quarta-feira, 29 de março de 2017

Divergência Doutrinária na Questão da Discricionariedade Administrativa


Divergência Doutrinária na Questão da Discricionariedade Administrativa


Os problemas inerentes à imbricação entre o mérito e a legalidade estão na base de uma das mais complexas e controversas questões de Direito Administrativo: a questão da discricionariedade. Sobre ela se confrontam, neste sentido, posições doutrinárias distintas e controversas.
A pertinência de uma breve alusão à definição do termo “discricionariedade” parece-me evidente. Assim, este remete-nos para a ideia de escolha, de fazer alguma coisa quando se poderia ter feito outra. Melhor, quando a lei permitiria que se tivesse feito outra. Torna-se, então, claro que esta problemática ocorre no mundo da legalidade, da legalidade administrativa.

Ora, no quadro da doutrina portuguesa, podemos distinguir, essencialmente, quatro posições fundamentais à cerca deste tema:

    1. A construção tradicional, advogada por Marcello Caetano, afirma que o poder discricionário é um poder à margem da lei, à margem do princípio da legalidade, o que significa que o poder discricionário não pode ser jurisdicionalmente controlado. Assim, no quadro desta teoria, olha-se para um acto administrativo, qualifica-se o acto como discricionário ou vinculado e em função da existência ou não de “liberdade de decisão da administração”, o acto é da responsabilidade exclusiva da administração e não pode ser controlado pelo tribunal, se se tratar de um acto discricionário.
Esta construção falha, tal como o refere Vasco Pereira da Silva, ao confundir a vontade dos órgãos públicos com a vontade dos sujeitos privados: partia de uma lógica de olhar para a administração como uma entidade que possuía liberdade de escolha, quando a administração tem uma vontade que não pode nunca contrariar as opções do ordenamento jurídico.

2. A segunda construção, é elaborada por Diogo Freitas do Amaral.  De modo a definir os conceitos de poderes vinculados e poderes discricionários, o Autor indica duas perspectivas diferentes:

  • Por um lado, a perspectiva dos poderes da administração de onde se extrai que o poder é vinculado quando a lei não remete para o critério do respectivo titular a escolha da solução concreta mais adequada; e será discricionário no cenário oposto, onde o respectivo titular pode e deve escolher a solução a adoptar em cada caso como mais ajustada à realização do interesse público protegido pela norma que o confere.
  • Por outro lado, a perspectiva dos actos da administração que simplesmente afirma que os actos são vinculados quando praticados pela administração no exercício de poderes vinculados, e que são discricionários quando praticados no exercício de poderes discricionários.

Cumpre chamar a atenção para o facto de não existirem, à partida, actos totalmente vinculados ou totalmente discricionários: quase todos os actos administrativos são vinculados a certos aspectos, e discricionários em relação a outros. Neste sentido, em relação a cada poder faz sentido perguntar se ele é um poder vinculado ou um poder discricionário, já em relação aos actos da administração a pergunta correcta será em que medida são vinculados e em que medida são discricionários.
Quanto ao controlo jurisdicional possível, o Professor Freitas do Amaral vem dizer que os tribunais administrativos portugueses não podem apreciar o mérito de uma decisão administrativa, mas apenas a sua legalidade. Caberá, desta forma, à própria administração exercer sobre os seus actos um controlo de legalidade e um controlo de mérito. Assim sendo, quando os poderes utilizados sejam em parte vinculados e em parte discricionários, o seu exercício ilegal é susceptível de controlo de legalidade; e o seu mau uso é susceptível de controlo de mérito.
Apesar de permitir um controlo mais amplo da actuação da administração, esta posição ainda assenta nesta distinção entre actos discricionários e vinculados que continua a colocar problemas do ponto de vista do Estado de Direito e do ponto de vista do controlo integral da actuação administrativa.

3. Nos anos oitenta, surge uma outra posição através da tese de doutoramento de Sérvulo Correia, também apoiada por Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos, em que, adoptando uma distinção que vem do direito alemão, vem dizer que existem duas espécies de discricionariedade.
Consequentemente, existe uma discricionariedade no momento da decisão, aquilo a que chama, usando a expressão alemã, margem de livre decisão, ou seja, um espaço de liberdade da actuação administrativa conferido por lei e limitado pelo bloco de legalidade. Esta margem de livre decisão implica, portanto, a não existência de controlo jurisdicional. Na verdade, tal controlo apenas não poderá ocorrer na medida dessa liberdade, devendo resumir-se à aferição do respeito administrativo pelas vinculações normativas e pelos limites internos da margem de livre decisão. 
Por vezes, a margem de livre decisão administrativa resulta da atribuição pela lei de uma liberdade à administração na apreciação de situações de facto que dizem respeito aos pressupostos das suas decisões e não, expressamente, como sucede na discricionariedade, de uma liberdade de escolha entre várias alternativas de actuação juridicamente admissíveis. Esta ideia de margem de livre apreciação foi pela primeira vez teorizada por O. Bachof nos anos cinquenta do século XX.
Vasco Pereira da Silva discorda de tal acepção pelo facto desta considerar que a administração possa ter liberdade. Segundo este, a administração pratica sempre decisões jurídicas e decisões que concretizam o ordenamento jurídico no caso concreto e, portanto, são decisões que nunca são livres. Acrescenta ainda que não considera que exista alguma diferença entre a margem de livre decisão e a margem de livre apreciação: a questão que se coloca é exactamente a mesma, de uma escolha da administração, balizada pelos mesmos critérios. Isto, independentemente de saber se essa escolha acontece apenas perante a decisão final ou se coloca também no quadro da apreciação. 
Para o Professor Regente, esta construção não considera o momento de interpretação da norma. A primeira coisa que a administração vai fazer, colocada perante uma situação de facto que exige um acto administrativo, é interpretar a norma. E ao interpretar a norma ela vai escolher um sentido entre vários sentidos possíveis. A interpretação da norma é uma tarefa de natureza discricionária, com elementos vinculados. 

4. Concluindo, para Vasco Pereira da Silva, a administração, perante uma qualquer situação da vida, vai começar por interpretar a norma; e nessa interpretação ela faz escolhas balizadas pelo texto da norma e por todo o Direito que é chamado a ser aplicado naquele caso concreto. Depois a administração pode ter margem de apreciar: vai apreciar as circunstâncias da vida para saber se elas devem dar origem ao acto X ou ao acto Y, e, portanto, pode haver discricionariedade também no momento da apreciação. E há, por último, ou pode haver por último ainda, discricionariedade quanto à decisão porque a administração, no final, pode ter várias soluções legalmente possíveis.
A diferença entre o poder vinculado e o poder discricionário é que se se trata de um poder vinculado o tribunal controla integralmente a produção daquele resultado -  se ele não se verificou estamos perante ilegalidade -, se o poder é discricionário o tribunal controla os vínculos do exercício daquele poder discricionário. Se houve o superar dos vínculos, a violação dos vínculos, estamos perante uma ilegalidade, mesmo que estejamos perante escolhas discricionárias.




Bibliografia

  • AMARAL, Diogo Freitas do, (2016) Curso de Direito Administrativo. Volume II, Coimbra: Almedina
  • SOUSA, Marcelo Rebelo de; MATOS, André Salgado de, (2016) Direito Administrativo Geral: Introdução e Princípios Fundamentais. Tomo I, Alfragide: D. Quixote
  • CAUPERS, João, (2013) Introdução ao Direito Administrativo. Lisboa: Âncora Editora


Carla Costa, nº 28233




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