Constituição. Ficam de fora da competência de fiscalização dos tribunais, os actos políticos e executivos, assim como, as próprias decisões dos tribunais enquanto actos jurisdicionais.
As leis inconstitucionais colocam um leque de problemas a todas as entidades públicas que têm como função a aplicação de normas jurídicas. A problemática da fiscalização da constitucionalidade pela Administração coloca, como afirma Rui Medeiros e O. Bachof “em causa a relação fundamental entre o poder legislativo e o poder executivo na nossa ordem constitucional[1].
Para melhor entender o problema em questão, deve-se expor, em primeiro lugar, o que se entende por “competência de fiscalização[2]. André Salgado Matos entende que se trata de uma “permissão conferida pela ordem jurídica a um determinado órgão público para apreciar a conformidade de certos actos com os seus parâmetros jurídicos e para agir sobre o resultado dessa apreciação[3].
 O seu principal poder é o de efectuar um juízo de conformidade (competência de exame)[4] e o poder de extrair desse juízo algumas directrizes para a aplicação do acto fiscalizado.

Competência de exame da constitucionalidade das leis:


            Como afirma André Salgado de Matos, o primeiro passo para aferir a existência de uma competência administrativa de fiscalização da constitucionalidade, trata-se de apurar se a Administração Pública dispõe de uma competência de exame da conformidade constitucional das normas legais. Contudo, como refere, o que está em causa é saber a relevância funcional desse juízo.
            A doutrina diverge sobre esta matéria. Contra a admissão de uma competência administrativa de exame da constitucionalidade de normas legais foram são invocadas vários argumentos. Um dos quais dispõe que a admissão de uma competência administrativa de exame violaria o princípio da separação de poderes, assim como o princípio da legalidade, como defende o autor alemão D. Ronitz.[5]
Outro contra-argumento dispõe que a competência administrativa de exame poderia pôr em causa o dever de obediência hierárquica. Nesta perspetiva, o autor alemão Grund afirma que a admissão de uma competência de exame obstaria ainda o desvalor das leis inconstitucionais.[6]
            Quanto ao primeiro, parece não resultar, pois a formulação de um simples juízo administrativo de inconstitucionalidade não afecta directamente o princípio da separação de poderes, tanto em relação ao poder legislativo como ao poder jurisdicional e bem como ao poder judicial.
Em relação a uma suposta violação do princípio da legalidade, este argumento contrário à competência de exame também é alvo de algumas críticas. Como refere André Salgado de Matos, “não implicando por si a prática de qualquer acto contrário à lei considerada inconstitucional, a competência de exame não acarreta qualquer violação do princípio da legalidade administrativo (...) quando muito, apenas as competências de suspensão e desaplicação implicariam tal violação.”[7]
             Quanto ao argumento contra a competência de exame, do dever de obediência hierárquica, o mesmo falha logo no sentido em que, o dever de obediência hierárquica, diz respeito a comandos administrativos e não a leis.
            Em relação ao último argumento apresentado, o mesmo também é criticável, pois mesmo que a lei inconstitucional seja anulável, com isto, é eficaz até à declaração definitiva de inconstitucionalidade, onde apenas a suspensão ou desaplicação é que poderia afectar a sua eficácia.
            Por outro lado, existem também argumentos a favor da competência de exame. Um dos quais dispõe que a própria Constituição admite a existência de competências administrativas de exame específicas, tendo por base alguns preceitos constitucionais como o art. 201º/1, alínea b) e o art. 220º/2, ambos da Constituição.
Outro argumento dispõe que no art. 271º/3, ao admitir-se a cessação do dever de obediência hierárquica perante comandos cujo cumprimento implique a prática de um crime, a Constituição admite uma competência de exame, realizado pelo subalterno, da legalidade de todos os comandos hierárquicos.

