sexta-feira, 26 de maio de 2017

Vamos então reforçar alguns pontos essenciais presentes na petição e apontar algumas críticas à atuação da câmara.
Relativamente ao direito de informação, este é um direito fundamental e essencial. Trata-se de um dos princípios gerais da atividade administrativa.
Este direito encontra-se previsto na Constituição portuguesa, no art. 37º , que garante a todos a liberdade de expressão e informação, o direito de informar, de se informar e de ser informados, sem impedimentos nem discriminações.
O direito à informação administrativa foi introduzido no nosso sistema jurídico por norma constitucional e resulta hoje do artigo 268º/1 da CRP, que determina que “os cidadãos têm o direito a ser informados pela Administração, sempre que o requeiram, sobre o andamento dos processos em que sejam diretamente interessados (…)”.
 Este direito divide-se em duas vertentes, o direito à informação procedimental, em que os cidadãos diretamente interessados ou que detém um interesse legítimo quanto a um procedimento administrativo são titulares do direito à informação, tendo a maioria da doutrina considerado que este interesse é bastante amplo, aceitando que o seja “qualquer interesse atendível que justifique razoavelmente dar-se ao requerente tal informação”.
 E no direito à informação não procedimental, ou seja, o direito à informação administrativa por parte de qualquer cidadão, independentemente de estar em curso qualquer procedimento administrativo. Encontra-se consagrado no artigo 268º/2 CRP e 65ºCPA.
 Este direito confere o acesso a quem não disponha de interesse direto, pessoal e legítimo na informação.
 Associados a este princípio encontramos o Princípio da colaboração com os particulares (previsto no art.11º do CPA) e Princípio da participação (consagrado no art.12º CPA).
O primeiro pressupõe a colaboração dos órgãos da Administração Pública com os particulares, e surge pela prestação de informações e dos esclarecimentos de que estes careçam e, igualmente, pela receção de sugestões e informações destes, o que acontece quando os habitantes de Carnidas requerem a requalificação do centro histórico por parte da Câmara Municipal, o que não chega a acontecer e parece nem ter sido tido em conta.
Enquanto o ultimo implica a obrigação de assegurar a participação dos interessados na formação das decisões que lhes digam respeito o que só se verifica se a informação e o modo como ela se transmite garantirem aos particulares o conhecimento pleno das decisões em causa (“o que se torna visível de forma muito particular na audiência dos interessados”). O que também não se verifica, sendo que os particulares acabam por ser surpreendidos com a colocação dos parquímetros.
O principio de informação teria inclusive beneficiado todos os interessados, uma vez que se poderia ter evitado toda a situação em causa, visto que quanto maior densidade possuir a informação de base e quanto mais intensivo for o contraditório dos argumentos a favor e contra, maior probabilidade haverá de o procedimento administrativo produzir a decisão correta. Portanto uma informação prévia das decisões que a câmara estava a considerar, e que acabam por contradizer aquilo que os particulares tinham proposto anteriormente, teria levado a uma contestação também prévia ao incidente por parte dos particulares e estes não considerariam aquela como a única forma de agir.
Daí a necessidade dos interessados serem chamados a intervir e prestarem toda a informação necessária, nomeadamente através da audiência dos interessados.



A fase da audiência dos interessados espelha dois princípios de extrema importância no CPA: o princípio da colaboração da Administração com os particulares (art. 11º/1) e o princípio da participação (art. 12º CPA em conjunto com o art. 267º/5 CRP). Estes princípios pretendem salvaguardar os interesses o direito de defesa dos interessados bem como a Administração tome, por si só, a decisão final do procedimento. Na falta desta audiência, facto que se verificou, os interessados nunca poderiam ter a certeza de que as suas razões tivessem sido atendidas ou ponderadas. Deve assim existir a hipótese de participação dos particulares na formação das decisões que lhes dizem respeito.
Nesse sentido, os interessados devem receber notificação para que se possam pronunciar sobre todas as questões com interesse para a decisão final, acompanhada do projeto de decisão e demais elementos necessários para que os interessados possam conhecer todos os aspetos necessários para que os interessados possam conhecer todos os aspetos relevantes para a decisão (art. 122º/2 CPA).
Existem situações em que a lei confere a possibilidade de dispensa desta fase do procedimento, enunciadas pelo art. 124º/1 CPA:
1.                 Caso a decisão seja urgente;
2.                 Se os interessados tiverem solicitado o adiamento da audiência oral e, por facto que lhes é imputável, não tenha sido possível acordar uma nova data;
3.                 Caso seja razoável rever que certa diligencia possa comprometer a utilidade ou execução da decisão;
4.                 Se o número de interessados a ouvir seja de tal forma elevado que a audiência se torne impraticável, devendo proceder-se a consulta pública;
5.                 Caso os interessados já se tenham pronunciado, no procedimento, sobre as questões que importem à decisão e sobre as provas produzidas;
6.                 Ou se os elementos constantes do procedimento conduzirem a uma decisão inteiramente favorável aos interessados.
Como é possível aferir, em nenhum destes casos se insere o que efetivamente aconteceu. Ainda que eventualmente se pudesse considerar que o número de interessados era excessivamente alto, ainda assim teria que ser feita uma consulta pública, prevista no art. 101º do CPA. Tal não aconteceu.



            Podemos verificar a violação dos vários princípios até aqui enunciados, que vão estar associados, por sua vez, a vícios de forma, como referido no ponto 10.º da petição, não tendo sido respeitadas as várias fases do procedimento. Assim, verifica-se que é legítimo, de acordo com o artigo 163.º/1, do CPA requerer-se a anulação dos atos praticados com ofensa de princípios ou normas jurídicas aplicáveis, nomeadamente a recolocação dos parquímetros. Inclusive, é de referir que parte da doutrina, ainda que minoritária, defende que neste contexto se verifica a nulidade do ato, por considerarem o direito à audiência um direito fundamental, aplicando-se, nesta perspetiva o artigo 161.º/2, alínea d) do CPA.
Por outro lado, verifica-se que, de acordo com o artigo 184.º/1, alínea a) do CPA, os particulares teriam o direito de impugnar os atos administrativos, sendo que os pressupostos contidos no artigo 185.º/3 do CPA estão presentes no sentido de inconveniência do ato, tendo colocado o residentes numa situação comparativamente pior, dado que o estacionamento não acarretava quaisquer custos originariamente, não tendo sido este ato acompanhado pela construção de parques de estacionamento para a população de Carnitas.
Cabe apenas acrescentar que em sede de garantias petitórias, em função da figura da oposição administrativa era possível a oposição por parte dos moradores da recolocação dos parquímetros, de forma fundamentada, podendo fazer valer as suas razões contra tal projeto administrativo. Caso em que a Administração teria de os ouvir, de ponderar os argumentos invocados e fundamentar por que motivos seriam infundados, se fosse esse o caso. Isto deve-se ao facto de esta figura ter por base a divulgação pública de um projeto administrativo que se pretende executar. Neste caso, ao ordenar a recolocação dos parquímetros, a EMULTA está a divulgar um projeto administrativo que pretende executar.
Quanto à pretensão de anulação do Regulamento de Estacionamento é aplicável o disposto no artigo 147.º/1 do CPA. É possível no contexto do caso, dado que, no âmbito do regulamento são praticados atos, que se traduziram em atos lesivos dos interesses legalmente protegidos e direitos subjetivos dos particulares, como é exigido pelo disposto no artigo 72.º do CPTA, referido no ponto 14 da petição.
Desta maneira, e para concluir, constatam-se várias formas de garantia perante a violação que se verifica dos princípios que pautam a atividade administrativa e o procedimento administrativo.




