domingo, 21 de maio de 2017

O aproveitamento do ato administrativo

O aproveitamento do ato administrativo
Reflexão crítica sobre o artigo 163º, nº5 do Código do Procedimento Administrativo


I. Introdução

Com esta apresentação venho abordar uma problematização crítica do nº5 do art. 163º do CPA, que consagra o mecanismo do aproveitamento do ato administrativo no nosso ordenamento jurídico-administrativo.
Tratarei os âmbitos subjetivo e objetivo de aplicação da norma, bem como os critérios para a determinação dos atos a aplicar. No fim, farei uma perspetiva que englobará um aprofundamento dogmático futuro e a sua relação com o Direito da União Europeia.


II. Descodificação da estatuição do artigo 163º, nº5 “Não se produz o efeito anulatório (quando)”:

Através da sua pouca concretização, o texto do CPA, que se reporta à "não produção do efeito anulatório"[1],  pode levar-nos a uma conclusão errada acerca do que trata. São várias as hipóteses que nos levam a traçar caminhos diferentes. Por um lado, podemos pensar que está em causa uma situação de determinação de não-anulabilidade (por outras palavras: de validação ou sanação)[2].  Por outro lado, podemos assumir que efeito anulatório e anulabilidade não possuem o mesmo significado, sendo antes o efeito anulatório uma consequência da anulabilidade.
Consequentemente, o legislador dissociou o acima exposto e representou na norma a ideia de que o aproveitamento do ato mantém e conserva a ilegalidade originária de que o ato não só padece como continua a padecer (pese embora a irrelevância do vício)[3]. Ou seja, preserva-se formalmente a ilegalidade (anulabilidade) do ato, mesmo que materialmente a ilegalidade se torne juridicamente ineficaz.
Resumindo, o mecanismo do aproveitamento do ato incide sobre os efeitos jurídicos da intocada invalidade e não sobre a fonte de invalidade (violação de princípios ou normas jurídicas aplicáveis).


III. Subsiste a pretensão indemnizatória do particular por danos causados consequentes do ato não anulado?

Através da compreensão do mecanismo do aproveitamento do ato surge-nos uma questão: saber se, não obstante decair a possibilidade de obter a anulação do ato (aproveitado nos termos do art. 163º, nº 5), subsiste qualquer pretensão indemnizatória do particular por danos causados devido à ilegalidade procedimental ou formal cometida. Importa apurar se, apesar de a lei afastar as vias de proteção primária, se mantêm ainda as vias de proteção secundária em sede de responsabilidade do Estado por facto imputável à Administração, o que nos remeteria para o regime estabelecido na Lei nº 67/2007, de 31 de Dezembro.[4]
Como sempre, a doutrina diverge. Num certo ponto de vista, afirma-se que o aproveitamento do ato mantém a ilegalidade e base e não vai além da conservação do ato ilegal em detrimento da sua anulação. Logo, sendo o particular um titular de direitos, continua a poder obter a reparação de danos (pretensão indemnizatória requerida) causados pela decisão administrativa formal ou procedimentalmente viciada.[5]
Por outra perspetiva, sustenta-se que, face ao fim do aproveitamento, que determina a incapacidade invalidatória de um vício formal ou procedimental considerado impertinente para o sentido final da decisão, nem sequer existe uma lesão da posição jurídica do particular. Conclui-se por fim que não se consegue estabelecer a causalidade entre o dano sofrido e a violação procedimental cometida.
Aquando de situações de discricionariedade administrativa torna-se problemático conceber que a Administração possa causar um dano ao particular quando se dá por provado que a sua conduta, para além de ser substantivamente conforme, não foi sequer determinada pelo vício procedimental.[6]
Resposta à questão: Na teoria, parece ser a racionalidade subjacente ao mecanismo de aproveitamento do ato a ditar a impossibilidade de surgimento de um direito e correspetivo dever de indemnização dos particulares.


IV. Âmbito objetivo do nº5 do artigo 163º do CPA

Devemos interrogar-nos acerca de qual o âmbito objetivo do art. 163º, nº 5 do CPA: que requisitos de legalidade do ato administrativo contempla este preceito?