Problema da (des)aplicação administrativa de normas inconstitucionais:


            No que respeita ao problema da aplicação ou da desaplicação administrativa das normas legais inconstitucionais, suscita-se uma colisão entre os princípios constitucionais da separação de poderes e da constitucionalidade. É possível aferir que a desaplicação de normas legais inconstitucionais esteja sujeita a um monopólio de competência, onde é necessária a última palavra do Tribunal Constitucional sobre esta questão.
Recorrendo aos princípios constitucionais enunciados em supra, o princípio da separação de poderes impõe à primeira vista o dever de aplicação; por sua vez, o princípio da constitucionalidade impõe à primeira vista também, o dever de desaplicação. Como acontece em qualquer conflito de princípios, também sobre esta matéria, só através de uma análise a um caso em concreto é que pode ser resolvido, embora, através de um processo de abstracção, é possível detectar condições de preferência prima facie que levem à prevalência de um ou de outro princípio. Essas condições de preferência devem ser orientadas pelo objectivo de manter a segurança jurídica gerada pela desaplicação dentro de níveis constitucionalmente admissíveis.
São várias as condições de preferência, à primeira vista, do princípio da constitucionalidade, entre elas, a evidência de inconstitucionalidade, a prévia desaplicação jurisdicional no mesmo contexto procedimental, a existência de uma lei considerada inconstitucional pelo Tribunal Constitucional, que entra em vigor após confirmação parlamentar, entre outras apontadas por André Salgado de Matos[8].
            Como afirma André Salgado de Matos, “a inexistência de uma competência de desaplicação irrestrita implica a ocorrência de certos desvios às regras gerais de direito administrativo”. Nesta óptica, o dever de autocontrolo, o poder de direcção e o correspectivo dever de obediência, assim como a autotutela executiva da Administração, existem apenas na medida em que exista a competência de desaplicação.

O Problema da fiscalização por órgãos diferentes dos tribunais:


            Sobre a questão se os órgãos administrativos, possuem o poder, e o dever de não aplicar normas contrárias à Constituição, ao Direito internacional ou a leis reforçadas[9], afirma Jorge Miranda[10], que em relação a esta matéria não crê que seja possível reconhecer aos órgãos administrativos um poder geral de controlo, que é necessariamente concreto, análogo ao dos tribunais[11], e apenas em determinadas situações, deve-se deixar à Administração uma margem de não aplicação.
            Jorge Miranda ainda argumenta que face à nossa Constituição, onde se proclama o princípio da subordinação dos órgãos e agentes administrativos tanto à lei como à Constituição (art. 266º/2), que vincula aos preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias todas as entidades públicas (art. 18º/1), e que estipula que a prevenção dos crimes, incluindo a dos crimes contra a segurança do Estado, só pode ser feita com respeito por estes direitos, como estatui o art. 272º/3 da Constituição.
            Na posição intermédia de André Salgado de Matos, a colisão dá-se entre o princípio da separação de poderes e o da constitucionalidade. Neste caso, o princípio da separação de poderes implica, à primeira vista, o dever de aplicação.
Contudo, o princípio da constitucionalidade justificaria, por outro lado, a não aplicação de lei pela própria Administração, não só nos casos de inexistência e de inconstitucionalidade evidente, quer nos casos de prévia desaplicação judicial no mesmo contexto procedimental, quer ainda nos casos de criminalização da aplicação de normas legais internacionais, e  de violação de normas constitucionais com pretensão absoluta de aplicação, de leis inconstitucionais que foram confirmadas pela Assembleia da República[12], como prevê o art. 279º da Constituição, de normas inconstitucionais não declaradas como tais pelo Tribunal Constitucional. 
De facto, têm de ser os tribunais administrativos, e não os órgãos da Administração dita activa a apreciar e a não aplicar leis inconstitucionais. Pois cabe aos tribunais administrativos, nesta matéria, declarar a nulidade ou anular os actos administrativos inconstitucionais.

