segunda-feira, 31 de outubro de 2016

O princípio da legalidade - algumas notas


I - Introdução

Administração Pública é a designação que, de uma forma simplista, se refere às diversas entidades encarregues da permanente prossecução dos interesses públicos bem como das necessidades gerais da colectividade, de segurança, cultura e bem-estar. A actividade desenvolvida pela Administração encontra-se, contudo, submetida a certos princípios justificados principalmente por necessidades de (a) justiça para os cidadãos; (b) garantia de segurança jurídica; (c) eficiência para a própria Admnistração.
Entre esses princípios encontram-se, a mero título exemplificativo: o princípio da prossecução do interesse público e da proteção dos direitos e interesses dos cidadãos; o princípio da boa administração; o princípio da igualdade; o princípio da proporcionalidade;e o princípio da legalidade, sendo este último aquele sobre o qual incidirá esta exposição.

II - Base Legal

O príncipio da legalidade possui uma dupla base legal já que se encontra positivado quer na Constituição, quer no Código de Procedimento Administrativo.
Na CRP está presente na primeira parte do artigo 266º./2 quando este nos informa de que: " Os órgãos e agentes administrativos estão subordinados à Constituição e à lei (...)".
Já no CPA está localizado no artigo 3º/1: " Os órgãos da Administração Pública devem atuar em  obediência  à  lei  e  ao  direito,  dentro  dos  limites  dos poderes  que  lhes  forem  conferidos  e  em  conformidade  com os respetivos fins. "

III - Evolução Histórica do Princípio

Seria errado considerarmos a ideia inerente ao princípio da legalidade como uma realidade histórica recente, especialmente se tivermos em conta de que na Grécia Antiga já a ideia de uma vinculação administrativa à legalidade estava presente, sendo esse assunto aflorado quer por Tucídides em referência à Oração de Péricles na sua História da Guerra do Peloponeso, quer por Aristóteles, quando este expressa a sua preferência por um "governo de leis" que não estaria assim constrangido pela arbitrariedade das figuras políticas.
Em Inglaterra a ideia de que o poder deveria respeitar o Direito está também presente desde muito cedo, expressa no "rule of law".
Mais tarde, os estados liberais vão também encarar a lei como expressão da vontade do povo/ e rei, tendo a base de legitimidade da actuação da Administração passado a provir desta mesma vontade, ficando assim essa actuação, que na altura, era sempre tendencialmente indesejada, racionalizada, e ficando estabelecida assim a linha de fronteira entre aquilo que era permitido à Administração e aquilo que lhe era vedado.
Apesar da sua antiguidade o princípio da legalidade foi continuando a evoluir, e assim no séc. XX, a vinculação da Administração ao Direito deixou de ser vista como um limite concreto de acção e passou antes a ser encarada simultaneamente como "o fundamento, o critério e o limite do agir administrativo" (Paulo Otero). Assim, à Administração já não é permitido realizar tudo aquilo que não for proibido por lei, passando a poder apenas fazer tudo aquilo para que a lei lhe atribua competência.

IV - Diversidade de vinculações

Contudo, nem toda a actividade da Administração pode ser reduzida à mera execução de regras absolutas e rígidas numa situação de "tudo ou nada", sendo que essa "legalidade total é inviável" (Marcello Caetano), pois por vezes é necessário proceder-se a uma ponderação e balanceamento de todos os valores e princípios concorrentes em jogo, e tendo em conta que muitas das actividades da Administração decorrem de um plano não jurídico também assim por vezes os diferentes valores pesados são extra-jurídicos.
Assim, torna-se possível a separação entre poderes vinculados, onde o grau de certeza e previsibilidade é muito superior, e os poderes discricionários onde é possível a escolha de uma solução dentro de um conjunto de várias outras igualmente possíveis e válidas, mas não sendo contudo aceitável uma atitude de indiferença face ao modo de prossecução do interesse público, devendo a procura da melhor administração possível ser uma constante. Daqui resulta uma previsibilidade da intervenção judicial deteriorada, estando, apesar disso, a actuação administrativa sujeita a dois juízos, (i) um juízo de legalidade, para averiguar da conformidade da conduta com a lei; (ii) e um juízo de mérito, feito sobre a eficiência da conduta.
Apesar da distinção referida, mesmo os poderes discricionários são até certo ponto vinculados, na medida em que só existem quando conferidos por lei e em que o fim do seu exercício é também fixado por lei.

V - Consequências da violação da vinculação

O não cumprimento do princípio da legalidade a que a Admnistração está adstrita pode dar origem quer à figura de inconstitucionalidade, quer à figura da ilegalidade.
No primeiro caso quando estamos perante um desrespeito directo e imediato em relação às normas presentes na Constituição.
Já o segundo caso configura-se quando se verifica uma actuação por parte da Administração que é contrária às normas jurídicas ordinárias, podendo contudo esta contrariedade assumir duas formas: (a) uma violação directa – realizando actividades que a lei proíbe ou não realizando as impostas pela lei; e (b) uma violação indirecta – onde é respeitada a letra da lei mas o objectivo prosseguido é um que se encontra por ela vedado – configurando-se assim uma fraude à lei.

