O Ministério Público (doravante, MP), enquanto organismo estadual, tem como tarefa principal a defesa, a titulo institucional, da legalidade e do interesse público nos termos do artigo 219°/1 CRP e do artigo 1° do Estatuto do Ministério Público.
A nossa intervenção na ação encontra legitimidade no disposto nos artigos seguintes do Estatuto do Ministério Público:• Artigo 1° - “O Ministério Público representa o Estado, defende os interesses que a lei determinar (…) defende a legalidade democrática, nos termos da Constituição, do presente Estatuto e da lei.”
• O artigo 2° vem a esclarecer que o MP goza de autonomia que se traduz na vinculação a critérios de legalidade e objetividade e pela exclusiva sujeição dos magistrados o MP
• O artigo 3°/1/e) estabelece que ao MP compete assumir nos casos previstos na lei, a defesa de interesses coletivos e difusos.
• O artigo 5°/4 legitima a intervenção do MP acessoriamente na sua alínea a) através a realização de interesses coletivos ou difusos.
• A referida intervenção acessória visa zelar pelos interesses que estão o MP confiados, promovendo o que tiver como conveniente, tal como disposto no artigo 6°/1.
Encontra igualmente legitimidade na CRP no artigo 219°, supra mencionado, que carateriza o MP como órgão do estado caraterizado por ser autónomo.
A lei constitucional não define direta e exaustivamente o estatuto do Ministério Público, não esgota o elenco das suas competências. Incumbe ao legislador ordinário ao qual se reconhece o poder de lhe entregar a defesa de outros interesses, nomeadamente a defesa da legalidade democrática e dos interesses que a lei determinar. Estas funções são exercidas na jurisdição administrativa.
No seguimento do consagrado no texto da lei fundamental, o Estatuto do Ministério Público Lei 60/98, de 27 de agosto confirma a autonomia do MP.
O MP é representado em primeira instância nos tribunais administrativos por procuradores da República e procuradores adjuntos (artigo 4° EMP e artigo 52° ETAF).
Das competências atribuídas pela Constituição e pelo Estatuto podemos concluir que o MP é um corpo de magistrados hierarquicamente subordinado que funciona na órbita dos tribunais, separado da magistratura judicial e gozando de autonomia em relação ao poder executivo.
Apesar do enquadramento sistemático dado ao MP no texto constitucional, o MP não se confunde com os tribunais.
O MP vem a ser maioritariamente qualificado pela doutrina como integrando o poder judicial, mas o exercício das suas competências não se traduz numa atividade jurisdicional, mas sim numa atividade materialmente administrativa. É um órgão de natureza híbrida.
O MP é um órgão constitucional de administração da justiça, mas não é um órgão jurisdicional porque não diz o Direito. Acaba por intervir como autor na ação pública no contencioso administrativo, “onde pulsa mais a paixão do advogado do que a neutralidade do juiz”.
O Professor Jorge Miranda pronuncia-se acerca da distinção entre função administrativa e função jurisdicional dizendo que do ponto de vista material, a função administrativa traduz-se na satisfação contínua das necessidades coletivas e da prestação de bens e serviços. A função jurisdicional declara o Direito, decide questões jurídicas, resolve litígios, aplica sanções. Do ponto de vista formal, a função administrativa é parcial na prossecução do interesse público, tem iniciativa. A função jurisdicional é passiva porque necessita do pedido de outra entidade, e é imparcial (posição super partes), características estas que não se encontram na atividade do MP.
Por sua vez, o Professor Figueiredo Dias refere que “o MP colabora com o tribunal na realização do Direito, mas só a este cabe o processo de declaração e aplicação do Direito no caso e as suas decisões têm força de caso julgado”.
Por seu turno o Professor Freitas do Amaral expressa um pensamento similar ao afirmar o seguinte, “o MP, na sua atividade específica, não manifesta passividade, nem imparcialidade, antes atuando com iniciativa e em posição de parte, como é timbre da função administrativa”.
A independência técnica do MP opera no quadro da sua autonomia que é relativa ao poder executivo e à sua insubmissão a instruções concretas do Executivo relativamente a qualquer caso concreto.
A intervenção do MP no contencioso administrativo radica na defesa da legalidade democrática (artigo 219° CRP), intervindo no contencioso administrativo. Esta é a intervenção típica e distintiva. Também defende o Estado e outros interesses que a lei ordinária lhe cometa.
Conteúdo similar pode ser encontrado no artigo 1° EMP quando refere a defesa da legalidade democrática.
O artigo 51° ETAF pretende a defesa da legalidade democrática e promover a realização do interesse público, exercendo, para o efeito, os poderes que a lei processual lhe confere.
O desenho legal das competências dos poderes públicos é uma exigência de legalidade no Estado de Direito, não estando isentos desse postulado os órgãos encarregados da defesa da legalidade.
O artigo 3° EMP não faz referência à fiscalização ou defesa da legalidade administrativa ou, mais especificamente no sentido da defesa do interesse público da legalidade.
O artigo 5° EMP refere apenas a intervenção principal e intervenção acessória. Não se refere a defesa da legalidade, a impugnação contenciosa dos atos administrativos em defesa do interesse público da legalidade.
