O
aproveitamento do ato administrativo
Reflexão
crítica sobre o artigo 163º, nº5 do Código do Procedimento Administrativo
I.
Introdução
Com esta apresentação venho abordar
uma problematização crítica do nº5 do art. 163º do CPA, que consagra o
mecanismo do aproveitamento do ato administrativo no nosso ordenamento
jurídico-administrativo.
Tratarei os âmbitos subjetivo e
objetivo de aplicação da norma, bem como os critérios para a determinação dos
atos a aplicar. No fim, farei uma perspetiva que englobará um aprofundamento
dogmático futuro e a sua relação com o Direito da União Europeia.
II.
Descodificação da estatuição do artigo 163º, nº5 “Não se produz o efeito
anulatório (quando)”:
Através da sua pouca concretização,
o texto do CPA, que se reporta à "não produção do efeito anulatório"[1],
pode levar-nos a uma conclusão errada
acerca do que trata. São várias as hipóteses que nos levam a traçar caminhos
diferentes. Por um lado, podemos pensar que está em causa uma situação de
determinação de não-anulabilidade (por outras palavras: de validação ou
sanação)[2].
Por outro lado, podemos assumir que efeito anulatório e anulabilidade não possuem o mesmo
significado, sendo antes o efeito anulatório uma consequência da anulabilidade.
Consequentemente, o legislador
dissociou o acima exposto e representou na norma a ideia de que o
aproveitamento do ato mantém e conserva a ilegalidade originária de que o ato
não só padece como continua a padecer (pese embora a irrelevância do vício)[3].
Ou seja, preserva-se formalmente a ilegalidade (anulabilidade) do ato, mesmo
que materialmente a ilegalidade se torne juridicamente ineficaz.
Resumindo, o mecanismo do
aproveitamento do ato incide sobre os efeitos jurídicos da intocada invalidade
e não sobre a fonte de invalidade (violação de princípios ou normas jurídicas
aplicáveis).
III.
Subsiste a pretensão indemnizatória do particular por danos causados
consequentes do ato não anulado?
Através da compreensão do mecanismo
do aproveitamento do ato surge-nos uma questão: saber se, não obstante decair a
possibilidade de obter a anulação do ato (aproveitado nos termos do art. 163º,
nº 5), subsiste qualquer pretensão indemnizatória do particular por danos
causados devido à ilegalidade procedimental ou formal cometida. Importa
apurar se, apesar de a lei afastar as vias de proteção primária, se mantêm
ainda as vias de proteção secundária em sede de responsabilidade do Estado por
facto imputável à Administração, o que nos remeteria para o regime estabelecido
na Lei nº 67/2007, de 31 de Dezembro.[4]
Como sempre, a doutrina diverge. Num
certo ponto de vista, afirma-se que o aproveitamento do ato mantém a
ilegalidade e base e não vai além da conservação do ato ilegal em detrimento da
sua anulação. Logo, sendo o particular um titular de direitos, continua a poder
obter a reparação de danos (pretensão indemnizatória requerida) causados pela
decisão administrativa formal ou procedimentalmente viciada.[5]
Por outra perspetiva, sustenta-se
que, face ao fim do aproveitamento, que determina a incapacidade invalidatória
de um vício formal ou procedimental considerado impertinente para o sentido
final da decisão, nem sequer existe uma lesão da posição jurídica do
particular. Conclui-se por fim que não se consegue estabelecer a causalidade
entre o dano sofrido e a violação procedimental cometida.
Aquando de situações de discricionariedade
administrativa torna-se problemático conceber que a Administração possa causar
um dano ao particular quando se dá por provado que a sua conduta, para além de
ser substantivamente conforme, não foi sequer determinada pelo vício procedimental.[6]
Resposta à questão: Na teoria,
parece ser a racionalidade subjacente ao mecanismo de aproveitamento do ato a
ditar a impossibilidade de surgimento de um direito e correspetivo dever de
indemnização dos particulares.
IV.
Âmbito objetivo do nº5 do artigo 163º do CPA
Devemos interrogar-nos acerca de
qual o âmbito objetivo do art. 163º, nº 5 do CPA: que requisitos de legalidade do
ato administrativo contempla este preceito?
