segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Princípios Constitucionais sobre Organização Administrativa

Interessa sobre a matéria da teoria geral da organização administrativa definir os princípios constitucionais que vigoram nessa matéria.
Sendo a Constituição portuguesa, uma Constituição programática, ou seja fornece diretrizes e princípios que devem ser seguidos, também dá indicações para o que deve ser a organização da Administração Pública. Esta matéria vem regulada no artigo 267.º n.º 1 e 2,

Artigo 267.º
Estrutura da Administração
 1. A Administração Pública será estruturada de modo a evitar a burocratização (1), a aproximar os serviços das populações (2) e a assegurar a participação dos interessados na sua gestão efectiva (3), designadamente por intermédio de associações públicas, organizações de moradores e outras formas de representação democrática.
2. Para efeito do disposto no número anterior, a lei estabelecerá adequadas formas de descentralização e desconcentração administrativas, sem prejuízo da necessária eficácia e unidade de acção da Administração e dos poderes de direcção, superintendência e tutela dos órgãos competentes. (4)(5)

Resultam deste artigo 5 princípios constitucionais sobre a organização administrativa, sendo eles:
1) Princípio da desburocratização; 
Significa que a Administração Pública deve ser organizada e deve funcionar em termos de eficiência e de facilitação da vida aos particulares, sendo por isso eficientes na forma como prosseguem os interesses públicos e que facilitem a vida aos particulares em tudo quanto a Administração lhes exige ou que lhes preste.
2) Princípio da aproximação dos serviços às populações;
Está, como o nome indica, relacionado com o facto de a Administração Pública dever estar estruturada de forma a que os seus serviços se encontrem o mais possível junto das populações que servem, estamos a falar no entanto de uma aproximação tanto geográfica como humana, nos sentido em que para além de geograficamente devem estar também em contacto com as populações visando a atender aos seus problemas e questões.
3) Princípio da participação dos interessados na gestão da Administração Pública;
Este princípio define que as populações devem interferir na vida da Administração, não devendo apenas ser ouvidas durante as eleições dos respectivos órgãos, devem também estar envolvidas no próprio funcionamento quotidiano, podendo nomeadamente interferir na tomada de decisões administrativas.Isto leva por isso à criação de esquemas estruturais e funcionais de participação dos cidadãos no funcionamento da Administração.
4) Princípio da descentralização
A descentralização é o sistema em que a função administrativa esteja confiada não apenas ao Estado, mas também a outras pessoas colectivas territoriais, A constituição toma assim partido a favor de uma orientação descentralizada. Não existindo assim o direito de prosseguir uma política centralizadora
5) Princípio da desconcentração 
A desconcentração é o sistema em que o poder decisório se reparte entre o superior e um ou vários órgãos subalternos, traduzindo-se num processo de descongestionamento de competência. A constituição não fornece no entanto a forma como a desconcentração deve ser efectuada podendo então ser legal ou sobre a forma de delegação de poderes.
 Em suma, a estrutura da Administração está condicionada por princípios presentes na constituição que visam a garantir a defesa dos interesses públicos.

FREITAS DO AMARAL,  diogo «Curso de Direito Administrativo», volume I, 4ª edição, Almedina, Coimbra, 2015.
Tomás Antunes nº28236 2ºano Turma B Subturma 14

Administração e Moral

A título introdutório, percorrerá a presente exposição quatro questões:
1-     A circularidade administrativa e a separação de poderes;
2-     A sociedade massificada e o administrador autómato;
3-     A administração no holocausto: a eficiência e o crime;
4-     Breve referência à administração salazarista;
           
           
1-    Admitindo, na esteira dos professores Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos, que 1) a Administração Pública tem por função satisfazer as necessidades colectivas em cada momento seleccionadas mediante prévia opção constitucional e legislativa através da produção de bens e prestação de serviços; relembrando que 2) o Governo é constitucionalmente definido como cabeça de dragão dessa mesma Administração (182ºCRP) e que 3) o Governo detém para além de competência administrativa, competência legislativa nos termos do art.198º da CRP, infere-se que 4) é do poder do Governo, órgão legitimado, definir legalmente e executar através da Administração continuadamente o interesse público sob o tecto das disposições constitucionais.
            Ora, cabendo ao mesmo órgão definir e executar esta função, verifica-se aquilo que podemos chamar de circulo da administração: delegando a sua vontade na Assembleia da República e no daí retirado Primeiro-Ministro que a representa, a sociedade portuguesa coroa por razão de maioria a ideologia a pautar a actividade política e administrativa do seu país, definindo e executando assim o seu próprio interesse, que por sua vez foi formado sob a execução do interesse público definido e executado continuamente nas eleições anteriores.
            Esta circularidade consubstancia-se na formação da sociedade por si mesma e advém do grande peso dos sectores da saúde, segurança e educação na formação de uma consciência política decisiva para a condução de um país.
            Observe-se particularmente o impacto social advindo da actuação do Ministério da Educação, a que cabem as políticas executivas nesse sector, a desenvolver por decreto-lei a partir das bases emanadas da Assembleia da República (164ºi) – desde a elaboração de programas de ensino e matérias a contemplar à delineação do funcionamento dos exames nacionais de acesso ao ensino superior. E atente-se a sua interdependência com o orçamento de Estado, também ele proposto pelo Governo.
            É sabido que a actuação da Administração é perseguida pelo princípio da legalidade, só podendo, na simplificação de João Caupers, agir com fundamento na lei e de acordo com os seus limites. A lei concede-lhe, no entanto, margens de actuação: ora na apreciação de situações de facto, preenchendo, lecciona-nos Sérvulo Correia, conceitos indeterminados [margem de livre apreciação], ora na escolha entre várias alternativas de actuação juridicamente admissíveis [discricionariedade].

            Se a prossecução do interesse público é deixada em aberto para a definição política sob tecto das disposições constitucionais, e integra o poder legislativo o poder de revisão constitucional, este interesse encontra-se aberto às variações socioeconómicas e ideológicas. E se, por um lado, isso é bom, permitindo uma constante actualização do texto legal, pode por outro tornar-se numa fragilidade perante o triunfo de ideais perigosos para o Estado de Direito.
            Tenhamos como exemplo desta susceptibilidade de mudança do interesse público a revisão de 1986, que veio remover o cunho socializante da Constituição de 1976 trazendo, na letra do professor Gomes Canotilho, uma mutação constitucional. Alterou-se o então artigo 83º relativo à proibição da privatização das empresas directamente nacionalizadas pós-25 de Abril, para se passar a permitir essa reprivatização desde que não fosse além dos 49% do capital social, de maneira a finalmente abolir o artigo na revisão de 1989. A propósito reflecte o professor Gomes Canotilho sobre a legalidade desta alteração.