Trabalho realizado por:
- Carolina Rosa
-Catarina Madeira

-Joana Nunes 

quinta-feira, 25 de maio de 2017

Parecer do Ministério Público

O Ministério Público (doravante, MP), enquanto organismo estadual, tem como tarefa principal a defesa, a titulo institucional, da legalidade e do interesse público nos termos do artigo 219°/1 CRP e do artigo 1° do Estatuto do Ministério Público.
A nossa intervenção na ação encontra legitimidade no disposto nos artigos seguintes do Estatuto do Ministério Público:
Artigo 1° - “O Ministério Público representa o Estado, defende os interesses que a lei determinar (…) defende a legalidade democrática, nos termos da Constituição, do presente Estatuto e da lei.”

O artigo 2° vem a esclarecer que o MP goza de autonomia que se traduz na vinculação a critérios de legalidade e objetividade e pela exclusiva sujeição dos magistrados o MP

O artigo 3°/1/e) estabelece que ao MP compete assumir nos casos previstos na lei, a defesa de interesses coletivos e difusos.

O artigo 5°/4 legitima a intervenção do MP acessoriamente na sua alínea a) através a realização de interesses coletivos ou difusos.

A referida intervenção acessória visa zelar pelos interesses que estão o MP confiados, promovendo o que tiver como conveniente, tal como disposto no artigo 6°/1.
Encontra igualmente legitimidade na CRP no artigo 219°, supra mencionado, que carateriza o MP como órgão do estado caraterizado por ser autónomo.
A lei constitucional não define direta e exaustivamente o estatuto do Ministério Público, não esgota o elenco das suas competências. Incumbe ao legislador ordinário ao qual se reconhece o poder de lhe entregar a defesa de outros interesses, nomeadamente a defesa da legalidade democrática e dos interesses que a lei determinar. Estas funções são exercidas na jurisdição administrativa.
No seguimento do consagrado no texto da lei fundamental, o Estatuto do Ministério Público Lei 60/98, de 27 de agosto confirma a autonomia do MP.
O MP é representado em primeira instância nos tribunais administrativos por procuradores da República e procuradores adjuntos (artigo 4° EMP e artigo 52° ETAF).
Das competências atribuídas pela Constituição e pelo Estatuto podemos concluir que o MP é um corpo de magistrados hierarquicamente subordinado que funciona na órbita dos tribunais, separado da magistratura judicial e gozando de autonomia em relação ao poder executivo.
Apesar do enquadramento sistemático dado ao MP no texto constitucional, o MP não se confunde com os tribunais.
O MP vem a ser maioritariamente qualificado pela doutrina como integrando o poder judicial, mas o exercício das suas competências não se traduz numa atividade jurisdicional, mas sim numa atividade materialmente administrativa. É um órgão de natureza híbrida.
O MP é um órgão constitucional de administração da justiça, mas não é um órgão jurisdicional porque não diz o Direito. Acaba por intervir como autor na ação pública no contencioso administrativo, “onde pulsa mais a paixão do advogado do que a neutralidade do juiz”.
O Professor Jorge Miranda pronuncia-se acerca da distinção entre função administrativa e função jurisdicional dizendo que do ponto de vista material, a função administrativa traduz-se na satisfação contínua das necessidades coletivas e da prestação de bens e serviços. A função jurisdicional  declara o Direito, decide questões jurídicas, resolve litígios, aplica sanções. Do ponto de vista formal, a função administrativa é parcial na prossecução do interesse público, tem iniciativa. A função jurisdicional é passiva porque necessita do pedido de outra entidade, e é imparcial (posição super partes), características estas que não se encontram na atividade do MP.
Por sua vez, o Professor Figueiredo Dias refere que “o MP colabora com o tribunal na realização do Direito, mas só a este cabe o processo de declaração e aplicação do Direito no caso e as suas decisões têm força de caso julgado”.
Por seu turno o Professor Freitas do Amaral expressa um pensamento similar ao afirmar o seguinte, “o MP, na sua atividade específica, não manifesta passividade, nem imparcialidade, antes atuando com iniciativa e em posição de parte, como é timbre da função administrativa”.
A independência técnica do MP opera no quadro da sua autonomia que é relativa ao poder executivo e à sua insubmissão a instruções concretas do Executivo relativamente a qualquer caso concreto.
A intervenção do MP no contencioso administrativo radica na defesa da legalidade democrática (artigo 219° CRP), intervindo no contencioso administrativo. Esta é a intervenção típica e distintiva. Também defende o Estado e outros interesses que a lei ordinária lhe cometa.
Conteúdo similar pode ser encontrado no artigo 1° EMP quando refere a defesa da legalidade democrática.
O artigo 51° ETAF pretende a defesa da legalidade democrática e promover a realização do interesse público, exercendo, para o efeito, os poderes que a lei processual lhe confere.
O desenho legal das competências dos poderes públicos é uma exigência de legalidade no Estado de Direito, não estando isentos desse postulado os órgãos encarregados da defesa da legalidade.
O artigo 3° EMP  não faz referência à fiscalização ou defesa da legalidade administrativa ou, mais especificamente no sentido da defesa do interesse público da legalidade.
O artigo 5° EMP refere apenas a intervenção principal e intervenção acessória. Não se refere a defesa da legalidade,  a impugnação contenciosa dos atos administrativos em defesa do interesse público da legalidade.
Em suma, nem EMP, CRP e ETAF aludem a competência do MP para desencadear a ação pública para a impugnação de atos administrativos ilegais em exclusiva defesa da legalidade objetiva, esta competência está suportada pelo mandato excessivamente amplo da defesa da legalidade democrática. É necessária uma norma especial atributiva de competência. Este é o entendimento do Tribunal Constitucional e do Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República.
As competências legais do MP devem ser compreendidas à luz das competências processuais que lhe conferem legitimidade (suscetibilidade do MP poder exercer em juízo as suas competências legais).