O mecanismo do aproveitamento do ato parece cobrir todos os requisitos de legalidade do ato cuja cominação para o respetivo não preenchimento seja o da anulabilidade.[7] Dito de outra forma: o art. 163º, nº 5, desconsidera todo o vício cuja sanção se traduza na anulabilidade do ato administrativo assim praticado, verificadas que estejam as suas alíneas concretizadoras do artigo referido.[8]
Deve-se ter em conta a solução portuguesa consagrada em relação aos vícios abstrata e imperativamente irrelevantes: vício procedimental-formal, vício por incompetência relativa, vícios da vontade (erro sobre os pressupostos de facto ou de direito da decisão administrativa)[9] ou, genericamente, vício de violação de lei. Esta solução aplica-se sempre que se conclua que o ato seria praticado com o mesmo conteúdo (art. 163º, nº 5, al. c)) ou que não havia juridicamente outra hipótese de decisão (art. 163º, nº 5, al. a)).
Em linha de conta encontra-se o teste da não produção do efeito anulatório.
O domínio aplicativo do aproveitamento do ato leva à realização em todos os casos do teste quando esteja em causa a anulação de um qualquer ato administrativo anulável.
Por conseguinte, deve-se sempre ter em conta os fundamentos do nº 5 do artigo 163º.

V. Âmbito subjetivo de aplicação[10]

Outra questão pertinente que se impõe interrogar é saber se para além do juiz administrativo, também a própria Administração é destinatária-aplicadora do imperativo “não produção do efeito anulatório”. Isto porque a norma em referência diverge da proposta constante do Projeto de Revisão do CPA, com a consequência de lhe ser traçada uma restrição legal ao exercício da competência anulatória configurada no novo CPA.
O argumento de que a Administração possa anular o que um Tribunal não pode anular jurisdicionalmente não releva, pois implica quanto ao recorte de competências, uma afronta ao princípio da separação de poderes.
Na orientação defendida pelo Professor Luís Heleno Terrinha,[11] tanto a Administração como os Tribunais, ficam num plano paritário quanto à vinculação e aplicação do art. 163º, nº5. Deste modo, não pode haver anulação (jurisdicional ou administrativa) dos atos viciados cobertos pela norma. Denota-se aqui uma notável preocupação relativa às expetativas dos particulares no que toca à certeza e segurança jurídicas.
Sumariando, o mecanismo do aproveitamento do ato foi consagrado apenas para as situações em que a forma de invalidade a afetar a decisão administrativa é a anulabilidade, pois o que se quer afastar é a produção de um efeito anulatório. Assim, os atos administrativos cuja causa de invalidade se reconduza à nulidade, tal como disciplinada no art. 161º, estão automaticamente afastados do âmbito normativo do art. 163º, nº 5.[12]

VI. Os fundamentos de irrelevância dos vícios no artigo 163º, nº5

Acerca do aproveitamento do ato, o problema decisivo é o da determinação dos casos em se verifica(rá) uma coincidência de conteúdos entre a decisão administrativa viciada e a não viciada. É quanto a esta questão que as teses doutrinárias divergem.

            a) indisponibilidade jurídica de uma alternativa
Por um lado, defende-se o critério de indisponibilidade jurídica de uma alternativa, exigindo-se que a decisão administrativa viciadamente adotada não pudesse ser juridicamente outra.
Esta posição espelha-se no requisito (jurisprudencial e legal) de que o ato administrativo a praticar pela Administração seja de natureza vinculada.[13] De início, nos tribunais administrativos portugueses somente se aproveitava os atos viciados praticados no uso de competências vinculadas (por oposição às competências discricionárias). Atualmente, este esquema de atuação foi consagrado na al. a) do art. 163º do CPA.
Não obstante este facto, tem-se sujeitado ao mesmo regime as situações de redução de discricionariedade a zero, opção validamente criticada pela doutrina.


            b) indisponibilidade fáctica de uma alternativa
Por outro lado, defende-se o critério de indisponibilidade fáctica de uma alternativa, exigindo-se que o vício de que padece o ato administrativo não tenha influenciado o conteúdo decisório de que ele é portador. Para chegar a essa conclusão, cumprirá ao tribunal realizar um juízo de prognose póstuma,[14]. Através desta, vai averiguar a aptidão do vício cometido para se projetar no sentido da decisão da Administração. Esta orientação está consagrada na al. c) do nº 5 do art. 163º do CPA: Se comprove, sem margem para dúvidas, que, mesmo sem o vício, o ato teria sido praticado com o mesmo conteúdo.