            O dito reconduz-nos a uma separação de poderes um tanto quanto movediça, uma vez que é perfeitamente praticável a intromissão de um poder na esfera do outro. E mais verifique-se que o princípio da legalidade como primado do bloco legal [a  Constituição,  a  lei,  o  regulamento,  os  direitos  resultantes  de contrato  administrativo  e  de  direito  privado  ou  de  acto  administrativo constitutivo de direitos], de seus corolários preferência e reserva de lei, se faz acompanhar de um executivo que produz lei (art.112ºCRP).                              
            Não sedimentando a teoria de Montesquieu, vem o professor Freitas de Amaral abrigar os actos políticos – aqueles que, brotando da Administração, correspondem materialmente ao exercício da função política – nas excepções ao princípio da legalidade, dizendo-os não susceptíveis de recurso contencioso perante os tribunais administrativos, ressalvando embora o seu dever de obediência à lei, ainda que não susceptível de sanção legal. Seguimos aqui o entendimento do professor Marcelo Rebelo de Sousa quando este diz nunca caber à Administração a função política, esta primária e aquela secundária.
                       
2-      Verificado o papel da Administração na definição e formação do interesse público a prosseguir por si e apontada a susceptibilidade de adaptação constitucional a esse mesmo interesse, debrucemo-nos sobre a relação entre a mentalidade técnico-científica que hoje impera e a abstenção ética na actuação dos delegados administrativos, e depois sobre o perigo de um administrador autómato.

            Robenstein fala-nos de uma racionalidade técnica, fruto da cultura que enfatiza a mentalidade analítico cientifica, numa sociedade crente no progresso das ciências e de tónica profissionalizante – quase como a profetizava Aldous Huxley no Brave New Word, feita de indivíduos como os representava Charlie Chaplin em Tempos Modernos.      

3-      Esta caracterização não destoa dos pressupostos apontados por Hannah Arendt para a eclosão da banalidade do mal, no período do holocausto: da massificação social cresceria uma multidão incapaz de fazer julgamentos morais, pronta a cumprir e aceitar ordens sem as questionar, numa “obediência de cadáver”.
            Enquanto repórter ao serviço da New York Times no Julgamento de Eichmann, Arendt repararia com alguma perplexidade que o administrador do programa de solução final judaica não era um monstro, mas um burocrata que renunciara a pensar.
            O Terceiro Reich potenciou aquilo que Adams Balfour trataria por “Administrative Evil”, resultado de uma inversão moral. A propaganda hitleriana conseguiu, num período de choque nacional que abriria ao chanceler a previsão do artigo 48º da Constituição de Weimar, apresentar o mau como algo bom e construtivo. Por debaixo desta ideia, o agente seguia convicto da positividade da sua acção, dispensando a noção das consequências dos seus actos ou convencido de que as suas actuações se justificavam pelo bem maior.
            A propósito da convicção do bem maior, repare-se que esta subversão foi tanto moral quanto legal, visto que Hitler legislou e executou um interesse comum a que a sociedade aderiu. O Conselho de Ministros nazi transforma-se num órgão burocrático subserviente ao líder, que controla a máquina  estatal e cria um aparelho paralelo que multiplica e confunde as esferas de decisão em muitas áreas da administração, com muitos funcionários. Depois de legislar o antisseíssimo, pelas hoje conhecidas Leis de Nuremberg, restava executá-lo. E ensina-nos Rubenstein que nenhuma lei contra o genocídio ou a desumanização foi violada pelos que perpetraram o holocausto, tendo sido tudo administrativamente aprovado por uma autoridade legitimada, enquanto programas-chave eram iniciados de dentro da burocracia. Estes burocratas cumpriram assim deveres enquadrados numa ética consistente com as normas de profissionalismo e racionalidade técnica.
            Tendo Eichmman (assustadoramente) agido em conformidade legal, coube ao tribunal julga-lo por crimes contra a humanidade e contra os judeus. Após este julgamento, prosseguiu a filósofa judia especificando que o mal deixou neste período de ser reconhecido porque perdeu a sua característica por excelência, a tentação, para se consubstanciar no conformismo hierárquico, na abstenção de juízo moral e político responsável e no cumprimento e execução de ordens superiores.

4-      Entre nós, também a administração salazarista prosseguiu um interesse público não tão comum quanto isso. Numa fraca sociedade civil, como a disse António Costa Pinto, ascende uma escassíssima elite social e administrativa letrada, com centros de formação universitária elitistas e de acesso muito limitado, pautados por um conservadorismo católico e monárquico.
            O auto-intitulado presidente do conselho concentraria em si a decisão até sobre áreas técnicas, cortando completamente a margem de decisão autónoma dos ministérios. Era, assim, uma administração pública controlada, tal como a hitleriana, pois instrumento fundamental do poder político ditatorial.

           
            Percorrido aquilo que de mais horrendo foi concretizado na Administração Pública, resta-nos constatar que o administrador executou em tempos directrizes de tortura e de assassinato; mas que ainda hoje executa prisioneiros em Estados que admitem a pena de morte e financiamentos militares, entre outro tipo de atrocidades sabidas como tal, já num ambiente de moral não subvertida, apenas violada.

            BIBLIOGRAFIA
AMARAL, Diogo Freitas. – Curso de Direito Administrativo, Volume I 4-ª Edição. Coimbra: Edições Almedina, 2015;
REBELO DE SOUSA, Marcelo; SALGADO DE MATOS, André. “Direito Administrativo Geral- Tomo I- Introdução e Princípios Fundamentais”. 3ªed. Dom Quixote, 2008;
           
            WEBGRAFIA
            The Problem of Administrative Evil in a Culture of Technical Rationality - Guy B. Adams[http://www.iupui.edu/~spea1/V502/Orosz/Units/Sections/u2s3/adams_admin_evil_public_integrity_su_2011.pdf]
            O império do professor: Salazar e a elite ministerial do Estado Novo (1933-1945)
[http://analisesocial.ics.ul.pt/documentos/1218725415V6nUO2ti9Hs64TS4.pdf]
            À DESCOBERTA DO FUNDAMENTO CONSTITUCIONAL DO DIREITO ADMINISTRATIVO GLOBAL - Francisco Abreu Duarte [http://e-publica.pt/pdf/artigos/adescoberta.pdf]