O artigo 9°/2 CPTA aborda a legitimidade ativa das partes no contencioso administrativo e reconhece ao MP legitimidade para intervir na defesa de interesses difusos (tal como é reconhecido a qualquer cidadão no gozo dos seus direitos civis e políticos – ação popular). O MP tem legitimidade para propor e intervir nos termos previstos na lei, e processos principais e cautelares destinados à defesa de valores e bens constitucionalmente protegidos, como urbanismo, ordenamento do território, qualidade de vida, património cultural e bens do Estado, regiões e autarquias locais. A coberto desta legitimidade cabem praticamente todos os pedidos pertinentes em ações administrativas comuns e especiais, meios  cautelares (artigo 31 CPC e direito de ação popular).
A atuação em defesa de interesses qualificáveis como difusos ou, usando a expressão legal, na defesa de bens e valores constitucionalmente protegidos, a intervenção do MP não se funda em critérios estritos de legalidade objetiva. Devem atender aos efeitos lesivos produzidos ou a produzir, há que considerar o dano efetivo que determinada atuação administrativa causa relativamente a bens ou valores qualificados como interesses difusos: ambiente, urbanismo, ordenamento do território. Aqui inclui-se a necessidade de respeitar e defender a legalidade democrática: aqui radicam sempre os interesses difusos merecedores de tutela. A par disto o MP tem legitimidade para impugnar atos administrativos (artigo 55/1/b) CPTA).
Esclarecida a razão de ser da intervenção do MP neste processo, cumpre averiguar da legitimidade da construção de um parque de estacionamento numa zona histórica entendida como território com classificação histórica e com património edificado considerado histórica e culturalmente relevante. Ao abrigo do disposto no artigo 9°/2 do CPTA compete ao MP zelar pela conservação do património cultural, do ordenamento do território, do urbanismo, qualidade de vida e dos bens do estado, enquanto bens e valores constitucionalmente protegidos. Tratam-se de interesses qualificáveis como difusos, sendo que a intervenção do Ministério Público neste âmbito não radica propriamente.
Reitera-se que não tomamos a parte dos moradores, nem da Câmara Municipal, nem da Junta Freguesia, mas sim uma posição protetora da zona histórica da autarquia.
É reconhecida ao MP a legitimidade para acionar na jurisdição administrativa todos os meios processuais que se encontram previstos no CPTA entre os quais se incluem a ação administrativa comum, a ação administrativa especial, meios cautelares e demais meios processuais previstos no código e em legislação especial.
Tendo em consideração que já haviam sido colocados parquímetros na zona histórica de Carnitas e que após a remoção dos mesmos a vontade de os recolocar foi manifestada, vimos por este meio solicitar uma providência cautelar acompanhada do pedido de uma assessoria técnica.
Clarificando, ao MP é reconhecida legitimidade para acionar os meios processuais de natureza cautelar, ou seja, o requerimento de providência cautelar que assegure a utilidade da sentença a proferir, designadamente a suspensão da eficácia de atos administrativos. Esta possibilidade está prevista no artigo 112° CPTA. A própria ação administrativa para impugnação de atos que radica no disposto no artigo 9°/2 CPTA encontra-se prevista no artigo 55°/1/b) CPTA.
Visamos então suspender esta recolocação.
No que respeita à assessoria técnica, a mesma prende-se com a dúvida sobre a legalidade do ato de gestão urbanística objeto de impugnação, com a insuficiência de meios do MP e com possíveis lesões para o interesse público. Pelo que a referida assessoria será levada a cabo pela Inspeção Geral da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território, a qual tem o dever de informar o MP das ilegalidades por si detetadas. Esta entidade deverá participar factos ao Ministério Público para efeitos de ação pública, factos esses resultantes de auditorias, inspeções, inquéritos e outras ações. Recai sobre esta entidade um dever jurídico de coadjuvação ou prestação de assistência ao MP na sua missão em defesa da legalidade, tratando-se de uma colaboração institucional de natureza informativa que se prende com a questão de saber se, naquele local específico, podem ser colocados parquímetros para efeitos de construção de um parque de estacionamento.
Em suma, resulta do disposto que o MP apresenta-se como coadjuvante do tribunal, um amicus curiae, podendo assumir três papéis diferentes – o defensor dos interesses do Estado-administração, o de defensor da legalidade objetiva e o de defensor de interesses coletivos e difusos.
O MP é, nestes termos, um órgão que atua mais próximo da sociedade do que do Estado.

Inês Gonçalves
Inês Cantarrilha
Natalina Hermano
Rute Martins

quarta-feira, 24 de maio de 2017

Refutação da petição inicial

Na senda das petições iniciais apresentadas, A Câmara Municipal de Listejo, na pessoa do seu Presidente, e em atuação conjunta com a EMULTA, responde por este meio à petição intentada pela Comissão de Representantes dos Moradores de Carnidas e pelo Presidente da Junta de Freguesia de Carnidas, refutamos as alegações de que o representante do Município de Listejo foi alvo, com base no princípio do Direito ao Contraditório, bem como da Imparcialidade (pois julgamos não existir uma correcta e idónea avaliação dos factos, considerando que aos moradores não se lhos exige, mas não desconsiderando que o Presidente da Junta de Freguesia de Carnidas por sua vez, deveria ter, nem que fosse o dever moral de os, criticamente, analisar). Relativamente ao pedido de audiência apresentado junto do Presidente da Câmara De Listejo, por parte do Presidente da Junta de Freguesia de Carnidas é-lhe dada a negação como resposta, pois não se vislumbra de momento, necessidade alguma de tal diálogo, visto o procedimento já ter concluído, existindo apenas uma questiúncula relativa à manutenção da ordem pública, pelo que julgamos, que será a entidade judicial a entidade capacitada para a realização de tal competência, a quem já terá sido emitido uma providência cautelar. Em relação à entrega da petição pública, através do “abaixo-assinado”, por parte da população de Carnidas, consideramo-la improcedente, visto o procedimento em causa já ter realizado a razão da sua existência.