O mecanismo do aproveitamento do
ato parece cobrir todos os requisitos de legalidade do ato cuja cominação para
o respetivo não preenchimento seja o da anulabilidade.[7]
Dito de outra forma: o art. 163º, nº 5, desconsidera todo o vício cuja sanção
se traduza na anulabilidade do ato administrativo assim praticado, verificadas
que estejam as suas alíneas concretizadoras do artigo referido.[8]
Deve-se ter em conta a solução
portuguesa consagrada em relação aos vícios abstrata e imperativamente
irrelevantes: vício procedimental-formal, vício por incompetência relativa,
vícios da vontade (erro sobre os pressupostos de facto ou de direito da decisão
administrativa)[9]
ou, genericamente, vício de violação de lei. Esta solução aplica-se sempre que
se conclua que o ato seria praticado com o mesmo conteúdo (art. 163º, nº 5, al.
c)) ou que não havia juridicamente outra hipótese de decisão (art. 163º, nº 5,
al. a)).
Em linha de conta encontra-se o teste da não produção do efeito
anulatório.
O domínio aplicativo do
aproveitamento do ato leva à realização em todos os casos do teste quando
esteja em causa a anulação de um qualquer ato administrativo anulável.
Por conseguinte, deve-se sempre ter
em conta os fundamentos do nº 5 do artigo 163º.
V.
Âmbito subjetivo de aplicação[10]
Outra questão pertinente que se impõe
interrogar é saber se para além do juiz administrativo, também a própria
Administração é destinatária-aplicadora do imperativo “não produção do efeito
anulatório”. Isto porque a norma em referência diverge da proposta constante do
Projeto de Revisão do CPA, com a consequência de lhe ser traçada uma restrição
legal ao exercício da competência anulatória configurada no novo CPA.
O argumento de que a Administração
possa anular o que um Tribunal não pode anular jurisdicionalmente não releva,
pois implica quanto ao recorte de competências, uma afronta ao princípio da
separação de poderes.
Na orientação defendida pelo
Professor Luís Heleno Terrinha,[11]
tanto a Administração como os Tribunais, ficam num plano paritário quanto à
vinculação e aplicação do art. 163º, nº5. Deste modo, não pode haver anulação
(jurisdicional ou administrativa) dos atos viciados cobertos pela norma. Denota-se
aqui uma notável preocupação relativa às expetativas dos particulares no que
toca à certeza e segurança jurídicas.
Sumariando, o mecanismo do
aproveitamento do ato foi consagrado apenas para as situações em que a forma de
invalidade a afetar a decisão administrativa é a anulabilidade,
pois o que se quer afastar é a produção de um efeito anulatório. Assim, os atos
administrativos cuja causa de invalidade se reconduza à nulidade, tal como
disciplinada no art. 161º, estão automaticamente afastados do âmbito normativo
do art. 163º, nº 5.[12]
VI.
Os fundamentos de irrelevância dos vícios no artigo 163º, nº5
Acerca do aproveitamento do ato, o
problema decisivo é o da determinação dos casos em se verifica(rá) uma
coincidência de conteúdos entre a decisão administrativa viciada e a não
viciada. É quanto a esta questão que as teses doutrinárias divergem.
a) indisponibilidade jurídica de uma alternativa
Por um lado, defende-se o critério
de indisponibilidade jurídica de uma alternativa, exigindo-se que a decisão
administrativa viciadamente adotada não pudesse ser juridicamente outra.
Esta posição espelha-se no
requisito (jurisprudencial e legal) de que o ato administrativo a praticar pela
Administração seja de natureza vinculada.[13]
De início, nos tribunais administrativos portugueses somente se aproveitava os
atos viciados praticados no uso de competências vinculadas (por oposição às
competências discricionárias). Atualmente, este esquema de atuação foi
consagrado na al. a) do art. 163º do CPA.
Não obstante este facto, tem-se
sujeitado ao mesmo regime as situações de redução de discricionariedade a zero,
opção validamente criticada pela doutrina.
b) indisponibilidade fáctica de uma alternativa
Por outro lado, defende-se o
critério de indisponibilidade fáctica de uma alternativa, exigindo-se
que o vício de que padece o ato administrativo não tenha influenciado o
conteúdo decisório de que ele é portador. Para chegar a essa conclusão,
cumprirá ao tribunal realizar um juízo
de prognose póstuma,[14].