            
Beatriz Lourenço

PRINCÍPIO DA PROSSECUÇÃO DO INTERESSE PÚBLICO

PRINCÍPIO DA PROSSECUÇÃO DO INTERESSE PÚBLICO

A administração pública e o direito administrativo só podem compreender-se com recurso à ideia de interesse público, motivo pelo qual este é considerado como o norte da administração pública, funcionado como princípio orientador da actuação administrativa.
Marcado por um conteúdo variável e pela carência de uma forma rígida e inflexível, o conceito de interesse público reveste-se de um elevado grau de indeterminação, o qual tentarei concretizar recorrendo à doutrina e legislação existente.
Num primeiro contacto com a noção de interesse público, este parece traduzir uma exigência – a exigência de satisfação das necessidades colectivas e a consciencialização do interesse geral de uma determinada comunidade – para atingir o bem-comum.
O interesse público primário é aquele cuja definição compete aos órgãos governativos do Estado no desempenho das funções política e legislativa. Os interesses públicos secundários são aqueles em que a definição é feita pelo legislador, mas cuja satisfação cabe à Administração Pública no desempenho da função administrativa. É deste papel da Administração Pública, como função secundária do Estado, que resulta a sua subordinação ao princípio da legalidade e a obrigatoriedade de prosseguir o interesse público, tal como definido pela Constituição da República Portuguesa, e que se consubstancia no denominado princípio da prossecução do Interesse Público.
O princípio da prossecução do interesse público constitui um dos mais importantes limites da margem de livre decisão administrativa, assumindo um duplo alcance:
  • A Administração só pode prosseguir o interesse público, estando consequentemente proibida de prosseguir, ainda que acessoriamente, interesses privados;
  • A Administração só pode prosseguir os interesses públicos especificamente definidos por lei, para cada concreta actuação administrativa normativamente habilitada, não lhe sendo atribuído qualquer papel na escolha dos interesses a prosseguir.

Do exposto se percebe que este princípio tem numerosas consequências práticas, actuando como delimitador das atribuições das pessoas colectivas administrativas, uma vez que apenas o interesse público definido por lei pode constituir fundamento à prática de qualquer acto administrativo, pelo que a falta do mesmo pressupõe um acto ilegal. Assim, uma actuação administrativa que prossiga interesses privados ou interesses públicos alheios à finalidade normativa, é ilegal e está viciada de desvio de poder, o que acarretará a sua invalidade.
Estas conclusões são suportadas legalmente pelo artigo 4.º do CPA, que dispõe que “Compete aos órgãos da Administração Pública prosseguir o interesse público, no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos.”. Neste sentido, ou o acto administrativo prossegue o interesse público e é válido, ou não há prossecução do interesse público e foi violado o artigo 266.º/1 da CRP. A importância deste princípio resulta claramente da consequência que a lei comina para a prática pela administração pública de um acto administrativo que não prossiga o interesse público. Assim, quando estejam em causa actos praticados com desvio de poder para fins de interesse privado, o acto é nulo (161.º, n.º 2 alínea e) do CPA), não produzindo quaisquer efeitos jurídicos, sendo a nulidade invocável a todo o tempo e por qualquer interessado, nos termos do artigo 162.º do CPA.
Percebendo de forma geral o que constitui o interesse público e a base legal por detrás do princípio, surge ainda outro problema: saber o que sucede quando a Administração Pública visa prosseguir o interesse público, mas, no entanto, não o faz da melhor maneira.
 Poderá dizer que se trata de uma consequência do princípio da prossecução do interesse público (princípio/dever da boa administração), que é um princípio jurídico imperfeito, uma vez que não existe maneira de os tribunais administrativos controlarem se a Administração Pública prosseguiu o interesse público da melhor maneira. Isto é, embora haja normas constitucionalmente consagradas em nome do interesse público não se tem mostrado possível anular um acto administrativo com fundamento na violação do princípio da boa administração, porquanto a administração goza de uma ampla margem de decisão quanto ao modus faciendi da sua prossecução.
Existe uma divergência doutrinária neste aspecto. Alguns autores defendem que é possível controlar a boa administração e outros negam esta capacidade, tendo como fundamento o facto de não haver um controlo judicial efectivo.
No entanto, isto não significa que a Administração não esteja sujeita ao dever de uma boa administração. Esta tem a obrigação de prosseguir o interesse público adoptando, em relação a cada caso concreto, as melhores soluções possíveis, do ponto de vista administrativo. Assim, em todos os casos em que a lei não define de forma complexa e exaustiva o interesse público, compete à Administração interpretá-lo, sempre dentro dos limites legais.
Este princípio de boa administração deve ser entendido como um dever e não como um direito, podendo apenas ser um direito para os cidadãos e um dever para a Administração Pública.

O princípio da boa administração está em tudo ligado ao princípio da prossecução do interesse público e ambos se relacionam dinamicamente com o princípio do respeito pelos direitos e interesses legítimos dos particulares estando ambos presentes inclusive nos mesmos artigos: 266.º/1 da CRP e 4.º do CPA. 

Bibliografia:
REBELO DE SOUSA, Marcelo; SALGADO DE MATOS, André. “Direito Administrativo Geral- Tomo I- Introdução e Princípios Fundamentais”. 3ªed. Dom Quixote, 2008;

Rute Martins nº28183
Turma B Subturma 14

Princípio da Legalidade

Princípio da legalidade

Na época moderna, marcada pelo Estado de Direito, verificamos uma submissão da Administração ao direito. Esta relação, para o Professor João Caupers, abarca dois sentidos: um primeiro, em que não poderíamos chamar Estado de Direito sem estar presente a ideia de direito e, um segundo, em que o Estado, mesmo sendo o maior gerador de direito continua vinculado a respeitá-lo. É desta submissão que se concretiza o princípio da legalidade, objeto desta exposição.

O princípio da legalidade democrática surge na sequência da Revolução Francesa e da difusão dos seus ideias pelo mundo, nomeadamente, o princípio da separação de poderes e o princípio de lei como vontade popular. A legalidade democrática manifesta-se como uma reação ao Estado Liberal que se caracterizava pela inconsistência em matéria de leis pois o monarca tinha o poder de afastar as leis aprovadas nas assembleias, ou seja, leis representativas da vontade popular.
Este é um dos princípios primordiais do Direito Administrativo e é também um dos princípios mais importantes nos países democráticos. Em Portugal está expresso na Constituição da República Portuguesa (CRP), nos artigos 2.º e 266.º e, ainda, no Código de Procedimento Administrativo (CPA), no artigo 3.º.

Concretamente, este é o princípio segundo o qual “os órgãos e os agentes da Administração Pública somente podem agir com fundamento na lei e dentro dos limites por ela estabelecidos”[1].

Podemos destacar duas funções a este princípio. Por um lado, uma função que assegura a supremacia do poder legislativo sobre o poder administrativo, destacando aqui as duas aceções do princípio da legalidade: positiva e negativa. A aceção positiva releva a necessidade de fundamento legal ou precedência da lei. A aceção negativa é aquela segundo a qual os órgãos e agentes administrativos não podem praticar atos que contrariem a lei. Por outro lado, destaca-se uma função que visa garantir os direitos e interesses dos particulares, daí a administração pública ser controlada pelos tribunais administrativos.

Com o princípio da legalidade verifica-se uma subordinação jurídica que não só vincula os órgãos e agentes da administração como também os particulares.