Para além disto, reforça-se a posição através da afirmação “sem margem para dúvidas”, o que comprova que o ato teria sido praticado do mesmo modo com evidência. Tal é somado ao facto de que é ao procedimento que incumbe a formação da vontade administrativa, nomeadamente no que toca aos direitos de participação procedimental.
A doutrina acrescenta, para além de não se suscitar nenhuma dúvida razoável, o facto que de cabe à Administração o ónus de demonstrar de forma objetivamente clara e através de documentos que o vício foi e seria irrelevante para a decisão final.[15]
De outro modo, não deve o ato ser aproveitado, mantendo-se plenamente a eficácia invalidatória das violações legais procedimentais cometidas.
Note-se que efetuando um juízo de prognose póstuma, o aproveitamento de atos administrativos, em sede de discricionariedade administrativa e de acordo com o critério da indisponibilidade fáctica de uma alternativa, aproxima-se perigosamente de uma substituição da Administração pelo Tribunal, com todas as reservas que isso levanta no plano da preservação do princípio da separação de poderes.

            c) o critério do fim visado pelas normas violadas
Por último, como critério do aproveitamento, procura-se, saber se, não obstante se verificar a inobservância de requisitos procedimentais-formais, o fim visado pelas normas violadas foi ainda, de algum modo, acautelado e atingido.
Sobressai aqui uma tónica finalista,[16] que subtrai eficácia invalidatória aos vícios se concluir que se observaram os propósitos ou interesses visados pelas normas procedimentais. A al. b) do nº 5 do art. 163º do CPA replica esta orientação: o fim visado pela exigência procedimental ou formal preterida tenha sido alcançado por outra via.
Deste modo, se o fim visado pela norma violada foi atingido por outra via, então o vício procedimental-formal cometido foi inofensivo. Concluindo, a decisão seria a mesma de qualquer forma.


VII. Aprofundamento dogmático e relação com Direito da União Europeia

Importará investir na problematização do nº5 do art. 163º à luz do Direito da União Europeia, designadamente sempre que decorram de normas juseuropeias direitos dos particulares ou vinculações administrativas.[17]
A distinção entre formalidades essenciais e não-essenciais também existe no Direito da União, consoante se verifique ou não, a aptidão do vício para se projetar no sentido da decisão (harmless error principle).
Contudo, o Direito da União não é reconhece a figura dos vícios absolutos, em especial no que toca a proteção de certos interesses individuais (como o direito de audiência ou o dever de fundamentação).
Em suma, o mecanismo do ato não escapa aos princípios de efetividade e efeito direto do Direito da União com vista ao desenvolvimento do Direito Administrativo Europeu.



VIII. Conclusão

Deve-se, de forma sumária, fazer um balanço geral acerca da solução consagrada no nº5 do art. 163º e da concreta configuração que lhe foi dada.
Em primeiro lugar, o mecanismo do aproveitamento do ato consagrado no ordenamento jurídico-administrativo português consiste em dois aspetos nucleares: na seleção dos critérios passíveis de fundamentar o aproveitamento e na delimitação do âmbito objetivo de aplicação do preceito. O legislador português optou por acolher tanto o critério da indisponibilidade fáctica como jurídica de uma alternativa como enunciado supra.
Defende-se que tanto os atos vinculados como os atos não-vinculados não sejam anulados mesmo quando sejam anuláveis (al. a) e c) do nº5 do art. 163º do CPA).
Em segundo lugar, 1uanto ao âmbito objetivo, conferiu uma extensão aplicativa a qualquer vício, o que demonstra um fator de significativa importância no que toca ao aproveitamento do ato.
Por último, a partir da consagração norma como a do nº 5 do art. 163º, não faz sentido a querela em torno da degradação das formalidades essenciais em não-essenciais, que tem servido para explicar o aproveitamento do ato administrativo praticado com vícios procedimentais-formais, em que uma ilegalidade invalidante se converte em mera irregularidade não invalidante.[18] A questão é saber se o vício deve ser desconsiderado à luz do nº 5 do art. 163º. Ou seja: do que se trata é do apuramento, variável e in casu, da aptidão da formalidade, naquela circunstância e naquele procedimento, para se projetar no resultado ou produto decisório, potencialmente afetando o sentido que lhe foi dado. Daí resulta que não se deve utilizar a degradação das formalidades essenciais em não-essenciais como um meio para a explicação do mecanismo do aproveitamento do ato.