Procedemos assim á demonstração das razões, de facto e de Direito, que assim nos levaram a agir e que tornam as alegações infundadas e desconexas de lógica.  


Relativamente, ao ponto 9º, da Secção II, correspondente à matéria de Direito, que encontramos na petição inicial e que afirma: “Face à omissão da atuação de requalificação do centro histórico por parte da Câmara Municipal, verifica-se a violação de princípios gerais da atividade administrativa, nomeadamente, do Princípio da colaboração dos particulares (art.º 11.º/1 CPA), do Princípio da participação (art.º 12.º CPA), assim como do Princípio da prossecução de interesse público e da proteção dos direitos e interesses dos cidadãos (artigos 4.º CPA e 266.º/2 CRP). Isto justifica-se pelo facto de estar em causa um interesse legalmente protegido, sendo que a administração tem o dever de não prejudicar os particulares com a prática de atos ilegais. No caso em questão, a ilegalidade do ato traduz-se na construção dos parquímetros.” Consideramos conveniente referir o seguinte:
  1. São afirmações imbuídas de uma intenção de tirar credibilidade ao Município de Listejo, já que pretendem atribuir à pretensa omissão do Município um carácter ilícito.
    1. Os compromissos assumidos decorrem do mecanismo de Orçamento Participativo, mecanismo esse não juridicamente vinculativo, não sendo portanto o cumprimento do Município passível de ser sindicado em tribunal. A fiscalização e transparência asseguradas provêm de um sistema de prestação de contas que tem por base os relatórios anuais relativos aos orçamentos em questão, e que se deverá reflectir eleitoralmente e não judicialmente (art. 16º - Normas de Participação 2016/2017 – Orçamento Participativo – Município de Listejo).
    2. O próprio conceito e mecanismo do Orçamento Participativo tem como base uma maior proximidade e participação (como o nome indica) dos particulares no que aos assuntos da Administração Pública dizem respeito, e sempre tendo em mente a prossecução do interesse público, pelo que a invocação dos princípios 4º, 11º/1, e 12º do C.P.A. se nos aparenta como despropositada e contraditória.
  2. Ainda que os compromissos pudessem possuir vinculatividade jurídica, não se encontra qualquer nexo ou relação entre o não cumprimento de determinado compromisso por parte do Município e uma consequente legitimidade ou direito para se proceder à remoção dos parquímetros em questão, cuja ilegalidade do acto que serviu de fundamento para a sua colocação ainda está para ser demonstrada.
Quanto ao ponto 10º desta mesma matéria, reconhecemos a falta de convocatória para uma audiência dos interessados, audiência essa que constitui, em regra, elemento essencial do procedimento administrativo. Contudo, prevê o art. 124º/1 alínea d), que face a um número de tal forma elevado que torne a audiência impraticável pode esta ser substituída pelo mecanismo de consulta pública (previsto no art. 101º C.P.A.) Efectivamente, verifica-se o preenchimento desta previsão, como aliás fazem questão de salientar os próprios moradores em questão, quando refere a sua Comissão dos Representantes dos Moradores de Carnitas no documento que elaborou que “[se trata] de um procedimento em massa, com um grande número de destinatários do ato”, sendo, portanto, mais adequado a abordagem a esta questão ser realizada por via de consulta pública, procurando dessa forma a recolha de um número de sugestões mais adequado, tendo havido lugar à sua oficialização por via da publicação oficial e do respectivo espaço na Internet.
    É também alegada uma ausência de fundamentação devida do acto, em virtude da aplicação do art. 152º / 1 alínea a) do C.P.A.. Convirá aqui referir que essa mesma alínea pressupõe que se verifique a criação ou agravamento de uma situação desfavorável para quem possua direitos ou interesses legalmente protegidos, sendo invocado neste caso pela Comissão dos Representantes dos Moradores um “direito ao cómodo acesso à habitação”, ao passo que o interesse legalmente protegido supostamente agredido não chega a ser especificado na petição que parte da Junta de Freguesia.
    Não pretende, no momento presente, contestar o Município a existência de tal direito. Considera, no entanto, imperativo esclarecer que não se verificou qualquer criação ou agravamento de uma situação desfavorável para os moradores que poderiam ver restringido o seu “direito ao cómodo acesso à habitação”. Pelo contrário, a colocação de parquímetros visou salvaguardar os mesmos do uso dos escassos lugares disponíveis de estacionamento por parte de não moradores, procurando racionar os mesmos através da colocação dos parquímetros em causa e do estabelecimento do correspondente preço. Poderíamos ainda assim conceder alguma razão aos moradores se a actuação da Administração se tivesse verificado apenas desse modo. Contudo, é extremamente importante referir e ter em conta, que foram designados pelos regulamentos de atividade da dita entidade, que os moradores gozariam de benefícios, e proporcionalmente terão duas vertentes a ter em consideração, a primeira que o valor do dístico, é de cerca de 12€ por ano, o que equivale a 1€ por mês, é irrisório, pela outra vertente, como já foi dito, esta actuação é em benefício da comunidade, do bem comum, indubitavelmente, da prossecução do interesse público, visto os não residentes trem maiores condicionantes de utilização do espaço destinado ao estacionamento.
    Podemos assim concluir, que não se verificou qualquer dano por parte da Administração ao direito invocado pelos particulares, pelo que não se encontra preenchida a previsão que consta do art. 152º/1 alínea a) correspondente ao dever de fundamentação do acto administrativo, pelo que não se pode afirmar que sofre o acto dos vícios invocados no já referido ponto 10º da petição em causa.