O Professor Marcelo Rebelo de Sousa apresenta duas dimensões desta subordinação jurídica, sendo elas: o impedimento da administração que contrarie o direito vigente – preferência da lei e a imposição de a atuação administrativa ter um fundamento jurídico, mesmo que não seja contrária à lei. A esta norma é reservada as atuações administrativas possíveis – reserva da lei. Por sua vez, o professor distingue a reserva da lei especificando-a de duas maneiras: por um lado, “exprime a necessária anterioridade do fundamento jurídico-normativo da atuação administrativa – precedência da lei”[2] e, por outro, “exprime a necessidade de o fundamento jurídico-normativo possuir um certo grau de pormenorização que permita antecipar a atuação administrativa – reserva da densificação normativa”[3].

Quanto à preferência da lei o Professor Marcelo Rebelo de Sousa atribui um sentido proibitivo pois esta proíbe as atuações que sejam contrárias à lei e em caso de conflito entre atos administrativo e lei, esta prevalece. No entanto, o professor faz aqui uma ressalva ao afirmar que será mais correto dizer “bloco de legalidade”[4] visto que a lei perdeu a centralidade que outrora detinha deixando de ser a única fonte de direito, tal como consta no artigo 3º do CPA: “à lei e ao direito”. O Professor destaca como fontes a Constituição e o CPA, mas também o Direito Internacional, o Direito Comunitário, as Leis Ordinárias, entre outras. O Professor João Caupers destaca ainda os princípios gerais.

Esta ideia de “bloco de legalidade” desperta alguns problemas como, por exemplo, o conflito de normas dentro do “bloco de legalidade”. Para a resolução deste problema não basta atendermos à hierarquia das normas pois também dependerá do caso concreto. Relativamente aos atos administrativos que contrarie o “bloco de legalidade”, estes são ilegais.

No que respeita à reserva da lei já referi que significa que os atos administrativos têm de estar fundamentados no “bloco de legalidade”, têm de ter por base um fundamento democrático, ou seja, têm de garantir a sujeição da função administrativa à vontade popular e, ainda, um fundamento garantístico, isto é, têm de certificar a previsibilidade das atuações dos poderes públicos.

Falta, ainda, explicar a distinção feita pelo Professor à reserva da lei, isto é: à precedência da lei e à reserva da densificação normativa.

Quanto à primeira (precedência da lei), é importante destacar a tese da precedência total da lei. Esta é uma tese que encontra muitos seguidores em Portugal, entre eles: Diogo Freitas do Amaral, Jorge Miranda, José Gomes Canotilho, Blanco Morais, Maria Lúcia Cabral, entre outros. A defesa de uma precedência total da lei é feita no sentido de uma “Precedência de uma norma democrático-representativamente legitimada e suficientemente densificada”[5], ou seja, segundo esta tese “nenhum ato da administração, em qualquer esfera da sua atividade, poderia deixar de se fundamentar na lei”[6].

Relativamente à segunda (reserva da densificação normativa), já referi que está relacionado com o grau de pormenorização da norma, isto é, requer que haja uma consistência normativa porque se não se verificar essa consistência pode, no limite, permitir à administração atuar sem restrições. O grau de consistência exigido pode variar consoante seja uma norma que trate de direitos, garantias e liberdades ou uma norma que trate de administração neutra. Caso não se verifique a consistência necessária a norma passa a ser inconstitucional por violar o princípio da reserva da lei.

Por fim, é necessário ainda referir as exceções ao princípio da legalidade, sendo estas: os atos políticos, a discricionariedade e o estado de necessidade. Na visão do Professor Marcelo Rebelo de Sousa nem os atos políticos, nem a discricionariedade fazem parte das exceções ao princípio em questão pois o Professor entende que os atos políticos não são abrangidos pela atividade administrativa e a discricionariedade representa uma modalidade do princípio e não uma exceção ao mesmo. Quanto ao estado de necessidade, este refere-se à circunstância excecional que modifica um comportamento tornando-o lícito sendo este, em princípio, ilícito. O professor Diogo Freitas do Amaral discorda destas exceções. Tanto o Professor João Caupers como o Professor Marcelo Rebelo de Sousa concordam com a visão do estado de necessidade como exceção ao princípio da legalidade.



Bibliografia:
  1. AMARAL, Diogo Freitas do. Curso de Direito Administrativo, Volume I. 4º ed. Edições Almedina, S.A, 2015.
  2. SOUSA, Marcelo Rebelo de.; MATOS, André Salgado de. Direito Administrativo Geral, Tomo I, Introdução e Princípios Fundamentais. 3º ed. Dom Quixote, 2008.
  3. CAUPERS, João. Introdução ao Direito Administrativo. 10º ed. Âncora Editora, 2009.



Rute Fernandes Delgado, Nº 28068
2º ano, subturma 14


[1] CAUPERS, João. Introdução ao Direito Administrativo. 10º ed. Âncora Editora, 2009. P. 44.
[2] SOUSA, Marcelo Rebelo de.; MATOS, André Salgado de. Direito Administrativo Geral, Tomo I, Introdução e Princípios Fundamentais. 3º ed. Dom Quixote, 2008. P. 153.
[3] SOUSA, Marcelo Rebelo de.; MATOS, André Salgado de. Direito Administrativo Geral, Tomo I, Introdução e Princípios Fundamentais. 3º ed. Dom Quixote, 2008. P. 153.
[4] SOUSA, Marcelo Rebelo de.; MATOS, André Salgado de. Direito Administrativo Geral, Tomo I, Introdução e Princípios Fundamentais. 3º ed. Dom Quixote, 2008. P. 157.
[5] SOUSA, Marcelo Rebelo de.; MATOS, André Salgado de. Direito Administrativo Geral, Tomo I, Introdução e Princípios Fundamentais. 3º ed. Dom Quixote, 2008. P. 167.
[6] SOUSA, Marcelo Rebelo de.; MATOS, André Salgado de. Direito Administrativo Geral, Tomo I, Introdução e Princípios Fundamentais. 3º ed. Dom Quixote, 2008. P. 157.

Presunção de culpa de autarquia local por omissão de dever de vigilância

Neste post irei abordar sumariamente alguns pontos da análise feita ao Acordão do STA, de 23 de Fevereiro de 2012, que se insere na linha de outros acórdãos sobre a (presunção de) culpa das autarquias locais, recorrendo principalmente ao presente acordão e às anotações e análise feitas pela Assistente Convidada Mariana Melo Egídio no e-book "Responsabilidade Civil Extracontratual das Entidades Públicas: Anotações de Jurisprudência: Anotações de Jurisprudência.
Importa como nota informativa prévia referir que este caso foi abordado ainda à luz do Decreto nº 48 051, de 21 de Novembro de 1967.