A divergência doutrinária sobre o poder de fiscalização administrativa da constitucionalidade


Rui Medeiros é o elemento da Doutrina portuguesa que faz a defesa mais firme de um amplo poder de fiscalização administrativa da constitucionalidade. Esta defesa é feita “a partir do duplo postulado da vinculação de todos os poderes públicos, incluindo o administrativo, à Constituição e da osmose Constituição-lei como elementos integrantes da juridicidade[13].
Como afirma Rui Medeiros, tendo por base o art. 266º/2, afirma que o direito dos administrados de impugnação de actos administrativos estribados em leis inconstitucionais tornariam patente a necessidade de um autocontrolo da Administração. Para este autor, “se só os tribunais pudessem conhecer da inconstitucionalidade, multiplicar-se-iam inutilmente os processos e consumar-se-iam situações de grave prejuízo para os particulares[14].
Embora os funcionários e agentes possam ser chamados a examinar a constitucionalidade, tal não significa que os subalternos possam desobedecer, com fundamento em inconstitucionalidade, às ordens dos seus superiores, pois a decisão da não aplicação da lei cabe, em regra, ao cume da Administração[15].
            No entanto Jorge Miranda retrata que “o competir a decisão sobre a aplicação ou não de leis aos órgãos  superiores de cada estrutura hierárquica  e o não estarem excluídas medidas tutelares à Administração indirecta e à autónoma também atenua esses riscos de divergência de entendimento e até de preterição do princípio da igualdade[16]. Tendo como contrapartida, a agravação do perigo de concentração do poder no Governo erigido ainda em órgão com concentração do controlo de constitucionalidade, paralelo ao Tribunal Constitucional.
            Jorge Miranda contrapõe, afirmando que as únicas faculdades de intervenção dos órgãos políticos de soberania ou das regiões autónomas no domínio da garantia do cumprimento do disposto na Constituição são da competência do Presidente da República, do Parlamento e dos órgãos de iniciativa da fiscalização abstracta. Sentenciando, “Mais do que isso seria a subversão do Estado de Direito.”[17]

Conclusão:


            Podemos concluir que os tribunais não detêm o controlo exclusivo da fiscalização da constitucionalidade. Na minha óptica, a própria Constituição deveria ser revista de forma a responder às necessidades actuais.
            O artigo 204º da Constituição, deveria consagrar a fiscalização, por parte de todos os tribunais, da constitucionalidade de actos praticados pelo poder público, para além dos demais actos normativos, mas não só, também deveria ser criado um artigo relativo à fiscalização concreta destes actos, em paralelo, ao artigo 280º da Constituição. De facto, a Administração Pública, não pode, por princípio geral, recusar a aplicação de normas com fundamento na sua inconstitucionalidade.
            A vinculação administrativa à Constituição e a devida competência que assiste a todo e qualquer órgão administrativo para a interpretação da lei que deva aplicar, acaba por fundamentar uma ilimitada competência administrativa de exame da constitucionalidade das leis, e em consequência desta competência, os órgãos administrativos gozam ainda, de uma competência de interpretação conforme à Constituição das normas legais cuja aplicação lhes suscite.
            Em relação ao problema da (des)aplicação administrativa das normas legais inconstitucionais e à colisão entre o princípio da separação de poderes e o princípio da constitucionalidade, concordo com a posição de André Salgado de Matos, que a resolução do problema deve ser feita através de cada caso em concreto, ou então, através de um processo de abstracção, onde à primeira vista, é possível detectar condições de preferência que levam à prevalência de um ou de outro princípio.
            Por fim, embora não tenha tido a oportunidade de enunciar ao longo da exposição, creio que, o recurso de amparo deveria ser consagrado na Constituição, de forma a tutelar não só os direitos fundamentais, como também para garantir aos cidadãos a possibilidade de recorrer directamente ao Tribunal Constitucional. Contudo, a possibilidade de recurso de amparo tem de ocorrer em última ratio, devendo, os tribunais comuns, em primeiro lugar, discutir a violação desse mesmo direito.

