I - Introdução
Administração
Pública é a designação que, de uma forma simplista, se refere às diversas
entidades encarregues da permanente prossecução dos interesses públicos bem
como das necessidades gerais da colectividade, de segurança, cultura e
bem-estar. A actividade desenvolvida pela Administração encontra-se, contudo,
submetida a certos princípios justificados principalmente por necessidades de
(a) justiça para os cidadãos; (b) garantia de segurança jurídica; (c)
eficiência para a própria Admnistração.
Entre esses princípios
encontram-se, a mero título exemplificativo: o princípio da prossecução do
interesse público e da proteção dos direitos e interesses dos cidadãos; o
princípio da boa administração; o princípio da igualdade; o princípio da
proporcionalidade;e o princípio da legalidade, sendo este último aquele sobre o
qual incidirá esta exposição.
II - Base
Legal
O príncipio da
legalidade possui uma dupla base legal já que se encontra positivado quer na
Constituição, quer no Código de Procedimento Administrativo.
Na CRP está
presente na primeira parte do artigo 266º./2 quando este nos informa de que:
" Os órgãos e agentes administrativos estão subordinados à Constituição e
à lei (...)".
Já no CPA está
localizado no artigo 3º/1: " Os órgãos da Administração Pública devem
atuar em obediência à
lei e ao
direito, dentro dos
limites dos poderes que
lhes forem conferidos
e em conformidade com os respetivos fins. "
III - Evolução
Histórica do Princípio
Seria errado considerarmos a ideia inerente ao princípio da legalidade como
uma realidade histórica recente, especialmente se tivermos em conta de que na
Grécia Antiga já a ideia de uma vinculação administrativa à legalidade estava
presente, sendo esse assunto aflorado quer por Tucídides em referência à Oração
de Péricles na sua História da Guerra do Peloponeso, quer por Aristóteles,
quando este expressa a sua preferência por um "governo de leis" que
não estaria assim constrangido pela arbitrariedade das figuras políticas.
Em Inglaterra
a ideia de que o poder deveria respeitar o Direito está também presente desde
muito cedo, expressa no "rule of law".
Mais tarde, os
estados liberais vão também encarar a lei como expressão da vontade do povo/ e
rei, tendo a base de legitimidade da actuação da Administração passado a provir
desta mesma vontade, ficando assim essa actuação, que na altura, era sempre
tendencialmente indesejada, racionalizada, e ficando estabelecida assim a linha
de fronteira entre aquilo que era permitido à Administração e aquilo que lhe
era vedado.
Apesar da sua
antiguidade o princípio da legalidade foi continuando a evoluir, e assim no
séc. XX, a vinculação da Administração ao Direito deixou de ser vista como um
limite concreto de acção e passou antes a ser encarada simultaneamente como
"o fundamento, o critério e o limite do agir administrativo" (Paulo
Otero). Assim, à Administração já não é permitido realizar tudo aquilo que não
for proibido por lei, passando a poder apenas fazer tudo aquilo para que a lei
lhe atribua competência.
IV -
Diversidade de vinculações
Contudo, nem
toda a actividade da Administração pode ser reduzida à mera execução de regras
absolutas e rígidas numa situação de "tudo ou nada", sendo que essa
"legalidade total é inviável" (Marcello Caetano), pois por vezes é
necessário proceder-se a uma ponderação e balanceamento de todos os valores e
princípios concorrentes em jogo, e tendo em conta que muitas das actividades da
Administração decorrem de um plano não jurídico também assim por vezes os
diferentes valores pesados são extra-jurídicos.
Assim, torna-se
possível a separação entre poderes vinculados, onde o grau de certeza e
previsibilidade é muito superior, e os poderes discricionários onde é possível
a escolha de uma solução dentro de um conjunto de várias outras igualmente
possíveis e válidas, mas não sendo contudo aceitável uma atitude de indiferença
face ao modo de prossecução do interesse público, devendo a procura da melhor
administração possível ser uma constante. Daqui resulta uma previsibilidade da
intervenção judicial deteriorada, estando, apesar disso, a actuação
administrativa sujeita a dois juízos, (i) um juízo de legalidade, para
averiguar da conformidade da conduta com a lei; (ii) e um juízo de mérito,
feito sobre a eficiência da conduta.
Apesar da
distinção referida, mesmo os poderes discricionários são até certo ponto
vinculados, na medida em que só existem quando conferidos por lei e em que o
fim do seu exercício é também fixado por lei.
V -
Consequências da violação da vinculação
O não
cumprimento do princípio da legalidade a que a Admnistração está adstrita pode
dar origem quer à figura de inconstitucionalidade, quer à figura da
ilegalidade.
No primeiro
caso quando estamos perante um desrespeito directo e imediato em relação às
normas presentes na Constituição.