O acórdão em análise diz respeito ao recurso da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) do Porto, que procedeu a ação em julgado, condenando o município de Gondomar a pagar à Autora, a título de responsabilidade civil extracontratual, o valor de 5.071,54 euros relativos aos danos já contabilizados e ainda a quantia se viesse a apurar em sede de execução de sentença relativamente aos danos que não fossem passíveis de ser apurados, derivados do rebentamento da conduta de água integrada na rede de abastecimento da qual o município era titular.
A Autora sofreu danos respectivos à destruição de um muro de suporte em betão armado e da vedação em rede que servia de divisão com terreno contíguo; do portão de acesso às traseiras do edifício industrial; além dos danos nos materiais armazenado, tudo isto consequência do rebentamento da conduta de água que provocou uma inundação nas suas instalações.
Estamos assim perante um caso de responsabilidade civil extracontratual de pessoa coletiva pública, neste caso de um município[1], definido pelo professor Diogo Freitas do Amaral como sendo a autarquia local que visa a prossecução de interesses próprios da população residente na circunscrição concelhia, mediante órgãos representativos por ela eleitos.Importa ainda 
relembrar que as autarquias locais foram, mesmo num período de “irresponsabilidade do Estado”, consideradas como responsáveis pelos danos por elas causados: o princípio da irresponsabilidade aplicava-se apenas ao Estado, como entidade soberana, e não a pessoas colectivas menores, como salienta o professor. Por conseguinte seria então importante verificar os pressupostos típicos[2] da existência de uma situação de responsabilidade civil extracontratual subjetiva, com ênfase na ilicitude do facto e na culpa do agente.
Este é considerado o tipo mais frequente de responsabilidade civil da Administração, e no acórdão em análise, o STA convocou a responsabilidade civil no âmbito do Código Civil, a título de direito subsidiário, apesar das diferenças fundamentais entre estas duas regulamentações. Todavia, podemos concluir, tal como salienta o Professor Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos que, antes de recorrer ao Direito Civil, se impõe atender aos casos análogos de Direito Administrativo, aos princípios gerais de Direito Administrativo e só depois aos princípios gerais de Direito, procurando que qualquer remissão para o Direito Civil seja orientada à luz das especificidades da actividade administrativa.[3]

Aferição da legitimidade passiva


Uma das primeiras questões prévias abordadas pela assistente Mariana Egídio, colocadas no acórdão referido, prende-se com quem, em sede administrativa comum, deveria ter sido demandado (aferição da legitimidade passiva).  Ora esta questão debruçava-se sobre três hipóteses: o município de Gondomar, proprietário da rede de distribuição de água, o consórcio que executava o contrato de empreitada para duplicação da conduta ou a empresa seguradora para a qual o município transferira, por meio de contrato de seguro, a sua responsabilidade por danos causados a terceiros em consequência de inundações provocadas por ruptura de condutas de água.
O decidido pelo acórdão em análise, e contrariamente às pretensões do município, foi que a responsabilidade pertencia ao município de Gondomar, contra o qual a ação foi corretamente proposta, 
nos termos do artigo 10.º, n.º 1, do CPTA , reforçado pelo artigo 11.º, nº 2 do mesmo diploma. Está aqui em causa uma omissão de uma pessoa coletiva menor (município) ao qual seria exigível um dever de vigilância das condutas, sendo então a autarquia local a "parte na relação material controvertida".
E porque não o consórcio ou a empresa seguradora?
Ora, quanto ao consórcio, a parte na relação controvertida continua a pertencer ao município, em cujo património se integrava a rede de distribuição da água, enquanto que o consórcio apenas estava responsável pela execução da obra.
Já a empresa seguradora, 
relativamente à qual a responsabilidade fora transferida por contrato de seguro, apenas se justificaria a título de intervenção principal nos termos do artigo 320º, alínea a) do Código de Processo Civil (subsidariamente aplicável, como anteriormente referi), e que refere e passo a citar: "Estando pendente uma causa entre duas ou mais pessoas, pode nela intervir como parte principal: Aquele que, em relação ao objeto da causa, tiver um interesse igual ao do autor ou do réu, nos termos dos artigo 27.º e 28.º."

Pressupostos da Responsabilidade Civil da Função administrativa

Tendo em conta que estava sem dúvida em causa uma actuação da Administração ao abrigo de normas de Direito Público e no exercício da função administrativa, ou seja, no âmbito da gestão pública, importa agora averiguar os pressupostos, que estiveram na origem desta responsabilidade civil da função administrativa por facto ilícito e culposo.
Assim, citando a resolução do Acordão haverá lugar indemnização por parte da CM de Gondomar à Autora se esta: 1) violou culposamente os deveres de 
zelar pela manutenção, segurança e modo de funcionamento da rede de distribuição de água de que é titular por forma a que dela não resultasse perigo (2) que foi essa violação a causar o acidente e (3) que dele resultaram os danos.
Cumpre salientar que para a assistente Mariana Egídio, não houve um destaque devido no acordão em causa, referente à omissão e não ação por parte da autarquia local. Em Direito Administrativo, um dos pressupostos que fundamenta a obrigação de indemnizar é exatamente o facto voluntário que tanto pode consistir numa ação, numa abstenção ou numa omissão.
Tal como refere o professor Antunes Varela, "facto voluntário significa apenas, no caso presente, facto objectivamente controlável ou dominável pela vontade. Para fundamentar a responsabilidade civil basta a possibilidade de controlar o acto ou a omissão; não é necessária uma conduta predeterminada"[4], logo, no caso, o município tinha a possibilidade de ter controlado o estado das condutas de água, se as tivesse fiscalizado corretamente, verificando-se aqui o carácter voluntário do facto.

Art. 486º do C.C - As simples omissões dão lugar à obrigação de reparar os danos, quanto, independentemente dos outros requisitos legais, havia, por força da lei ou de negócio jurídico, o dever de praticar o acto omitido