VI – Particularidade própria do princípio da legalidade no ordenamento jurídico português

               Ainda que, como já foi referido, as raízes do princípio da legalidade sejam anteriores à corrente de ideias do liberalismo, com o advento desta última veio-se conferir uma nova essência ao mesmo.
A teoria da separação tripartida dos poderes políticos do Estado (legislativo, judicial e executivo) que então ficou em voga, tendo como principal objectivo evitar abusos de poder, afirmava que estando os diferentes poderes separados estes se iriam restringir mutuamente bem como prevenir a concentração de poderes em excesso nas mãos de uma só entidade, algo que poderia pôr em causa os direitos e a liberdade dos cidadãos por possibilitar uma vasta margem de manobra à Administração para intervir na vida dos particulares sem estar devidamente limitada por regras externas a si.
Tendo esta concepção sido largamente adoptada pela grande maioria dos Estados europeus isso implicou que as regras a que a Administração passou a estar sujeita por lei fossem agora elaboradas por uma entidade externa à mesma, a cargo do poder legislativo, existindo assim uma subordinação do poder executivo face ao poder legislativo, podendo falar-se numa “Administração condicionada” (Marcello Caetano).
Naturalmente, esta divisão tripartida dos poderes traria maiores garantias de segurança e liberdade para com os particulares. Contudo, em Portugal não se dá este caso, sendo uma situação quase única em toda a Europa. Por razões que se explicam principalmente através da evolução da Constituição Histórica de Portugal ( Melo Alexandrino) sempre houve alguma permissividade para o orgão do poder executivo poder também legislar, sendo esse facto admitido e positivado em 1945, passando o Governo, o mais importante orgão da Administração Pública, a poder legislar de forma ordinária através de decretos-lei. Esta herança, ao contrário do que se poderia pensar e para reprovação de alguns constitucionalistas não foi rejeitada, e encontra-se hoje consagrada na Constituição de 1976.
Sendo assim, constatamos que o princípio da legalidade, cujo propósito seria limitar a actuação da Administração é contornado pela mesma, na medida em que esta é também capaz de legislar, e está portanto numa posição onde pode ser ela própria a estabelecer as regras a que deve obedecer, nascendo assim uma “Administração condicionante”.
Qual o valor do princípio da legalidade então? Segundo Marcello Caetano, o valor da legalidade passa então a estar no requisito de generalidade que necessariamente se tem que encontrar nas leis, e consequentemente nos actos administrativos, onde a formulação dos preceitos é feita de forma impessoal e universal.
Através desta generalidade fica a Administração impossibilitada de exigir de uma pessoa em concreto determinada conduta que não possa ser exigida a qualquer outra pessoa que se encontre nas mesmas determinadas circunstâncias. Implicando também a verificação dessas mesmas circunstâncias que devem ser descritas de forma geral e abstracta na lei como pressuposto da exigência da referida conduta.

VII – Exemplo de aplicação do princípio da legalidade

               Podemos obter um exemplo de aplicação prática do princípio da legalidade ao analisar o Acordão do Supremo Tribunal Administrativo do processo 01187/05 de 07-03-2006.
               Neste processo, a Administração ordenou o despejo de um estabelecimento comercial a céu aberto, mas recorrendo para isso ao artigo 165º do Regulamento Geral das Edificações Urbanas onde na sua previsão são apenas mencionados “inquilinos e demais ocupantes de edificações ou partes das edificações utilizadas sem as respectivas licenças ou em desconformidade com elas”. Verifica-se que não existe portanto qualquer suporte textual no mencionado artigo para se proceder ao acto indicado. E, por outro lado, não é possível admitir-se a utilização do regime legal previsto para determinado tipo de casos a situações distintas, pois a Administração está vinculada a agir de acordo com o princípio da legalidade.
               Assim, e tendo em conta que não releva para a apreciação da legalidade dos actos decorridos a eventualidade de existir outro regime legal aplicável que não aquele onde a Administração baseia a sua actuação, declarou-se a acção não procedente.


Bibliografia:
·                  Caetano, Marcelo, “Manual de Direito Administrativo”, volume I, 1973, 10ª edição, Coimbra Editora;
·                  Amaral, Diogo Freitas do,“Curso de Direito Administrativo”, volume I, 2015, 4º Edição, Almedina;
·                  Otero, Paulo; “Manual de Direito Administrativo”, volume I, reimpressão da edição de 2013, Almedina, 2016;
·                  Alexandrino, José Melo, “Lições de Direito Constitucional”, volume II, AAFDL, 2015;



Miguel Romano – aluno nº 28159

Sem comentários:

Enviar um comentário