Em suma, nem EMP, CRP e ETAF aludem a competência do MP para desencadear a ação pública para a impugnação de atos administrativos ilegais em exclusiva defesa da legalidade objetiva, esta competência está suportada pelo mandato excessivamente amplo da defesa da legalidade democrática. É necessária uma norma especial atributiva de competência. Este é o entendimento do Tribunal Constitucional e do Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República.
As competências legais do MP devem ser compreendidas à luz das competências processuais que lhe conferem legitimidade (suscetibilidade do MP poder exercer em juízo as suas competências legais).
O artigo 9°/2 CPTA aborda a legitimidade ativa das partes no contencioso administrativo e reconhece ao MP legitimidade para intervir na defesa de interesses difusos (tal como é reconhecido a qualquer cidadão no gozo dos seus direitos civis e políticos – ação popular). O MP tem legitimidade para propor e intervir nos termos previstos na lei, e processos principais e cautelares destinados à defesa de valores e bens constitucionalmente protegidos, como urbanismo, ordenamento do território, qualidade de vida, património cultural e bens do Estado, regiões e autarquias locais. A coberto desta legitimidade cabem praticamente todos os pedidos pertinentes em ações administrativas comuns e especiais, meios cautelares (artigo 31 CPC e direito de ação popular).
A atuação em defesa de interesses qualificáveis como difusos ou, usando a expressão legal, na defesa de bens e valores constitucionalmente protegidos, a intervenção do MP não se funda em critérios estritos de legalidade objetiva. Devem atender aos efeitos lesivos produzidos ou a produzir, há que considerar o dano efetivo que determinada atuação administrativa causa relativamente a bens ou valores qualificados como interesses difusos: ambiente, urbanismo, ordenamento do território. Aqui inclui-se a necessidade de respeitar e defender a legalidade democrática: aqui radicam sempre os interesses difusos merecedores de tutela. A par disto o MP tem legitimidade para impugnar atos administrativos (artigo 55/1/b) CPTA).
Esclarecida a razão de ser da intervenção do MP neste processo, cumpre averiguar da legitimidade da construção de um parque de estacionamento numa zona histórica entendida como território com classificação histórica e com património edificado considerado histórica e culturalmente relevante. Ao abrigo do disposto no artigo 9°/2 do CPTA compete ao MP zelar pela conservação do património cultural, do ordenamento do território, do urbanismo, qualidade de vida e dos bens do estado, enquanto bens e valores constitucionalmente protegidos. Tratam-se de interesses qualificáveis como difusos, sendo que a intervenção do Ministério Público neste âmbito não radica propriamente.
Reitera-se que não tomamos a parte dos moradores, nem da Câmara Municipal, nem da Junta Freguesia, mas sim uma posição protetora da zona histórica da autarquia.
É reconhecida ao MP a legitimidade para acionar na jurisdição administrativa todos os meios processuais que se encontram previstos no CPTA entre os quais se incluem a ação administrativa comum, a ação administrativa especial, meios cautelares e demais meios processuais previstos no código e em legislação especial.
Tendo em consideração que já haviam sido colocados parquímetros na zona histórica de Carnitas e que após a remoção dos mesmos a vontade de os recolocar foi manifestada, vimos por este meio solicitar uma providência cautelar acompanhada do pedido de uma assessoria técnica.
Clarificando, ao MP é reconhecida legitimidade para acionar os meios processuais de natureza cautelar, ou seja, o requerimento de providência cautelar que assegure a utilidade da sentença a proferir, designadamente a suspensão da eficácia de atos administrativos. Esta possibilidade está prevista no artigo 112° CPTA. A própria ação administrativa para impugnação de atos que radica no disposto no artigo 9°/2 CPTA encontra-se prevista no artigo 55°/1/b) CPTA.
Visamos então suspender esta recolocação.
No que respeita à assessoria técnica, a mesma prende-se com a dúvida sobre a legalidade do ato de gestão urbanística objeto de impugnação, com a insuficiência de meios do MP e com possíveis lesões para o interesse público. Pelo que a referida assessoria será levada a cabo pela Inspeção Geral da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território, a qual tem o dever de informar o MP das ilegalidades por si detetadas. Esta entidade deverá participar factos ao Ministério Público para efeitos de ação pública, factos esses resultantes de auditorias, inspeções, inquéritos e outras ações. Recai sobre esta entidade um dever jurídico de coadjuvação ou prestação de assistência ao MP na sua missão em defesa da legalidade, tratando-se de uma colaboração institucional de natureza informativa que se prende com a questão de saber se, naquele local específico, podem ser colocados parquímetros para efeitos de construção de um parque de estacionamento.
Em suma, resulta do disposto que o MP apresenta-se como coadjuvante do tribunal, um amicus curiae, podendo assumir três papéis diferentes – o defensor dos interesses do Estado-administração, o de defensor da legalidade objetiva e o de defensor de interesses coletivos e difusos.
O MP é, nestes termos, um órgão que atua mais próximo da sociedade do que do Estado.
Inês Gonçalves
Inês Cantarrilha
Natalina Hermano
Rute Martins
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