A averiguação sobre se o facto omissivo em causa se assumia juridicamente relevante a apto a fundar um dever de indemnizar, prende-se já com a verificação de outro requisito, que é a ilicitude. Se existia um dever de atuação, e se este não foi prosseguido, em principio estamos perante uma conduta ilícita.
O acórdão em análise veio concluir que a ilicitude em regra geral, aparece sempre ligada à culpa, então para que a conduta ilícita possa ser relevante, estes dois elementos devem estar interligados.
Neste aspecto foi aplicado o art. 493 nº1: Quem tiver em seu poder coisa móvel ou imóvel, com o dever de a vigiar, e bem assim quem tiver assumido o encargo da vigilância de quaisquer animais, responde pelos danos que a coisa ou os animais causarem, salvo se provar que nenhuma culpa houve da sua parte ou que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua”, como fundamento para a vigilância das condutas que estavam a encargo da Ré. Este artigo  refere -se à culpa, mas abrange, também a ilicitude e ainda a causalidade.[5]
Os argumentos inovados pela jurisprudência para a não aplicação deste artigo referiam-se ao facto do art.4º do Decreto 48051 fazer remissão para o art. 287º do CC mas não contemplar remissões para o art. 493º.
Porém, analisando tanto o  Acórdão do STA de 29.04.1998, processo n.º 3646323- “os pressupostos da responsabilidade extracontratual, por actos de gestão pública, são os mesmos que a lei civil consagra para aquela responsabilidade decorrente de actos de gestão privada." como o o Acórdão n.º 045831, “não aplicar o nº 1 do artigo 493º conduziria a um tratamento desigual, sem motivo plausível, em matéria de prova dos entes públicos e dos particulares, no domínio da responsabilidade civil”, tal como o já conhecido art.10º do C.C quanto à integração de lacunas facilmente se pode concluir que é plausível a convocação do artigo 493º no caso.
Está assim em causa uma ilicitude que culminou na ofensa de direitos da proprietária lesada, a omissão por parte do municipio com o dever de fiscalização, que entre outros implicou a violação do direito de propriedade de terceiros.
O outro requisito necessário e essencial para a verificação de uma situação de responsabilidade civil extracontratual, e já antes referido, é então a culpa. "A existência de um acto ilegal envolve uma presunção de culpa, dificilmente ilidida"
Neste caso aplicou-se uma inversão ao principio geral do artigo. 487 nº1 do C.C de que é ao lesado que incumbe provar a culpa do autor da lesão[6], aplicando-se o artigo 344 nº1. Assim, cabia a Administração provar que agiu sem culpa, tendo a possibilidade de ilidir a presunção legal de culpa à luz do artigo 350 nº1 C.C. A inversão deste principio depende certas circunstâncias, sendo uma delas no caso em que existe o dever de vigilância sobre animais ou coisas móveis ou imóveis que o lesante tenha em seu poder(art.493/1).[7]
"
Trata-se de uma presunção que admite prova destinada a contrariar o facto presumido e, consequentemente, que admite a demonstração de que o direito reclamado não existe. E trata-se de uma presunção que se restringe à culpa e que, por isso, não pode ser alargada à ilicitude. Presunção que, por força do que se dispõe no art.º 4.º/1 do DL 48.051, se aplica à responsabilidade civil extracontratual do Estado e das demais pessoas colectivas públicas."[8]
Tal prova não veio a acontecer no caso em análise.
De acordo com o STA, o dever de vigilância significava, no caso, “acompanhar e fiscalizar aquelas obras por forma a que as mesmas não pudessem determinar a produção de quaisquer prejuízos. Dever esse que lhe exigia analisar se elas poderiam causar perigo e, prevendo esse perigo, que a obrigava a tomar todas as medidas indispensáveis à sua remoção".
Nestes riscos incluíam-se apenas os riscos prováveis. e havendo uma obra a decorrer, um rebentamento de uma conduta de água é um risco previsível ou provável e acontecer, portanto existia uma exigência de vigilância para que o mesmo fosse prevenido. Além disso, no entender do Tribunal o facto de a obra estar a ser executada por um terceiro, o dever de vigilância por ser permanente, e tento em conta os termos já expostos, não exonerava o município da sua obrigação.[9]


Conclusão:
Como o STA não considerou verificado o ónus de prova por parte do ente público possuídor da coisa por via a demonstrar que tomou todas as providências para evitar o dano, e que o mesmo só ocorreu por circunstâncias alheias as quais não podia evitar. Verificaram-se assim todos os pressupostos de uma situação de responsabilidade civil extracontratual, e o STA tomou a decisão correta ao confirmar a sentença recorrida que impõe ao município indemnizar a Autora.

Bibliografia:
E-book do ICJP Responsabilidade Civil Extracontratual das Entidades Públicas: Anotações de Jurisprudência (coordenação Carla Amado Gomes/Tiago Serrão), 2013
AMARAL, Diogo Freitas - Curso de Direito Administrativo, Vol.I, Almedina, 2015, 4ªedição

LEITÃO, Luis Menezes, Direito das Obrigações, Volume I, Da Constituição das Obrigações, 10.ª edição, Coimbra, Almedina, 2013
MARCELO REBELO DE SOUSA/ANDRÉ SALGADO DE MATOS, Direito Administrativo Geral, Tomo I, 2.ª edição, Lisboa, D. Quixote, 2006

VARELA, Antunes, Das Obrigações em Geral – Volume I, reimpressão da 10.ª edição de 2000, Coimbra, Almedina, 2013

CORDEIRO, António Menezes, Tratado de Direito Civil Português, II, Direito das Obrigações, Tomo III, Coimbra, Almedina, 2010







[1] DIOGO FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, Volume I, Almedina, 2015, 4ªedição, pág. 450
[2] LUIS MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, Volume I, Da Constituição das Obrigações, 10.ª edição, Coimbra, Almedina, 2013, p. 258 e ss
[3] MARCELO REBELO DE SOUSA/ANDRÉ SALGADO DE MATOS, Direito Administrativo Geral, Tomo I, 2.ª edição, Lisboa, D. Quixote, 2006, p. 86
[4]ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral – Volume I, reimpressão da 10.ª edição de 2000, Coimbra, Almedina, 2013, p. 529
[5] MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil Português, II, Direito das Obrigações, Tomo III, Coimbra, Almedina, 2010
, p. 465
[6] Acordão do STA, de 23 de Fevereiro de 2012 - Ponto II
[7]Acordão do STA, de 23 de Fevereiro de 2012- Ponto III
[8]Acordão do STA, de 23 de Fevereiro de 2012, Texto Integral, II O Direito, Ponto 3
[9] Acordão do STA, de 23 de Fevereiro de 2012, Texto Integral, II O Direito, Ponto 4 “O que aos entes públicos se exige é que representem todos os riscos prováveis e, de entre os demais possíveis, os que, por não serem extraordinários ou fortuitos, ainda pudessem caber nas expectativas de um avaliador prudente (vd. os arts. 4º, n.º 1, do DL n.º 48.051, de 21/11/67, e 487º, n.º 2, do Código Civil); e, em seguida, exige-se que tais entes previnam os riscos representados, desde que não haja motivos logísticos ou orçamentais que, «ab extra», o impossibilitem.” – ac deste STA de 29-01-2009 (rec. 966/08).



O antes e o depois do estatuto do particular face à evolução do Direito Administrativo


