Princípio da Prossecução do Interesse Público
Carla Costa
No semestre em curso, o tópico relativo ao princípio da prossecução do interesse público revelou-se uma matéria transversal em todo o Direito Administrativo. Neste sentido, parece-me conveniente um entendimento esclarecido deste princípio, na medida em que, de certo, ajudará a compreender a actuação da Administração Pública e, ouso inclusivamente dizer, a própria razão de ser da mesma.
O interesse público é, sem dúvida, “o norte da Administração Pública”[1]. A própria Constituição da República Portuguesa faz eco dele, indicando-o como fim da Administração, no número 1, do artigo 266º: “A Administração Pública visa a prossecução do interesse público (…)”. Para além deste, também o artigo 4º do Código do Procedimento Administrativo individualiza o princípio da prossecução do interesse público em termos categóricos.
O que é o interesse público?
Trata-se, efectivamente, de um conceito “cuja evidência intuitiva não facilita em muito a definição”[2].
Freitas do Amaral, começa por definir interesse público como “o interesse colectivo, o interesse geral de uma determinada comunidade, o bem comum”[3]. Na mesma linha de pensamento, João Caupers acrescenta que “a variabilidade e o crescimento destas necessidades constituem uma das características do Estado social de direito”[4] e, por isso, o que ontem foi considerado conforme ao interesse público pode hoje ser-lhe contrário. Não é possível definir o interesse público de uma forma rígida e inflexível, ne varietur.
Num sentido mais restrito, pode caracterizar-se o interesse público como sendo o que representa a esfera das necessidades a que a iniciativa privada não pode responder e que são vitais para a comunidade na sua totalidade e para cada um dos seus membros[5].
Segundo Rogério Soares, o interesse público divide-se em “interesse público primário” e “interesses públicos secundários”[6].
O interesse público primário é definido e satisfeito pelos órgãos governativos do Estado, no desempenho das funções política e legislativa, constituindo o bem comum. De modo diferente, os interesses públicos secundários são definidos pelo legislador, mas satisfeitos, num plano subordinado, pela Administração Pública no desempenho da função administrativa.
Em conformidade, sendo a função administrativa uma função secundária do Estado, esta encontra-se subordinada ao princípio da legalidade, não lhe cabendo a escolha dos interesses públicos a prosseguir. Consequentemente, a Administração Pública está vinculada a prosseguir o interesse público tal como definido pela Constituição e concretizado pela lei, “através da identificação dos contornos da necessidade colectiva a satisfazer, a decisão da sua satisfação por processos colectivos e a definição dos termos mediante os quais tal satisfação deve processar-se”[7].
Embora a maioria da doutrina não lhe faça referência, Freitas do Amaral introduz uma excepção: os casos em que a lei habilitar a Administração para tal, nomeadamente, conferindo-lhe competência para aprovar regulamentos independentes ou para concretizar certo tipo de conceitos indeterminados.
Concretizando, por força do princípio da separação de poderes e da superioridade do poder legislativo, entende-se que cabe à lei a definição dos interesses públicos que a Administração Pública cumpre prosseguir.
Retira-se do que foi dito que uma actuação administrativa que prossiga interesses privados ou interesses públicos alheios à finalidade normativa do poder exercido, é ilegal e está viciada de desvio de poder, o que acarretará a sua invalidade. Nestes casos, pode ainda quem assim procedeu, ser sancionado, quer administrativa, quer penalmente.
Cumpre fazer uma chamada de atenção: uma concreta decisão da Administração pode envolver vantagens para interesses particulares, o que não pode acontecer é ser esta a meta da actuação administrativa.
Uma outra consequência prática do princípio da prossecução do interesse público, de elevada importância, é que, uma vez definido o interesse público pela lei, a sua prossecução pela Administração é obrigatória. Não fosse esta a “actividade que justifica a autonomização da administração no quadro das funções do Estado e a razão de ser da existência de uma Administração em sentido orgânico”[8]. Neste contexto, a Administração Pública não pode modificar os interesses públicos cuja prossecução a lei lhe confira.
Ao fixar os interesses públicos a prosseguir pela Administração Pública, tal como as regras a que deve obedecer tal prossecução, a lei não determina imediatamente a actuação administrativa, mas antes uma delimitação, mais ou menos precisa, do espaço de decisão da Administração Pública.
Significa isto que a lei não garante a boa decisão administrativa: somente autoriza um conjunto de decisões conformes à lei, de entre as quais algumas serão, naturalmente, melhores do que outras.
Com efeito, o conceito de interesse público reveste-se de um elevado grau de indeterminação, pelo que a Administração goza de uma ampla margem de livre decisão quanto ao modus faciendi da sua prossecução. A título exemplificativo, um tribunal pode anular um acto da administração por prosseguir um interesse privado ou um interesse público diferente do definido por lei para o exercício da competência em causa, mas não pode anulá-lo com fundamento no mesmo princípio, por considerar que ele não prossegue da melhor maneira o interesse público legalmente definido[9].
Isto não significa que a administração não esteja sujeita ao dever de boa administração. Simplesmente, o cumprimento do dever de boa administração não pode, sob pena de violação do princípio da separação de poderes, ser indicado pelos tribunais, estando, portanto, dentro da esfera do mérito da actuação administrativa.
Cabe, no seguimento desta exposição, e de modo a que melhor se compreenda esta realidade, distinguir mérito e legalidade. Esta distinção interessa sobretudo para efeitos da delimitação do âmbito do controlo jurisdicional sobre a Administração Pública.
No campo do mérito, a Administração Pública está condicionada por um dever geral de boa administração. O cumprimento deste dever possibilita a distinção entre boas e más decisões, sendo que, em ambos os casos, serão decisões legais. Quer isto dizer que “o dever de boa administração é um dever jurídico imperfeito, cujo cumprimento não pode ser sindicado pelos tribunais administrativos”[10].
Não obstante, a violação de tal dever pode dar lugar à revogação, modificação ou substituição de actos ou regulamentos administrativos pelos órgãos para tal competentes, bem como fundamentar a utilização de meios administrativos de impugnação por parte dos particulares. Pode ainda acarretar consequências jurídicas, nomeadamente para os funcionários públicos envolvidos, nos planos da responsabilidade disciplinar e da responsabilidade civil. O que é certo é que, como reiteram Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos, não envolve, em circunstância alguma, a ilegalidade ou invalidade da actuação administrativa.
[1] Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos, <>, vol. I, p. 207
[2] Sérvulo Correia, <> p. 662
[3] Freitas do Amaral, <>, vol. II, p. 33
[4] João Caupers, <>, p. 79
[5] Jean Rivero, <>, p.14
[6] Rogério Soares, <>, p. 99 e ss
[7] Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos, <>, vol. I, p. 208
[8] Freitas do Amaral, <>, vol. II, p. 34
[9] Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos, <>, vol. I, p. 209
[10] João Caupers, <>, p. 82
Sem comentários:
Enviar um comentário