No que ao ponto número 12 diz respeito (encontrando-se omisso o 11º ponto na petição inicial), onde são mencionados os casos de impedimento de participação no procedimento devido à necessidade de garantir a imparcialidade, entende o Município que a petição inicial considera Francisco Filião, Presidente da Câmara Municipal de Listejo, como interessado nos procedimentos em que se encontra presente a sua cônjuge Penélope Filião.
Ora no procedimento inicial, onde são aprovadas as condições de utilização dos parques em questão, bem como o respectivo preço, pela Câmara Municipal (como nos indica o art. 6º/1 a) e b) do Regulamento Geral de Parques de Estacionamento, na cidade de Listejo), verificar-se-ia a situação inversa. Isto é, teria a esposa de Francisco Filião, Penélope, interesse no procedimento em que este participaria. Contudo, foi na altura invocado pelo próprio e de acordo com o art. 70º/1 do C.P.A. o seu próprio impedimento (art. 69º/1 b)), tendo despoletado o art. 70º/5, que nos informa que recaindo o impedimento sobre o presidente do órgão colegial (neste caso, a Câmara Municipal), a decisão do incidente compete ao próprio órgão, sem intervenção do presidente. Não se verificando assim a sanção prevista no art. 76º/1.
Resta-nos, portanto, considerar que a petição inicial se refere à decisão de Penélope Filião na condição de Presidente do Conselho de Administração da EMULTA ordenar a recolocação dos parquímetros criminosamente retirados pelos moradores de Carnitas. Contudo, não consegue o Município entender qual o interesse que Francisco Filião poderia possuir na referida conduta, já que essa ordem em nada diz já respeito à Câmara Municipal, tratando-se antes da gestão de assuntos de mera ordem interna da EMULTA, nomeadamente quando nos seus próprios estatutos é referido no art. 3º/3 o) que a esta cabe: “Executar medidas e ações necessárias à conservação, manutenção e exploração das instalações, bens e equipamentos próprios ou postos ao seu cuidado;”. Algo que fica assim fora já do âmbito do art. 76º/1 do C.P.A..
No seguimento da resposta à petição apresentada pela Comissão de Representantes dos Moradores de Carnitas, a referida Comissão arguiu que não foi observado o princípio da descentralização (237º CRP), correspondendo este a um essencial corolário da organização administrativa portuguesa. Repare-se que o princípio em causa nunca foi violado por parte do Município (Câmara e Assembleia Municipal). Na verdade a competência específica para a realização das medidas impugnadas pertence à Assembleia Municipal (Arts. 25º/1 p) e r), LAL) e à Câmara Municipal (Art. 32º/1 rr), LAL). Nesse sentido não pode consistir numa contrariedade ao princípio, quando na realidade estamos perante a prossecução de uma atribuição legal, com a mera possibilidade de delegação de competências (art. 131º LAL), ou seja, uma possibilidade, não uma obrigatoriedade. Sendo certo que a efectivação deste princípio deriva essencialmente do legislador e do seu trabalho. Aliás, é relevante destacar que materialmente as atribuições das juntas de freguesias urbanas são bastante diminutas, não obstante a sua importância, contudo, incidem sobretudo sobre áreas como o apoio social e ambiental.
Seguidamente, no respectivo desenvolvimento argumentativo, referem-se novamente ao fundamento do interesse público e da correlativa contrariedade imanente à actuação da Câmara Municipal de Listejo, razões que infra e supra já foram considerada inválidas e de fraca sustentação.
Um outro ponto focado e destacado nesta acção é a justificação de que o presidente da Junta de Freguesia corresponde à pessoa mais capaz para prosseguir os interesses dos queixosos e, acima de tudo, as deliberações da Assembleia Municipal foram contraproducentes. Conquanto, o zelo e resignação do Presidente da Junta de Freguesia perante as acções camarárias, é ainda mais contraditório. Fabio Sem-Terra, na qualidade de autarca, em primeiro lugar tem o dever de representar a Junta Freguesia em juízo (Art. 18º/1 a) LAL), logo não se compreende a actuação infundada e contra os princípios compreendidos no supra conceito do Estado de Direito (Art. 2º CRP) pelos quais foi eleito, a acção antidemocrática e anti-jurisdicional que levou a cabo. Depois, este autarca tem o dever e a possibilidade de integrar as reuniões da Assembleia Municipal (art. 18/1 c) LAL) com direito a questionar o órgão. Indubitavelmente o assunto abordado foi discutido na sede própria (Assembleia Municipal, Arts. 25º/1 p) e r), LAL), onde o ilustre tinha a possibilidade de solicitar e receber informações sobre o assunto (Arts. 25º/2 d) LAL), podendo concomitantemente deixar em acta a sua oposição, e posteriormente, por via da relação de cooperação institucional, realizar-se-ia uma averiguação dos factos que esta actuação envolveria, dada a especial função de colaboração que a Freguesia guarda para si nesta temática. No seguimento, e em acordo, quiçá, com a Comissão de Representantes dos Moradores de Carnitas demonstrar as suas objecções, ou poderia levar por requerimento da Câmara a posicionarem-se e talvez participarem na realização desta medida (Art. 16º/1 p e q LAL). Indiscutivelmente, nada do que foi retratado aconteceu por inercia do Representante máximo da “revolta”, portanto é algo caricata a referencia à violação do princípio da boa-fé por parte do Município, quando na verdade esta acusação deveria ser atentada contra todos os participantes nesta disputa, com destaque na pessoa do Presidente da Junta de Carnitas.
Anteriormente, já referimos que a competência é atribuída ao órgão que acabou por praticar o acto, embora, apesar da evidência deste facto e da clara imprecisão em relação aos conceitos de atribuição e competência, a Comissão de Moradores defenda que existe uma delegação legal tácita neste assunto, por via do artigo 132º/2 a) da LAL. Importa fazer alguns reparos, em primeiro lugar, para a realização da delegação legal tácita é necessária, em ultima análise, um acordo de execução nos termos do art. 133º da LAL, algo que não se regista, ou seja, a competência continua adjudicada à Câmara (de qualquer das formas, a celebração de contratos inter-administraticos de delegação de competências está sujeito a autorização da Assembleia Municipal, nos termos do artigo 25º/1 k) da LAL); em segundo lugar, usualmente esta ferramenta é utilizada para funções mais simples, como a limpeza das ruas, por exemplo, não para realização de contractos de concessão ou reorganização do centro histórico; em ultimo lugar, e convergindo nestas ultimas duas razões, a atribuição, não significa competência, aliás, pela complexidade do acordo e dos fins pretendidos pelo mesmo (vide artigos Arts. 25º/1 p) e r), 32º/1 rr), LAL) exigiam a actuação da Câmara Municipal de Listejo, mais habituada a proceder a este tipo de actividades em várias outras freguesias.
Na sua fundamentação, Comissão de Representantes dos Moradores de Carnitas fez uma breve referência a uma sobreposição do Município que ditou uma ilegitimidade democrática perante a Freguesia. Esta arguição é falível, na medida em que, como já registámos, não existe usurpação de competências, nem contrariedade à legalidade. O Município não declarou a Junta de Freguesia como incompetente, esta é de facto incompetente por via da legislação em vigor. Relembra-se, concomitantemente, que o Munícipio foi eleito democraticamente tendo em vista a prossecução dos interesses da sua circunscrição territorial, da qual faz parte Carnitas, e nos quais os seus eleitores da Freguesia votaram para eleger o órgão, nesse sentido a Câmara está a actuar dentro de uma circunscrição que lhe diz respeito.