                Em primeira instância, antes de passarmos ao ponto basilar desta exposição (nomeadamente o de analisar os diferentes estatutos das entidades particulares perante a evolução do Direito Administrativo), há uma relevante necessidade de enquadrarmos o mesmo no contexto histórico-social em que surgiu e analisarmos o modo como foi evoluindo ao longo do tempo. Uma nota importante, é a de que não vão ser analisadas quais as garantias específicas dos particulares, mas sim, somente se os mesmos tinham sequer essas garantias perante a Administração (ou “senhora Administração” nas palavras do Professor Doutor Vasco Pereira da Silva).
                Atendendo a um ponto de vista estrutural, há autores que defendem que a evolução histórica do Direito Administrativo foi algo de linear, constante e acima de tudo, de tipo quantitativo, ou seja, do menos/mínimo para o mais/máximo, sempre a crescer. Á luz deste prisma estrutural, estes autores consideram que entre o século XIX e o século XX, esta evolução fez-se da Administração como mero aparelho incumbido da execução da lei para a Administração como conjunto de entidades promotoras do bem-estar. Todavia, para Freitas do Amaral, esta evolução histórica caracteriza-se pela sua volatilidade, não tendo sido linear de todo, uma vez que apresenta avanços e retrocessos ao longo do tempo.
                Começando com o Estado oriental (Estado característico das civilizações mediterrânicas e do Médio Oriente na Antiguidade oriental – do terceiro ao primeiro milénio a.C.), é com este tipo de estado que vão surgir os primeiros resquícios de administração pública, caracterizando-se por ser um Estado unitário com regime totalitário. Porém, em que actos se traduziram estes primeiros resquícios? Em torno do aproveitamento das águas dos rios pelas populações, os detentores do poder político das civilizações da Mesopotâmia e do Egipto tiveram em consideração a vital necessidade de procederem a obras hidráulicas. Daí, o Estado chamou a si diversos programas de obras públicas, sendo que a execução das mesmas necessitaria da cobrança de impostos por parte dos particulares. Assim, os imperadores, sendo funcionários permanentes e pagos pelo tesouro público, cobram os devidos impostos para a execução de obras públicas e assegurar a defesa nacional. Dito isto, podemos concluir que a actividade administrativa nesta época cinge-se a fins económico-sociais e não a fins de protecção ou defesa dos particulares. Os particulares não têm qualquer colaboração com a administração e encontram-se num estado de sujeição à mesma, uma vez que esta recorre a práticas fiscalizadoras da actividade dos particulares. Não se reconhecendo fórmulas de administração local autárquica e nem existindo garantias dos particulares face à Administração (garantias nulas face ao Poder), este modelo oriental é análogo a um modelo administrativo típico de um país moderno.
                Passando para o Estado grego (Estado característico da civilização grega, no quadro da Antiguidade Clássica – do século VI ao século III a.C.), o mesmo caracteriza-se essencialmente pela reduzida expressão territorial (os Estados passam a cidades-Estado ou pólis). Será que há agora uma melhoria quanto ao estatuto e garantias dos particulares face à Administração? Para responder a esta pergunta, temos de realçar o facto de que os cidadãos começam a formar o núcleo da vida política, surgindo o conceito e a prática da democracia. Porém, esta aparente melhoria no estatuto dos particulares traduz-se numa ilusão de óptica, pois mesmo os cidadãos gozando de direitos de participação política, as garantias dos particulares em si são reduzidas perante a Administração, que era essencialmente executada pelas magistraturas que exerciam poderes administrativos e judiciais e que ao longo do tempo se foram especializando noutros ramos (arcontes para questões legislativas, judiciais e religiosas, estrategos para questões militares, etc.). 
                Falando agora no Estado romano (Estado característico da civilização romana no quadro da Antiguidade Clássica – do século II a.C. ao século IV d.C.). Com este tipo de Estado, passamos de uma forma de governo monárquica para republicana e desta para um império, havendo uma inserção de todas as classes sociais na vida política. Desta vez, temos um reforço relativo das garantias individuais face ao Estado, bem como o aparecimento da noção de pessoa e do primado da dignidade da pessoa humana. No topo do Estado encontramos a figura do Imperador, titular dos poderes legislativo, executivo e judicial, no entanto, as funções executivas deste eram delegadas ao no pretor, que por sua vez funciona como um “primeiro-ministro”. Qual é a relevância do pretor no que diz respeito ao estatuto dos particulares? As decisões do pretor eram imponentes e tinham cariz soberano, não havendo hipótese por parte dos particulares de intentarem algum recurso face às mesmas. Todavia, com Diocleciano (imperador romano de 284 d.C. a 305 d.C.), surge assim o direito de se recorrer contra estas decisões num prazo estipulado de dois anos, o que nos mostra uma clara evolução na garantia e no estatuto dos particulares perante o Estado. Mas não nos enganemos, porque com esta preciosa garantia não se exercitava um direito individual, mas sim somente se solicitava uma graça do poder (facultas supplicandi non provocandi). Para concluir, é de realçar que esta melhoria no estatuto dos particulares na época do Império Romano também se deve à grande distinção que se faz entre Direito Privado e Direito Público.
                Entramos agora no Estado medieval (Estado característico da Idade Média – século V d.C. ao século XV). Este tipo de Estado caracteriza-se por dois factores que considero serem de maior relevância: forte descentralização política do Estado, com o feudalismo e primeiros esboços de enunciação das garantias individuais contra o poder do Estado, esboços esses que resultam de um certo documento que iremos ver posteriormente. Mesmo com a fragmentação do poder político provocado pelo feudalismo, ainda temos evidências da presença da administração pública na vida colectiva, na forma de órgãos centrais (no caso português, Cúria Régia, Alferes-mor, Mordomo da Corte, etc). Uma novidade administrativa relativamente ao Estado oriental, é que agora temos uma auto-organização das populações de vilas e aldeias que levam ao surgimento de fórmulas de governo local/auto-administração, através das quais as comunidades procedem a actividades administrativas como a construção de estradas, regulamentação de feiras e mercados, questões de urbanismo, entre outras. Neste regime feudalista, constatamos que há um fortalecimento do poder real do Rei, que sendo um supremo legislador e juiz, não está, como administrador, inteiramente submetido ao Direito, podendo subtrair quem ele desejar do cumprimento da lei (quando o próprio não se subtrai às regras gerais), podendo conceder privilégios especiais e até podendo matar quem ameace a sua autoridade. Face a este tão imperativo (e até assustador) estatuto do rei, em que posição ficam os particulares? Mesmo com a Magna Carta (o dito documento com a enunciação das garantias individuais), estas mesmas garantias apresentam-se ainda muito deficientes contra o arbítrio dos poderes públicos. Estando instaurado o princípio de que o Rei não é responsabilizado pelos seus actos (the King can do no wrong), os particulares vêem-se assim numa posição muito debilitada, podendo pelo menos recorrer a certos actos régios ou recorrer de resoluções municipais, mas não de forma sistemática ou como regra.