Através desta, vai averiguar a aptidão do vício cometido para se projetar no
sentido da decisão da Administração. Esta orientação está consagrada na al. c)
do nº 5 do art. 163º do CPA: Se comprove, sem margem para dúvidas, que, mesmo sem o vício, o ato
teria sido praticado com o mesmo conteúdo.
Para além disto, reforça-se a
posição através da afirmação “sem margem para dúvidas”, o que comprova que o
ato teria sido praticado do mesmo modo com evidência. Tal é somado ao facto de
que é ao procedimento que incumbe a formação da vontade administrativa,
nomeadamente no que toca aos direitos de participação procedimental.
A doutrina acrescenta, para além de
não se suscitar nenhuma dúvida razoável, o facto que de cabe à Administração o
ónus de demonstrar de forma objetivamente clara e através de documentos que o vício foi e seria irrelevante para a
decisão final.[15]
De outro modo, não deve o ato ser
aproveitado, mantendo-se plenamente a eficácia invalidatória das violações
legais procedimentais cometidas.
Note-se que efetuando um juízo de
prognose póstuma, o aproveitamento de atos administrativos, em sede de
discricionariedade administrativa e de acordo com o critério da
indisponibilidade fáctica de uma alternativa, aproxima-se perigosamente de uma substituição
da Administração pelo Tribunal, com todas as reservas que isso levanta no
plano da preservação do princípio da separação de poderes.
c) o critério do fim visado pelas normas violadas
Por último, como critério do aproveitamento,
procura-se, saber se, não obstante se verificar a inobservância de requisitos
procedimentais-formais, o fim visado pelas
normas violadas foi ainda, de algum
modo, acautelado e atingido.

Sobressai aqui uma tónica finalista,[16]
que subtrai eficácia invalidatória aos vícios se concluir que se observaram os
propósitos ou interesses visados pelas normas procedimentais. A al. b) do nº 5
do art. 163º do CPA replica esta orientação: o fim visado pela exigência procedimental ou formal
preterida tenha sido alcançado por outra via.
Deste modo, se o fim visado pela
norma violada foi atingido por outra via, então o vício procedimental-formal
cometido foi inofensivo. Concluindo, a decisão seria a mesma de qualquer forma.
VII.
Aprofundamento dogmático e relação com Direito da União Europeia
Importará investir na
problematização do nº5 do art. 163º à luz do Direito da União Europeia,
designadamente sempre que decorram de normas juseuropeias direitos dos
particulares ou vinculações administrativas.[17]
A distinção entre formalidades
essenciais e não-essenciais também existe no Direito da União, consoante se
verifique ou não, a aptidão do vício para se projetar no sentido da decisão (harmless error principle).
Contudo, o Direito da União não é
reconhece a figura dos vícios absolutos, em especial no que toca a proteção de
certos interesses individuais (como o direito de audiência ou o dever de
fundamentação).
Em suma, o mecanismo do ato não
escapa aos princípios de efetividade e efeito direto do Direito da União com
vista ao desenvolvimento do Direito Administrativo Europeu.
VIII.
Conclusão
Deve-se, de forma sumária, fazer um
balanço geral acerca da solução consagrada no nº5 do art. 163º e da concreta
configuração que lhe foi dada.
Em primeiro lugar, o mecanismo do
aproveitamento do ato consagrado no ordenamento jurídico-administrativo
português consiste em dois aspetos nucleares: na seleção dos critérios
passíveis de fundamentar o aproveitamento e na delimitação do âmbito objetivo
de aplicação do preceito. O legislador português optou por acolher tanto o
critério da indisponibilidade fáctica como jurídica de uma alternativa como
enunciado supra.
Defende-se que tanto os atos
vinculados como os atos não-vinculados não sejam anulados mesmo quando sejam anuláveis
(al. a) e c) do nº5 do art. 163º do CPA).
Em segundo lugar, 1uanto ao âmbito
objetivo, conferiu uma extensão aplicativa a qualquer vício, o que demonstra um
fator de significativa importância no que toca ao aproveitamento do ato.