    De referir ainda, que as Comissões de Moradores, nos termos do artigo 265º/1 a) da CRP, têm um direito de petição perante as autarquias locais relativamente a assuntos administrativos de interesse para os moradores, o que em nenhuma fase do processo foi declarado ou utilizado.
    Em primeiro lugar, urge a necessidade de salientar a ação, de alguns moradores na qual, com certeza a maioria das pessoas humildes e honestas de Carnitas não se identifica, o furto dos parquímetros parece-nos ser um ato que ultrapassa os limites da boa-fé, da educação que todos presamos e representa um extravasar completo da legitimidade que as pessoas têm para manifestar o seu desagrado com a atuação da Administração.
    O código Penal no seu art 212º cita “Quem destruir, no todo ou em parte, danificar, desfigurar ou tornar não utilizável coisa alheia, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa”, os moradores não têm legitimidade para se apropriar de bens alheios, muito menos quando são previstas formas de mostrar o seu desagrado de maneira cível e correta.
De facto, a participação de Fábio Sem Terra, Presidente da Junta de Freguesia de Carnitas, que defendeu e liderou a ação popular, parece-nos lamentável. O incentivo à desordem e à anarquia é um atentado aos tão enunciados, na petição, príncipios do Estado de Direito, de facto não está sediado em nenhum artigo da legislação portuguesa o incentivo, por parte de órgãos administrativos, ao caos e ao crime.
    Em segundo lugar, o interesse público está a ser prosseguido, e os interesses legalmente protegidos também estão a ser protegidos. A atuação da EMULTA ao nível da gestão do estacionamento serve os interesses do município como garante de uma rotatividade segura e eficaz, através da existência de estacionamento pago, da gestão de parques de estacionamento em locais estratégicos, da restrição no acesso aos Bairros Históricos e da defesa dos residentes com a atribuição do respetivo Dístico. Na realidade, parece-nos a nós que a nossa ação só está a melhorar a vida das pessoas e a proteger os seus interesses, o dístico de residência para um carro é praticamente gratuito, dessa forma os residentes teriam assim um acesso privilegiado ao estacionamento na sua zona residencial, como se encontra previsto nos regulamentos. A ação da Câmara tem, como único intuito, a assistência no que for possível e a promoção da melhoria da qualidade de vida dos cidadãos, a EMULTA auxília assim a Câmara a desenvolver a sua atividade num quadro normativo e legal que, promovendo os princípios de boa administração, equidade e justiça social, contribui para uma melhor qualidade de vida da sociedade em que se insere.   


Artur Montargil
Guilherme Rato
Leonardo Costa  
Mariana Nemésio
Miguel Romano
Pedro Fernandes
Raquel Silva
Tomás Antunes

domingo, 21 de maio de 2017

O aproveitamento do ato administrativo

O aproveitamento do ato administrativo
Reflexão crítica sobre o artigo 163º, nº5 do Código do Procedimento Administrativo


I. Introdução

Com esta apresentação venho abordar uma problematização crítica do nº5 do art. 163º do CPA, que consagra o mecanismo do aproveitamento do ato administrativo no nosso ordenamento jurídico-administrativo.
Tratarei os âmbitos subjetivo e objetivo de aplicação da norma, bem como os critérios para a determinação dos atos a aplicar. No fim, farei uma perspetiva que englobará um aprofundamento dogmático futuro e a sua relação com o Direito da União Europeia.


II. Descodificação da estatuição do artigo 163º, nº5 “Não se produz o efeito anulatório (quando)”:

Através da sua pouca concretização, o texto do CPA, que se reporta à "não produção do efeito anulatório"[1],  pode levar-nos a uma conclusão errada acerca do que trata. São várias as hipóteses que nos levam a traçar caminhos diferentes. Por um lado, podemos pensar que está em causa uma situação de determinação de não-anulabilidade (por outras palavras: de validação ou sanação)[2].  Por outro lado, podemos assumir que efeito anulatório e anulabilidade não possuem o mesmo significado, sendo antes o efeito anulatório uma consequência da anulabilidade.
Consequentemente, o legislador dissociou o acima exposto e representou na norma a ideia de que o aproveitamento do ato mantém e conserva a ilegalidade originária de que o ato não só padece como continua a padecer (pese embora a irrelevância do vício)[3]. Ou seja, preserva-se formalmente a ilegalidade (anulabilidade) do ato, mesmo que materialmente a ilegalidade se torne juridicamente ineficaz.
Resumindo, o mecanismo do aproveitamento do ato incide sobre os efeitos jurídicos da intocada invalidade e não sobre a fonte de invalidade (violação de princípios ou normas jurídicas aplicáveis).


III. Subsiste a pretensão indemnizatória do particular por danos causados consequentes do ato não anulado?

Através da compreensão do mecanismo do aproveitamento do ato surge-nos uma questão: saber se, não obstante decair a possibilidade de obter a anulação do ato (aproveitado nos termos do art. 163º, nº 5), subsiste qualquer pretensão indemnizatória do particular por danos causados devido à ilegalidade procedimental ou formal cometida. Importa apurar se, apesar de a lei afastar as vias de proteção primária, se mantêm ainda as vias de proteção secundária em sede de responsabilidade do Estado por facto imputável à Administração, o que nos remeteria para o regime estabelecido na Lei nº 67/2007, de 31 de Dezembro.[4]
Como sempre, a doutrina diverge. Num certo ponto de vista, afirma-se que o aproveitamento do ato mantém a ilegalidade e base e não vai além da conservação do ato ilegal em detrimento da sua anulação. Logo, sendo o particular um titular de direitos, continua a poder obter a reparação de danos (pretensão indemnizatória requerida) causados pela decisão administrativa formal ou procedimentalmente viciada.[5]
Por outra perspetiva, sustenta-se que, face ao fim do aproveitamento, que determina a incapacidade invalidatória de um vício formal ou procedimental considerado impertinente para o sentido final da decisão, nem sequer existe uma lesão da posição jurídica do particular. Conclui-se por fim que não se consegue estabelecer a causalidade entre o dano sofrido e a violação procedimental cometida.
Aquando de situações de discricionariedade administrativa torna-se problemático conceber que a Administração possa causar um dano ao particular quando se dá por provado que a sua conduta, para além de ser substantivamente conforme, não foi sequer determinada pelo vício procedimental.[6]
Resposta à questão: Na teoria, parece ser a racionalidade subjacente ao mecanismo de aproveitamento do ato a ditar a impossibilidade de surgimento de um direito e correspetivo dever de indemnização dos particulares.