                Chegando agora ao Estado moderno (tipo de Estado característico da Idade Moderna e Contemporânea, do século XV ao século XX), este caracteriza-se pelo aparecimento do conceito de Estado na acepção que hoje tem e na centralização do poder político. Este tipo de Estado incorpora o Estado corporativo, o Estado absoluto e o Estado liberal, por isso vamos agora concentrar-nos, devido à extensão da caracterização dos mesmos, somente no estatuto dos particulares: no corporativo (séculos XV e XVI, início de século XVII), temos uma transição entre o Estado medieval e o moderno, havendo uma organização do mesmo em clero, nobreza e povo, com a respectiva representação em Cortes, havendo uma progressão muito lenta ou até quase nula das garantias dos particulares; no absoluto (meados de século XVII aos fins do século XVIII), temos uma centralização completa do poder real, dando-se destaque ao enfraquecimento da nobreza e à ascensão da burguesia, havendo também, por sua vez, uma incerteza do direito e uma máxima extensão do poder discricionário (Estado de polícia). Nos termos das Ordenações Filipinas, a protecção conferida pelos tribunais comuns aos particulares era vista como sendo “atrevida e indesejável (e, acrescento eu, inconveniente) ”, logo, as garantias dos particulares perante o Estado absoluto eram muito débeis. 
A Revolução Francesa – Jardim de Éden dos direitos subjectivos
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Ainda antes de falarmos no Estado liberal, temos de fazer uma paragem obrigatória por um marco histórico que foi fundamental para a evolução dos direitos dos particulares face à administração. Contra o abominável autoritarismo da Monarquia europeia, com esta revolução vão finalmente triunfar os ideais de liberdade individual, em que os cidadãos passam a ser titulares de direitos subjectivos públicos, invocáveis perante o Estado. No entender do Professor Doutor Vasco Pereira da Silva, o que são estes direitos subjectivos públicos? A noção de direito subjectivo encontra-se intimamente ligada com a de relação jurídica, porque os direitos subjectivos públicos são uma condição lógica da existência de relações jurídicas administrativas, ou seja, a relação jurídica administrativa é uma condição dos direitos subjectivos. Isto porque é o reconhecimento de direitos subjectivos que faz com que o individuo deixe de ser tratado como objecto do poder (passe de súbdito a cidadão), para se transformar num sujeito de direito em condições de estabelecer relações jurídicas com os órgãos de poder público. O reconhecimento ao indivíduo da titularidade de direitos subjectivos constitui por isso, o fundamento da admissibilidade de relações jurídicas entre ele e o Estado, ou seja, este reconhecimento de direitos fundamentais faz com que o indivíduo não seja subalterno das entidades públicas, mas sim uma figura que possa relacionar-se com as mesmas de “igual para igual”.
Feito este aparte, foi precisamente este reconhecimento de direitos fundamentais que marcou a Revolução Francesa, tendo os cidadãos passado de objecto do direito para sujeitos do direito. Estabeleceu-se o princípio da separação de poderes (a Coroa perde o poder legislativo, sendo o poder legislativo atribuído ao Parlamento e o poder judicial atribuído aos Tribunais, ficando somente com o poder executivo) e o princípio da legalidade, que impede a Administração de invadir a esfera dos particulares ou prejudicar os seus direitos sem ser com base numa norma emanada do poder legislativo (ou seja, administrar torna-se sinónimo de executar as leis). Perante a conjugação destes dois princípios, os cidadãos, sempre que se sentirem ofendidos, podem então recorrer aos Tribunais para fazerem valer os seus direitos face à Administração, nascendo então a preocupação de conferir aos particulares uma panóplia de garantias jurídicas, capazes de os abrigar contra ilegalidades da mesma, surgindo o Direito Administrativo moderno! Concluindo, a Revolução Francesa contribuiu para o auge/para o pique da evolução e da melhoria do estatuto dos particulares.
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                      Voltando agora ao Estado liberal (nascido das revoluções francesa e americana, conhece o seu apogeu durante o século XIX e declina na primeira metade do século XX), temos agora o reconhecimento da existência dos direitos do homem, proclamação da igualdade jurídica para todos os homens e adopção do constitucionalismo como técnica de limitação do poder político. Partindo do princípio da separação de poderes, temos uma distinção material entre função administrativa e jurisdicional, havendo entrega de competências administrativas aos órgãos de poder executivo (Governo e seus agentes) e de competências jurisdicionais aos tribunais. Este Estado liberal constitui um cenário de melhorias reforçadas quanto ao estatuto dos particulares perante a Administração, pois o Conseil d’État francês, sem textos legais e com uma inigualável convicção de jurisprudência pretoriana, forjou um sistema global de garantias dos mesmos.
                      Desenrolar-se-á agora a parte final deste tema, que abrange o Estado constitucional, que por sua vez, abrange o Estado comunista, fascista e democrático. Neste Estado, a Constituição não actua como um limitador de poder político, mas sim como mecanismo legitimador do arbítrio estatal, havendo surgimento, a par dos direitos individuais, de direitos económico-sociais. Vamos então resumir as garantias dos particulares em cada um deles: no comunista, o exercício de qualquer liberdade individual pode ser proibido ou não autorizado se o Estado entender que o mesmo contribui para a construção do socialismo, ou seja, a Administração Pública está sujeita a um princípio de legalidade socialista; no fascista, adopta-se uma posição intermédia quanto às garantias dos particulares face aos actos ilegais do poder público - nem todas, nem nenhumas. Se as decisões administrativas que afectam particulares não tiverem carácter político e forem somente actos administrativos ordinários, os lesados podem recorrer aos tribunais administrativos especiais (controlados pelo Governo), de forma a estes anularem os actos ilegais e concederem indemnizações para os prejuízos sofridos. Mas se estas decisões ilegais tiverem efectivamente carácter político, então a própria lei processual encarrega-se de afastar o perigo e preservar a imunidade governamental (chama-se a isto insindicabilidade dos actos praticados no exercício de poderes discricionários). Ou seja, no Estado comunista, o princípio da legalidade visa subordinar os tribunais à construção revolucionária do socialismo e no Estado fascista, visa a conotação da defesa governamental – os cidadãos não vão a tribunal defender os seus interesses, mas sim, vão ajudar o Governo a manter o respeito pelas leis que ele próprio elabora e pretende ver cumpridas, diz Freitas do Amaral de forma irónica; no democrático, havendo uma descentralização e desconcentração do Poder, temos uma variedade de instrumentos cedidos aos cidadãos para conferir a protecção jurídica dos mesmos (exemplo: tribunais administrativos independentes, recursos e acções de plena jurisdição, processos executivos eficazes e não sujeitos a qualquer controlo governamental).
                      Dou por terminada a minha exposição, concluindo que a aventura evolutiva do estatuto dos particulares perante a Administração não foi de todo linear, tendo sofrido muitas rupturas, traduzidas num sistema constante de progressos e retrocessos ao longo das épocas. A acrescentar, no caso português, actualmente, sob o aspecto económico, o Estado condiciona cada vez mais as actividades privadas e sob o ponto de vista político, o cidadão cada vez vê mais reforçadas as suas garantias que o abrigam contra o arbítrio estadual, ou seja, o Estado está cada vez mais restringido pelas normas que visam a defesa dos direitos e interesses legítimos dos particulares contra os comportamentos ilegais ou injustos da Administração. 

Bibliografia:

AMARAL, Diogo Freitas. – Curso de Direito Administrativo. 4-ª Edição. Coimbra: Edições Almedina, 2015.
VASCO PEREIRA DA SILVA, “Em busca do Ato Administrativo Perdido”, Dissertação de Doutoramento em Ciências Jurídico Políticas, Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa


Hugo Pereira Coutinho| nº 28205 | PB14 2º Ano | Direito Administrativo I