Já o segundo
caso configura-se quando se verifica uma actuação por parte da Administração
que é contrária às normas jurídicas ordinárias, podendo contudo esta
contrariedade assumir duas formas: (a) uma violação directa – realizando actividades
que a lei proíbe ou não realizando as impostas pela lei; e (b) uma violação
indirecta – onde é respeitada a letra da lei mas o objectivo prosseguido é um
que se encontra por ela vedado – configurando-se assim uma fraude à lei.
VI – Particularidade própria do
princípio da legalidade no ordenamento jurídico português
Ainda
que, como já foi referido, as raízes do princípio da legalidade sejam
anteriores à corrente de ideias do liberalismo, com o advento desta última veio-se
conferir uma nova essência ao mesmo.
A teoria da separação
tripartida dos poderes políticos do Estado (legislativo, judicial e executivo)
que então ficou em voga, tendo como principal objectivo evitar abusos de poder,
afirmava que estando os diferentes poderes separados estes se iriam restringir
mutuamente bem como prevenir a concentração de poderes em excesso nas mãos de
uma só entidade, algo que poderia pôr em causa os direitos e a liberdade dos
cidadãos por possibilitar uma vasta margem de manobra à Administração para
intervir na vida dos particulares sem estar devidamente limitada por regras
externas a si.
Tendo esta
concepção sido largamente adoptada pela grande maioria dos Estados europeus
isso implicou que as regras a que a Administração passou a estar sujeita por
lei fossem agora elaboradas por uma entidade externa à mesma, a cargo do poder
legislativo, existindo assim uma subordinação do poder executivo face ao poder
legislativo, podendo falar-se numa “Administração condicionada” (Marcello
Caetano).
Naturalmente, esta
divisão tripartida dos poderes traria maiores garantias de segurança e
liberdade para com os particulares. Contudo, em Portugal não se dá este caso, sendo uma situação quase única em toda a Europa.
Por razões que se explicam principalmente através da evolução da Constituição
Histórica de Portugal ( Melo Alexandrino) sempre houve alguma permissividade
para o orgão do poder executivo poder também legislar, sendo esse facto
admitido e positivado em 1945, passando o Governo, o mais importante orgão da
Administração Pública, a poder legislar de forma ordinária através de
decretos-lei. Esta herança, ao contrário do que se poderia pensar e para
reprovação de alguns constitucionalistas não foi rejeitada, e encontra-se hoje
consagrada na Constituição de 1976.
Sendo assim,
constatamos que o princípio da legalidade, cujo propósito seria limitar a actuação
da Administração é contornado pela mesma, na medida em que esta é também capaz
de legislar, e está portanto numa posição onde pode ser ela própria a
estabelecer as regras a que deve obedecer, nascendo assim uma “Administração
condicionante”.
Qual o valor
do princípio da legalidade então? Segundo Marcello Caetano, o valor da
legalidade passa então a estar no requisito de generalidade que necessariamente
se tem que encontrar nas leis, e consequentemente nos actos administrativos,
onde a formulação dos preceitos é feita de forma impessoal e universal.
Através desta
generalidade fica a Administração impossibilitada de exigir de uma pessoa em
concreto determinada conduta que não possa ser exigida a qualquer outra pessoa
que se encontre nas mesmas determinadas circunstâncias. Implicando também a
verificação dessas mesmas circunstâncias que devem ser descritas de forma geral
e abstracta na lei como pressuposto da exigência da referida conduta.
VII – Exemplo de aplicação do
princípio da legalidade
Podemos
obter um exemplo de aplicação prática do princípio da legalidade ao analisar o
Acordão do Supremo Tribunal Administrativo do processo 01187/05 de 07-03-2006.
Neste
processo, a Administração ordenou o despejo de um estabelecimento comercial a
céu aberto, mas recorrendo para isso ao artigo 165º do Regulamento Geral das
Edificações Urbanas onde na sua previsão são apenas mencionados “inquilinos e demais ocupantes de edificações
ou partes das edificações utilizadas sem as respectivas licenças ou em desconformidade com elas”. Verifica-se
que não existe portanto qualquer suporte textual no mencionado artigo para se
proceder ao acto indicado. E, por outro lado, não
é possível admitir-se a utilização do regime legal previsto para determinado
tipo de casos a situações distintas, pois a Administração está vinculada a agir
de acordo com o princípio da legalidade.
Assim, e
tendo em conta que não releva para a apreciação da legalidade dos actos
decorridos a eventualidade de existir outro regime legal aplicável que não
aquele onde a Administração baseia a sua actuação, declarou-se a acção não
procedente.
Bibliografia:
·
Caetano, Marcelo, “Manual de Direito Administrativo”,
volume I, 1973, 10ª edição, Coimbra Editora;
·
Amaral, Diogo Freitas do,“Curso de Direito Administrativo”, volume I,
2015, 4º Edição, Almedina;
·
Otero, Paulo; “Manual de Direito Administrativo”, volume I, reimpressão da edição de 2013, Almedina, 2016;
·
Alexandrino, José Melo, “Lições de Direito Constitucional”, volume II,
AAFDL, 2015;
Miguel Romano – aluno nº 28159
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