IV. Âmbito objetivo do nº5 do artigo 163º do CPA

Devemos interrogar-nos acerca de qual o âmbito objetivo do art. 163º, nº 5 do CPA: que requisitos de legalidade do ato administrativo contempla este preceito?

O mecanismo do aproveitamento do ato parece cobrir todos os requisitos de legalidade do ato cuja cominação para o respetivo não preenchimento seja o da anulabilidade.[7] Dito de outra forma: o art. 163º, nº 5, desconsidera todo o vício cuja sanção se traduza na anulabilidade do ato administrativo assim praticado, verificadas que estejam as suas alíneas concretizadoras do artigo referido.[8]
Deve-se ter em conta a solução portuguesa consagrada em relação aos vícios abstrata e imperativamente irrelevantes: vício procedimental-formal, vício por incompetência relativa, vícios da vontade (erro sobre os pressupostos de facto ou de direito da decisão administrativa)[9] ou, genericamente, vício de violação de lei. Esta solução aplica-se sempre que se conclua que o ato seria praticado com o mesmo conteúdo (art. 163º, nº 5, al. c)) ou que não havia juridicamente outra hipótese de decisão (art. 163º, nº 5, al. a)).
Em linha de conta encontra-se o teste da não produção do efeito anulatório.
O domínio aplicativo do aproveitamento do ato leva à realização em todos os casos do teste quando esteja em causa a anulação de um qualquer ato administrativo anulável.
Por conseguinte, deve-se sempre ter em conta os fundamentos do nº 5 do artigo 163º.

V. Âmbito subjetivo de aplicação[10]

Outra questão pertinente que se impõe interrogar é saber se para além do juiz administrativo, também a própria Administração é destinatária-aplicadora do imperativo “não produção do efeito anulatório”. Isto porque a norma em referência diverge da proposta constante do Projeto de Revisão do CPA, com a consequência de lhe ser traçada uma restrição legal ao exercício da competência anulatória configurada no novo CPA.
O argumento de que a Administração possa anular o que um Tribunal não pode anular jurisdicionalmente não releva, pois implica quanto ao recorte de competências, uma afronta ao princípio da separação de poderes.
Na orientação defendida pelo Professor Luís Heleno Terrinha,[11] tanto a Administração como os Tribunais, ficam num plano paritário quanto à vinculação e aplicação do art. 163º, nº5. Deste modo, não pode haver anulação (jurisdicional ou administrativa) dos atos viciados cobertos pela norma. Denota-se aqui uma notável preocupação relativa às expetativas dos particulares no que toca à certeza e segurança jurídicas.
Sumariando, o mecanismo do aproveitamento do ato foi consagrado apenas para as situações em que a forma de invalidade a afetar a decisão administrativa é a anulabilidade, pois o que se quer afastar é a produção de um efeito anulatório. Assim, os atos administrativos cuja causa de invalidade se reconduza à nulidade, tal como disciplinada no art. 161º, estão automaticamente afastados do âmbito normativo do art. 163º, nº 5.[12]

VI. Os fundamentos de irrelevância dos vícios no artigo 163º, nº5

Acerca do aproveitamento do ato, o problema decisivo é o da determinação dos casos em se verifica(rá) uma coincidência de conteúdos entre a decisão administrativa viciada e a não viciada. É quanto a esta questão que as teses doutrinárias divergem.

            a) indisponibilidade jurídica de uma alternativa
Por um lado, defende-se o critério de indisponibilidade jurídica de uma alternativa, exigindo-se que a decisão administrativa viciadamente adotada não pudesse ser juridicamente outra.
Esta posição espelha-se no requisito (jurisprudencial e legal) de que o ato administrativo a praticar pela Administração seja de natureza vinculada.[13] De início, nos tribunais administrativos portugueses somente se aproveitava os atos viciados praticados no uso de competências vinculadas (por oposição às competências discricionárias). Atualmente, este esquema de atuação foi consagrado na al. a) do art. 163º do CPA.
Não obstante este facto, tem-se sujeitado ao mesmo regime as situações de redução de discricionariedade a zero, opção validamente criticada pela doutrina.


            b) indisponibilidade fáctica de uma alternativa
Por outro lado, defende-se o critério de indisponibilidade fáctica de uma alternativa, exigindo-se que o vício de que padece o ato administrativo não tenha influenciado o conteúdo decisório de que ele é portador. Para chegar a essa conclusão, cumprirá ao tribunal realizar um juízo de prognose póstuma,[14]. Através desta, vai averiguar a aptidão do vício cometido para se projetar no sentido da decisão da Administração. Esta orientação está consagrada na al. c) do nº 5 do art. 163º do CPA: Se comprove, sem margem para dúvidas, que, mesmo sem o vício, o ato teria sido praticado com o mesmo conteúdo.

Para além disto, reforça-se a posição através da afirmação “sem margem para dúvidas”, o que comprova que o ato teria sido praticado do mesmo modo com evidência. Tal é somado ao facto de que é ao procedimento que incumbe a formação da vontade administrativa, nomeadamente no que toca aos direitos de participação procedimental.
A doutrina acrescenta, para além de não se suscitar nenhuma dúvida razoável, o facto que de cabe à Administração o ónus de demonstrar de forma objetivamente clara e através de documentos que o vício foi e seria irrelevante para a decisão final.[15]
De outro modo, não deve o ato ser aproveitado, mantendo-se plenamente a eficácia invalidatória das violações legais procedimentais cometidas.
Note-se que efetuando um juízo de prognose póstuma, o aproveitamento de atos administrativos, em sede de discricionariedade administrativa e de acordo com o critério da indisponibilidade fáctica de uma alternativa, aproxima-se perigosamente de uma substituição da Administração pelo Tribunal, com todas as reservas que isso levanta no plano da preservação do princípio da separação de poderes.

            c) o critério do fim visado pelas normas violadas
Por último, como critério do aproveitamento, procura-se, saber se, não obstante se verificar a inobservância de requisitos procedimentais-formais, o fim visado pelas normas violadas foi ainda, de algum modo, acautelado e atingido.
Sobressai aqui uma tónica finalista,[16] que subtrai eficácia invalidatória aos vícios se concluir que se observaram os propósitos ou interesses visados pelas normas procedimentais. A al. b) do nº 5 do art. 163º do CPA replica esta orientação: o fim visado pela exigência procedimental ou formal preterida tenha sido alcançado por outra via.
Deste modo, se o fim visado pela norma violada foi atingido por outra via, então o vício procedimental-formal cometido foi inofensivo. Concluindo, a decisão seria a mesma de qualquer forma.