[1] Ao contrário do §46 VwVfG, que exclui a pretensão impugnatória relativamente a atos que padeçam de certos vícios procedimentais ou formais. KOPP, Ramsauer, VwVfG, p. 1075.
[2] Note-se, ademais, que agora o aproveitamento opera ope legis, não estando dependente de sentença jurisdicional que o produza constitutivamente.
[3] ALMEIDA, Mário Aroso de, Teoria Geral do Direito Administrativo, 2ªedição, Coimbra: Almedina, 2015, p.277, e HUFEN/SIEGEL, Fehler im Verwaltungsverfahren, pp. 378-379.
[4] Alterada pela Lei nº31/2008, de 17 de Julho.
[5] Posição defendida por Aroso de Almeida, Teoria Geral, p. 277. Na doutrina alemã, PUNDER, Administrative Procedure, p. 255.
[6] Neste sentido, KOPP/Ramsauer, VwVfG, p. 1078. Próximo também HUFEN/SIEGEL, p. 379, quando assumem que o ato administrativo (passível de ser aproveitado) não está apto a lesar a esfera jurídica do particular.
[7] Convergimos com Aroso de Almeida, Teoria geral, p. 275.
[8] Repare-se que apenas a al. b) do nº5 do art. 163º se refere expressamente a uma situação de preterição de exigência procedimental ou formal, não estando as outras duas alíneas cunhadas por esse referente procedimental-formal da violação subjacente. Sublinhando este aspecto, Aroso de Almeida, Teoria Geral, p. 275.
[9] SOUSA, Marcelo Rebelo/MATOS, André Salgado, Direito Administrativo Geral, III, p. 168.
[10] CALDEIRA, Marco, “A figura da Anulação Administrativa no novo Código do Procedimento Administrativo de 2015”, in Comentários ao novo Código do Procedimento Administrativo, Lisboa, AAFDL, 2015.
[11] TERRINHA, Luís Heleno, “Procedimentalismo jurídico-administrativo e aproveitamento do acto administrativo”, in Comentários, Lisboa, AAFDL, 2015.
[12] Sublinhe-se, não obstante, que o nº5 do art. 163º não impede a discussão em torno do aproveitamento de atos nulos: um tal aproveitamento é que não se poderá fazer nunca com base no nº5, que apenas inclui no seu escopo atos que padeçam de anulabilidade. Dessa forma, a construção de um eventual aproveitamento de atos nulos, a acontecer, terá de ocorrer à margem deste normativo do CPA in “Procedimentalismo jurídico-administrativo e aproveitamento do ato”, Luís Terrinha em Comentários, Lisboa, AAFDL, 2015.
[13] ANDRADE, Vieira, O Dever de Fundamentação, p. 329. Ramalho, Inês, “O princípio do aproveitamento...”, p.31.
[14] Acórdãos do STA de 7 de Fevereiro de 2002 e de 11 de Outubro de 2007.
[15] No mesmo sentido, MARTINS, Lícinio Lopes, “A invalidade do ato administrativo” in Comentários, AAFDL, Lisboa, 2015.
[16] ANDRADE, Vieira, O Dever de Fundamentação, pp. 318-319.
[17] NEVES, Ana Fernanda, “A articulação do CPA com a Lei de Processo Administrativo da UE em construção”, in Comentários, AAFDL, Lisboa, 2015, pp. 55-86.
[18] SOUSA, Marcelo, MATOS, André, Direito Administrativo Geral, III, pp. 43-44 e 55-56.

Sem comentários:

Enviar um comentário