Por último, a partir da consagração
norma como a do nº 5 do art. 163º, não faz sentido a querela em torno da
degradação das formalidades essenciais em não-essenciais, que tem servido para
explicar o aproveitamento do ato administrativo praticado com vícios procedimentais-formais,
em que uma ilegalidade invalidante se converte em mera irregularidade não
invalidante.[18] A
questão é saber se o vício deve ser desconsiderado à luz do nº 5 do art. 163º.
Ou seja: do que se trata é do apuramento, variável e in casu, da aptidão da formalidade, naquela circunstância e naquele
procedimento, para se projetar no resultado ou produto decisório,
potencialmente afetando o sentido que lhe foi dado. Daí resulta que não se deve
utilizar a degradação das formalidades essenciais em não-essenciais como um
meio para a explicação do mecanismo do aproveitamento do ato.
[1] Ao contrário do
§46 VwVfG, que exclui a pretensão impugnatória relativamente a atos que padeçam
de certos vícios procedimentais ou formais. KOPP, Ramsauer, VwVfG, p. 1075.
[2] Note-se, ademais,
que agora o aproveitamento opera ope
legis, não estando dependente de sentença jurisdicional que o produza
constitutivamente.
[3] ALMEIDA, Mário
Aroso de, Teoria Geral do Direito
Administrativo, 2ªedição, Coimbra: Almedina, 2015, p.277, e HUFEN/SIEGEL, Fehler im Verwaltungsverfahren, pp.
378-379.
[4] Alterada pela Lei
nº31/2008, de 17 de Julho.
[5] Posição defendida
por Aroso de Almeida, Teoria Geral,
p. 277. Na doutrina alemã, PUNDER, Administrative
Procedure, p. 255.
[6] Neste sentido,
KOPP/Ramsauer, VwVfG, p. 1078. Próximo também HUFEN/SIEGEL, p. 379, quando
assumem que o ato administrativo (passível de ser aproveitado) não está apto a
lesar a esfera jurídica do particular.
[7] Convergimos com
Aroso de Almeida, Teoria geral, p.
275.
[8] Repare-se que
apenas a al. b) do nº5 do art. 163º se refere expressamente a uma situação de
preterição de exigência procedimental ou formal, não estando as outras duas
alíneas cunhadas por esse referente procedimental-formal da violação
subjacente. Sublinhando este aspecto, Aroso de Almeida, Teoria Geral, p. 275.
[9] SOUSA, Marcelo
Rebelo/MATOS, André Salgado, Direito
Administrativo Geral, III, p. 168.
[10] CALDEIRA, Marco,
“A figura da Anulação Administrativa no novo Código do Procedimento
Administrativo de 2015”, in Comentários
ao novo Código do Procedimento Administrativo, Lisboa, AAFDL, 2015.
[11] TERRINHA, Luís
Heleno, “Procedimentalismo jurídico-administrativo e aproveitamento do acto
administrativo”, in Comentários,
Lisboa, AAFDL, 2015.
[12] Sublinhe-se, não
obstante, que o nº5 do art. 163º não impede a discussão em torno do aproveitamento
de atos nulos: um tal aproveitamento é que não se poderá fazer nunca com base
no nº5, que apenas inclui no seu escopo atos que padeçam de anulabilidade.
Dessa forma, a construção de um eventual aproveitamento de atos nulos, a
acontecer, terá de ocorrer à margem deste normativo do CPA in
“Procedimentalismo jurídico-administrativo e aproveitamento do ato”, Luís
Terrinha em Comentários, Lisboa,
AAFDL, 2015.
[13] ANDRADE, Vieira, O Dever de Fundamentação, p. 329.
Ramalho, Inês, “O princípio do aproveitamento...”, p.31.
[14] Acórdãos do STA
de 7 de Fevereiro de 2002 e de 11 de Outubro de 2007.
[15] No mesmo sentido,
MARTINS, Lícinio Lopes, “A invalidade do ato administrativo” in Comentários, AAFDL, Lisboa, 2015.
[16] ANDRADE, Vieira, O Dever de Fundamentação, pp. 318-319.
[17] NEVES, Ana
Fernanda, “A articulação do CPA com a Lei de Processo Administrativo da UE em
construção”, in Comentários, AAFDL,
Lisboa, 2015, pp. 55-86.
[18] SOUSA, Marcelo,
MATOS, André, Direito Administrativo
Geral, III, pp. 43-44 e 55-56.
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