Bibliografia


ANDRADE, José Carlos Vieira de: Os direitos fundamentais na Constituição de 1976, 5º Edição, Coimbra, 2012.
BACHOF, Otto: Die Prüfungs, und dem bundeswidrigen Gesetz.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes, MOREIRA, Vital: Constituição da República Portuguesa anotada, Coimbra, 1993.
DUARTE, Maria Luísa: A teoria dos poderes implícitos e a delimitação de competências entre a união europeia e os estados-membros, Lisboa, 1997.
FREITAS, Dinamene de: O acto administrativo inconstitucional, Coimbra Editora, 2010.
HALL, Karl-Heinrich: Historische Anmerkungen zum Prüfungsrecht der Verwaltungsbeamnten gegenüber dem Gesetz, DVB1. 1965.
KRÜGER, Herbert: Grundgesetz und Kartellgesetgebung, Göttingen, 1950.
MATOS, André Salgado de: A fiscalização administrativa da constitucionalidade, Almedina, 2003.
MEDEIROS, Rui: A decisão de inconstitucionalidade. Os autores, o conteúdo e os efeitos da decisão de inconstitucionalidade da lei, Lisboa, 1999.
MIRANDA, Jorge: Manual de direito constitucional, Coimbra, 4º Ed., Tomo VI, 2001.
MIRANDA, Jorge: O regime dos direitos, liberdade e garantias, in Estudos sobre a Constituição, obra colectiva, III, Lisboa, 1979.
MORAIS, Carlos Blanco de: Justiça constitucional, Tomo I, 2º Edição, Coimbra, 2006.
OSSENBÜHL, Fritz: Normenkontrolle durch die Verwaltung, DV, 1969.
OTERO, Paulo: Legalidade e administração pública, Almedina, 2003.
RÖNITZ, Dieter: Nochmals, NJW, 1960.
SERRÃO, Tiago: A nulidade do acto inconstitucional, in Estudos de Direito Público, PLMJ, 1º Edição, Coimbra Editora, 2011.
SOUSA, Marcelo Rebelo de: O valor jurídico do acto inconstitucional, Lisboa, 1988.


[1] O. BACHOF, “Die Prüfungs, und dem bundeswidrigen Gesetz”, 198; também R. Medeiros, A decisão de inconstitucionalidadeOs autores, o conteúdo e os efeitos da decisão de inconstitucionalidade da lei, 149.
[2] Sobre o conceito de fiscalização ou controlo, Jorge Miranda, “Manual de direito constitucional”, VI, 48.
[3] André Salgado Matos, “A fiscalização administrativa da constitucionalidade”, 33.
[4] A doutrina alemã utiliza frequentemente esta expressão, mais concretamente a expressão “direito de exame”, para designar todo o compreensivo a que se chamou competência de fiscalização, K-H. Hall, “Historische Anmerkungen zum Prüfungsrecht der Verwaltungsbeamnten gegenüber dem Gesetz”, 559.
[5] D. Ronitz, “Nochmals”, 227.
[6] Na opinão de André Salgado de Matos, este argumente carece de fundamentação e utiliza formulação ambígua, Grund, “Die Stellung”, 1625.
[7] André Salgado Matos, “A fiscalização administrativa da constitucionalidade”, 167.
[8] André Salgado de Matos, “A fiscalização administrativa da constitucionalidade”, 489.
[9] Até porque actos administrativos inconstitucionais ou ilegais são nulos ou anuláveis e não se justificaria obrigar a administração a pratica-los para depois, posteriormente virem a ser impugnados contenciosamente ou até sendo alvo de resistência por parte dos cidadãos.
[10] [10] Jorge Miranda, “Manual de Direito Constitucional, inconstitucionalidade e garantia da constituição”, VI, 4º edição, página 229
[11] Neste sentido, acórdão nº304/85 do Tribunal Constitucional, de 11 de dezembro, in Diário da República, 2º série, de 10 de abril de 1986.
[12] André Salgado de Matos, “A fiscalização administrativa da constitucionalidade”, 323 e seguintes.
[13] Rui Medeiros, “A Decisão de Inconstitucionalidade: os autores, o conteúdo e os efeitos da decisão da inconstitucionalidade da lei”, cit., página 188.
[14] Ibidem, página 208.
[15] Ibidem, página 240.
[16] Jorge Miranda, “Manual de Direito Constitucional, inconstitucionalidade e garantia da constituição”, VI, 4º edição, página 232.
[17] Jorge Miranda, “Manual de Direito Constitucional, inconstitucionalidade e garantia da constituição”, VI, 4º edição, página 234.


Felícia Zgardan nº 28055

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