VII. Aprofundamento dogmático e relação com Direito da União Europeia

Importará investir na problematização do nº5 do art. 163º à luz do Direito da União Europeia, designadamente sempre que decorram de normas juseuropeias direitos dos particulares ou vinculações administrativas.[17]
A distinção entre formalidades essenciais e não-essenciais também existe no Direito da União, consoante se verifique ou não, a aptidão do vício para se projetar no sentido da decisão (harmless error principle).
Contudo, o Direito da União não é reconhece a figura dos vícios absolutos, em especial no que toca a proteção de certos interesses individuais (como o direito de audiência ou o dever de fundamentação).
Em suma, o mecanismo do ato não escapa aos princípios de efetividade e efeito direto do Direito da União com vista ao desenvolvimento do Direito Administrativo Europeu.



VIII. Conclusão

Deve-se, de forma sumária, fazer um balanço geral acerca da solução consagrada no nº5 do art. 163º e da concreta configuração que lhe foi dada.
Em primeiro lugar, o mecanismo do aproveitamento do ato consagrado no ordenamento jurídico-administrativo português consiste em dois aspetos nucleares: na seleção dos critérios passíveis de fundamentar o aproveitamento e na delimitação do âmbito objetivo de aplicação do preceito. O legislador português optou por acolher tanto o critério da indisponibilidade fáctica como jurídica de uma alternativa como enunciado supra.
Defende-se que tanto os atos vinculados como os atos não-vinculados não sejam anulados mesmo quando sejam anuláveis (al. a) e c) do nº5 do art. 163º do CPA).
Em segundo lugar, 1uanto ao âmbito objetivo, conferiu uma extensão aplicativa a qualquer vício, o que demonstra um fator de significativa importância no que toca ao aproveitamento do ato.
Por último, a partir da consagração norma como a do nº 5 do art. 163º, não faz sentido a querela em torno da degradação das formalidades essenciais em não-essenciais, que tem servido para explicar o aproveitamento do ato administrativo praticado com vícios procedimentais-formais, em que uma ilegalidade invalidante se converte em mera irregularidade não invalidante.[18] A questão é saber se o vício deve ser desconsiderado à luz do nº 5 do art. 163º. Ou seja: do que se trata é do apuramento, variável e in casu, da aptidão da formalidade, naquela circunstância e naquele procedimento, para se projetar no resultado ou produto decisório, potencialmente afetando o sentido que lhe foi dado. Daí resulta que não se deve utilizar a degradação das formalidades essenciais em não-essenciais como um meio para a explicação do mecanismo do aproveitamento do ato.





[1] Ao contrário do §46 VwVfG, que exclui a pretensão impugnatória relativamente a atos que padeçam de certos vícios procedimentais ou formais. KOPP, Ramsauer, VwVfG, p. 1075.
[2] Note-se, ademais, que agora o aproveitamento opera ope legis, não estando dependente de sentença jurisdicional que o produza constitutivamente.
[3] ALMEIDA, Mário Aroso de, Teoria Geral do Direito Administrativo, 2ªedição, Coimbra: Almedina, 2015, p.277, e HUFEN/SIEGEL, Fehler im Verwaltungsverfahren, pp. 378-379.
[4] Alterada pela Lei nº31/2008, de 17 de Julho.
[5] Posição defendida por Aroso de Almeida, Teoria Geral, p. 277. Na doutrina alemã, PUNDER, Administrative Procedure, p. 255.
[6] Neste sentido, KOPP/Ramsauer, VwVfG, p. 1078. Próximo também HUFEN/SIEGEL, p. 379, quando assumem que o ato administrativo (passível de ser aproveitado) não está apto a lesar a esfera jurídica do particular.
[7] Convergimos com Aroso de Almeida, Teoria geral, p. 275.
[8] Repare-se que apenas a al. b) do nº5 do art. 163º se refere expressamente a uma situação de preterição de exigência procedimental ou formal, não estando as outras duas alíneas cunhadas por esse referente procedimental-formal da violação subjacente. Sublinhando este aspecto, Aroso de Almeida, Teoria Geral, p. 275.
[9] SOUSA, Marcelo Rebelo/MATOS, André Salgado, Direito Administrativo Geral, III, p. 168.
[10] CALDEIRA, Marco, “A figura da Anulação Administrativa no novo Código do Procedimento Administrativo de 2015”, in Comentários ao novo Código do Procedimento Administrativo, Lisboa, AAFDL, 2015.
[11] TERRINHA, Luís Heleno, “Procedimentalismo jurídico-administrativo e aproveitamento do acto administrativo”, in Comentários, Lisboa, AAFDL, 2015.
[12] Sublinhe-se, não obstante, que o nº5 do art. 163º não impede a discussão em torno do aproveitamento de atos nulos: um tal aproveitamento é que não se poderá fazer nunca com base no nº5, que apenas inclui no seu escopo atos que padeçam de anulabilidade. Dessa forma, a construção de um eventual aproveitamento de atos nulos, a acontecer, terá de ocorrer à margem deste normativo do CPA in “Procedimentalismo jurídico-administrativo e aproveitamento do ato”, Luís Terrinha em Comentários, Lisboa, AAFDL, 2015.
[13] ANDRADE, Vieira, O Dever de Fundamentação, p. 329. Ramalho, Inês, “O princípio do aproveitamento...”, p.31.
[14] Acórdãos do STA de 7 de Fevereiro de 2002 e de 11 de Outubro de 2007.
[15] No mesmo sentido, MARTINS, Lícinio Lopes, “A invalidade do ato administrativo” in Comentários, AAFDL, Lisboa, 2015.
[16] ANDRADE, Vieira, O Dever de Fundamentação, pp. 318-319.
[17] NEVES, Ana Fernanda, “A articulação do CPA com a Lei de Processo Administrativo da UE em construção”, in Comentários, AAFDL, Lisboa, 2015, pp. 55-86.
[18] SOUSA, Marcelo, MATOS, André, Direito Administrativo Geral, III, pp. 43-44 e 55-56.